As expressões da pulsão agressiva na vida e na neurose

[ Der Aggressionstrieb im Leben und in der Neurose ]

por Alfred Adler

Tradução e notas | Caio Padovan & Julia Joergensen Schlemm

Originalmente publicado em Adler, A. (1908). “Der Aggressionstrieb im Leben und in der Neurose”, Fortschritte der Medizin, v. 26, n. 19, pp. 577-584, 1908.

A aplicação do método de Freud à exploração da vida mental inconsciente de pessoas normais e neuróticas nos leva a reconhecer a existência de tendências [Regungen][1] perversas que, mesmo recalcadas para fora da consciência nas neuroses e neuropsicoses, não deixam de exercer sua influência sobre o equilíbrio psíquico, atuando como fonte patogênica de comportamentos, pensamentos e estados afetivos. Dentre estas tendências, creio que o sadismo e seu oposto, o masoquismo[2], enquanto fatores imediatos das perturbações nervosas devem ocupar um lugar de destaque. O trabalho que se segue, deve ser considerado como uma tentativa de apresentação programática da pulsão agressiva e de suas fases, pulsão que deve ser entendida como estando na base do sadismo[3][4].

Até o presente momento, todo exame do sadismo e do masoquismo tomou por base manifestações sexuais associadas a traços de crueldade. No entanto, é evidente que, tanto nos indivíduos normais (caráter masculino da sexualidade), como nos perversos e também nos neuróticos (como veremos na sequência), a força pulsional tem sua origem em duas pulsões originalmente separadas, que mais tarde sofreriam um cruzamento [Verschränkung]. A resultante sadomasoquista deste cruzamento corresponde à [reunião de] duas pulsões, a pulsão sexual e a pulsão agressiva. Formas similares de cruzamento deste tipo podem ser normalmente encontradas na vida pulsional de pessoas adultas. Assim, a pulsão de nutrição [Eßtrieb] se mostra ligada à pulsão visual [Sehtrieb] e à pulsão olfativa [Riechtrieb] (ver, por exemplo, os resultados de Pavlov)[5], tal como a pulsão auditiva [Hörtrieb] se liga à pulsão visual (como nos casos de audition colorée[6] e de dom musical). Em suma, toda pulsão passível de ser notada se mostra ligada a uma ou a diversas outras pulsões que sobraram, um cruzamento que por vezes também inclui as pulsões excretórias de urinar ou de defecar [Harn- oder Stuhltrieb]. Nestas condições, “a pulsão” não deve senão significar uma abstração, uma soma das funções elementares dos órgãos a ela correspondentes e das vias nervosas a ela associada, cuja origem e desenvolvimento se dão em relação às imposições e exigências do mundo exterior e cuja meta [Ziel] é determinada pela satisfação das necessidades do órgão em questão e pela busca de prazer alcançada através daquilo que se mostra imediatamente disponível. Em todos aqueles indivíduos marcados por um traço de caráter particular, cuja fisiognomia geral [Gesamtphysiognomie][7] resulta de um cruzamento pulsional, onde uma ou diversas pulsões constituem o eixo central [Hauptachse] do psiquismo, a pulsão sexual desempenha um papel preponderante. O resultado de um grande número de psicanálises de pessoas normais, neuróticas, perversas, de artistas e de poetas vivos e mortos, revelam no tocante a sua vida pulsional e as suas manifestações os seguintes fatos passíveis de demonstração:

  1. A perseverança de toda pulsão e sua relação com outras pulsões podem ser atestadas com segurança ao longo e [mesmo] além de toda vida de um indivíduo, em sua hereditariedade. Esta constatação é de grande importância em se tratando de questões relativas à formação do caráter e a sua transmissão hereditária, assim como a problemas familiares e raciais, para a psicogênese das neuroses, da criação artística, da escolha profissional e do crime.
  2. O que das pulsões chega à consciência, seja em forma de ideias, desejos, anseios, seja em forma de palavras ou de atos manifestos, pode encontrar sua origem direta em uma ou diversas pulsões e sofrer transformações [Umwandlungen], refinamentos [Verfeinerungen] e especializações [Spezialisierungen] por influência da cultura (como no caso da sublimação em Nietzsche e Freud). Da mesma forma, uma pulsão pode por razões culturais ou até pela interferência de uma segunda pulsão ser inibida em sua tendência à expansão, de modo que, quando a pulsão se apresenta de maneira particularmente intensa, ela pode chegar a esgotar por completo todas as possibilidades de relação com seu meio, estendendo-se assim ao mundo de maneira ilimitada (inibição, por exemplo, da pulsão de observação [Schautrieb][8] em relação às fezes; inibição da pulsão de nutrição em função do odor de um alimento de cheiro forte – inibição pulsional em caso de relação inadequada; inibição da pulsão de observação na luta contra a masturbação). – Esta inibição pulsional deve ser considerada como uma potência [Leistung] psíquica ativa. Em casos de pulsões intensas, ela engendra fenômenos bastante característicos, ainda mais quando há a necessidade de conter a força pulsional através de uma contínua dispensa de energia psíquica. A inibição pulsional no inconsciente corresponde na consciência a fenômenos bastante característicos, dentre os quais se encontram alguns que foram particularmente explorados pela psicanálise[9]:
  3. Reversão da pulsão em seu contrário (por exemplo, à pulsão de nutrição no inconsciente corresponde no consciente a um sinal de aversão ao alimento; de modo quase análogo, a avareza e a esganação [Futterneide] podem corresponder à generosidade).
  4. Deslocamento da pulsão para uma outra meta [Ziel] (o amor (incestuoso) pelo pai no inconsciente corresponde no consciente a um interesse amoroso pelo professor, pelo médico, pelo primo, etc.; ou então o recalque vai ainda mais longe, levando a pulsão a assumir um caráter exclusivamente perverso – homossexual).
  5. Direcionamento da pulsão à própria pessoa (por exemplo, o recalque da pulsão de observação no inconsciente corresponde no consciente à pulsão de ser visto – exibicionismo – mas também, em casos mais avançados, as bases dos delírios de observação, de grandeza e de perseguição) na paranoia e na Dementia praecox.
  6. Deslocamento do foco a uma segunda pulsão forte, que na maior parte das vezes se manifesta na forma 1 (reversão da pulsão em seu contrário). Por exemplo, quando o recalque da pulsão sexual aumenta a atividade da pulsão de observação, de modo que, ou o individuo passa a ver símbolos sexuais por toda a parte, ou a visão consciente destes mesmos símbolos é, por exemplo, impedida através de crises nervosas de ausência, de ataques histéricos, de angústia em locais públicos [Platzangst][10], etc.

Uma importante variação da pulsão dirigida a própria pessoa (ver item 3 acima) forma a dita “visão ou escuta interior”, que nesse contexto se liga à lembrança, à intuição, à introspecção, ao pressentimento, à ilusão, à alucinação e à angústia.

Essas observações são de grande importância para a compreensão da cultura, da religião, da consciência, do esquecimento, da moral, da ética, da estética, da angústia, assim como dos sintomas que resultam do recalque nas psiconeuroses[11].

III. A psicanálise nos permite retraçar cada uma das pulsões a uma atividade orgânica primária [primäre Organbetätigung], colocada em ação a fim de obter prazer. Estas atividades orgânicas primárias compreendem o desempenho não inibido dos órgãos dos sentidos, do trato digestivo, do aparelho respiratório, do aparelho urinário, do aparelho locomotor e dos órgãos sexuais. O conceito de “prazer sexual” deve neste caso ser exclusivamente atribuído às sensações do aparelho sexual; mais tarde, todo sentimento orgânico poderá se manifestar de maneira associada à sexualidade, em razão do “cruzamento pulsional” mencionado acima. A superestrutura psíquica [psychische Überbau][12] tem sua origem na inibição [provocada por influência] da cultura, que passa a considerar como válidos apenas certos caminhos bem definidos para a obtenção do prazer. Nesta superestrutura, cujo substrato orgânico coincide com certas porções de fibras nervosas aferentes e eferentes e de células nervosas ligadas a diferentes órgãos, se encontram as possibilidades e as potencialidades para a realização de certas funções [Leistungen] nos indivíduos normais e neuróticos. Este aparelho, podendo se desenvolver até certa idade, normalmente se desenvolve até o ponto de permitir, de uma forma ou de outra, a satisfação das demandas de prazer do órgão – isto é, das pulsões do órgão. Neste sentido, a fim de obter prazer, tal aparelho tende a se desenvolver em proporção à força pulsional em jogo. Assim, seguindo motivos egoístas, suas estratégias de desempenho se adaptam à cultura (na consciência: “representação lógica”[13]), o que é facilitado pela seleção e pela mistura de sangues, e, portanto, pela hereditariedade. Em todo caso, o sistema nervoso central enquanto superestrutura psíquica dos órgãos se encarregou da compensação do déficit no ganho de prazer primário no órgão.

Sendo assim, quanto mais forte for a pulsão, maior será também a tendência à formação e ao desenvolvimento de sua superestrutura orgânica correspondente. Como se dá esse superdesenvolvimento [Überentwicklung], o que este aparelho ganha em sua luta com o mundo externo, como se opera o recalque nestes casos de constelação necessária (pulsão de observação contra a pulsão de alimentação [Freßtrieb], por exemplo) e de transtorno de compensação (psicoses), são questões que tentei responder em meu Estudo sobre a inferioridade dos órgãos[14]. Neste mesmo trabalho, descrevi ainda como um órgão, a fim de satisfazer suas necessidades, se vê obrigado a percorrer outras vias, assumindo muitas vezes um novo modo de funcionamento diante dos imperativos do mundo exterior e da influência de fortes pulsões concorrentes. Será por essas vias que vai se dar, por exemplo, a formação do cérebro de um artista ou de um gênio, assim como também – quando a compensação não está a altura da tendência recalcadora, não podendo contorná-la com sucesso – a formação de uma neurose.

Por outro lado, a hereditariedade da potencialidade de um órgão [Organwertigkeit], tal como a hereditariedade da força pulsional a ele ligada, ambas asseguradas, nos levam a concluir que uma intensa luta pela afirmação de um dado órgão tivera lugar no curso de uma longa linhagem ancestral. Considerando que esta luta não tenha sido sem consequências para o órgão, e que os órgãos afetados neste processo, ao longo da linhagem ancestral, correspondem a uma disposição germinal [Keimanlage][15] na descendência, nós podemos deduzir tanto da biologia como do estudo de casos clínicos [Kasuistik] que estes mesmos órgãos contêm traços desses desgastes (hipoplasia) e marcas de compensação (hiperplasia). Hoje, após as lutas que tiveram lugar nos primórdios da humanidade, nós temos que lidar com disposições germinais modificadas por este mesmo processo, de modo que todo órgão carrega em si a marca dos perigos e dos danos sofridos pela sua respectiva linhagem ancestral (eis os fundamentos da fisiognomia)[16]. Posto que, por um lado, a tensão entre a matéria orgânica e a pulsão e, por outro, as exigências do mundo externo determinaram fundamentalmente a potencialidade [Wertigkeit] “relativa” de um órgão[17], o dano mais profundo vivido pela linhagem ancestral (doença, sobrecarga de trabalho, abundância ou privação) fará dele um órgão inferior, refletindo assim os traços de um combate travados ao longo de gerações. – Estes traços foram por mim acompanhados e então identificados no órgão enquanto tal da seguinte forma: tendência à manifestação de doenças, estigmas e signos de degenerescência[18], formações hipoplásticas e hiperplásticas, más-formações infantis e anomalias nos fenômenos reflexos. Assim, a investigação orgânica tornou-se para nós um importante instrumento capaz de revelar a força pulsional: a inferioridade dos olhos enquanto órgãos da visão implica uma poderosa pulsão de observação, assim como a inferioridade do trato digestivo uma poderosa pulsão de nutrição e de hidratação [Trinktrieb], e a inferioridade do órgão sexual uma poderosa pulsão sexual.

Ora, estas exigentes pulsões, ávidas pela obtenção de prazer, determinam em função de sua intensidade a posição da criança face ao mundo exterior. Todo o seu universo psíquico, assim como suas capacidades psíquicas, nascem desta relação, e nós podemos testemunhar desde muito cedo a emergência no psiquismo infantil de fenômenos superiores ligados a esta tensão. A pulsão de observação (e a pulsão auditiva) conduz à curiosidade e ao anseio de saber; em seu direcionamento à própria pessoa, estas pulsões levam à vaidade e à megalomania infantil; em sua reversão em seu contrário, elas dão origem à vergonha (cruzamento com a pulsão sexual!). A pulsão de nutrição define a relação com o alimento, levando à esganação, à avareza ou à mesquinhez; quando ela se volta à própria pessoa, pode provocar a ausência de necessidades; através da reversão em seu contrário, pode levar à generosidade, etc. Tudo isso pode se apresenta de forma tanto mais clara e variada em função da potência da pulsão em desenvolvimento, de modo que o órgão inferiorizado passa a esgotar todas as formas possíveis de atuação, atravessando assim todas as fases de transformação pulsional. Pois também o conflito com o mundo exterior, seja ele motivado por experiências marcadas pelo desprazer, seja por influência de uma demanda a bens culturais interditados, resulta invariavelmente em órgãos inferiorizados, desencadeando assim a transformação pulsional. Neste sentido, seria o caso de minimizar a importância atribuída às experiências infantis (Freud)[19] ou a sua variedade (Abraham)[20] na produção de sintomas neuróticos, isso na medida em que toda pulsão particularmente forte, assim como seus limites (enquanto desejo e suas inibições) se manifestam com a mais absoluta clareza, e no que a experiência vivida – em geral esquecida – impede, como um vigia no inconsciente, a expansão necessária das exigências pulsionais sobre o mundo exterior (psiquismo infantil dos neuróticos), provocando transformações pulsionais significativas (ascese). Em suma, o destino da humanidade, e com isso a predestinação à neurose no interior de uma sociedade média e culturalmente homogênea e marcada pelas mesmas exigências culturais, pode ser considerado como dependente da inferioridade de um determinado órgão.

Ora, já na primeira infância – podemos mesmo dizer desde o primeiro dia (primeiro grito) – encontramos um posicionamento [Stellung] da criança face ao mundo exterior que não pode ser senão caracterizado como sendo de natureza hostil[21]. Examinando os fundamentos desta posição, notamos que ela está ligada à dificuldade em prover prazer ao órgão. Esta condição, assim como as demais relações da posição hostil e combativa do indivíduo em relação ao seu entorno, nos revela no final das contas que a pulsão que almeja a todo custo obter aqui satisfação – neste caso a “pulsão agressiva”, como decidi chamá-la – não está mais diretamente ligada ao órgão e à sua tendência de buscar prazer, mas sim à totalidade da superestrutura psíquica. Assim, representando um nível psíquico superior, onde as pulsões se encontram todas ligadas e no qual – o caso mais simples e mais frequente de deslocamento do afeto – uma excitação pendente será descarregada [em forma de pulsão agressiva] tão logo seja impedida a satisfação da pulsão [orgânica] primária. Às mais fortes pulsões, então resultantes de uma inferioridade orgânica, normalmente correspondem às mais fortes pulsões agressivas. Estas últimas representam uma soma de sensações e de excitações acompanhadas de descarga (como na “descarga motora” de Freud nos casos de histeria), cujo substrato orgânico e funcional será considerado nos seres humanos como inato[22]. Tal como nas pulsões [orgânicas] primárias, a excitação que caracteriza a pulsão agressiva emerge da relação entre a força pulsional e as exigências do mundo externo. O que resulta desta relação fora fixado pela cultura, que em última instância busca a satisfação das pulsões [orgânicas] primárias. Assim, o equilíbrio instável da psique será constantemente restaurado quando a pulsão [orgânica] primária for satisfeita através da excitação e da descarga da pulsão agressiva. Neste processo [Leistung], podemos normalmente observar o trabalho das duas pulsões em questão (por exemplo, pulsão de nutrição e pulsão agressiva: caça). A pulsão agressiva será excitada de modo particularmente intenso pelas pulsões [orgânicas] primárias cuja satisfação não pode esperar muito tempo, como é o caso da pulsão de nutrição e de hidratação, e como pode por vezes ser também o caso da pulsão sexual e da pulsão de observação (vaidade) e, mais especialmente, quando essas pulsões se encontram associadas a uma inferioridade orgânica. O mesmo vale para as dores corporais e psíquicas, que de maneira indireta (pela inibição pulsional) ou direta (por uma excitação de desprazer) impedem em grande parte a atividade orgânica primária de buscar prazer. Assim, tal como se dá em relação às pulsões [orgânicas] primárias, a meta [Ziel] e o destino [Schicksal] da pulsão agressiva se encontram submetidos à inibição imposta pela cultura, de modo que as mesmas fases e transformações podem ser também observadas no caso desta última. Ora, em sua forma pura, a pulsão agressiva se expressa no quebra-pau [Raufen], em socos e pontapés, em mordidas e em atos cruéis. Formas mais especializadas e refinadas de sua expressão levam ao esporte, à concorrência, ao duelo, à guerra, à tirania, às lutas religiosas, sociais, civis e raciais (Lichtenberg diria algo como: “é curioso notar como homens e mulheres raramente e a contragosto seguem os preceitos de suas religiões ao passo que com facilidade e de bom grado decidem se afrontar em defesa dos mesmos”)[23]. – O retorno [Umkehrung] da pulsão contra a própria pessoa produz traços de humildade, de servidão, de devoção, de submissão, de autoflagelação, de masoquismo. A esses traços podemos ainda sem dúvida associar certos traços de caráter notáveis presentes na cultura, como docilidade [Erziehbarkeit], a fé na autoridade, assim como a sugestionabilidade e a suscetibilidade hipnótica. O limite extremo aqui é o suicídio.

É bastante visível que a pulsão agressiva domina toda motilidade. – No entanto, que ela comande, como toda pulsão, também certas vias [nervosas] ligadas à consciência (provocando a ira, por exemplo); e que na consciência ela passe a dirigir a atenção, os interesses, as sensações, a percepção, as lembranças, as fantasias, a produção e a reprodução às vias da agressão pura ou transformada,contando para tal com a ajuda de outras pulsões, principalmente daquelas oriundas de órgãos inferiorizados (injúrias em caso de inferioridade do aparelho fonador; sarcasmo) que se encontram na base das operações psíquicas [psychischen Hauptachsen], explorando todo universo de possibilidades das manifestações agressivas; tudo isso pode ser normalmente observado em uma vida pulsional relativamente forte. Em casos deste tipo, pude sempre atestar, entre outras coisas, capacidades e tendências telepáticas e, neste sentido, estou pronto a afirmar com base em minhas psicanálises que a telepatia advém de uma forte pulsão agressiva, que permite uma maior capacidade de encontrar solução em situações de risco, conferindo também uma considerável capacidade intuitiva: a arte do prognóstico e do diagnóstico.

Tal como ela está na base dos horrores da história universal [Weltgeschichte] e das vidas individuais, a pulsão agressiva em estado moderado e excitado pode conduzir a concepções cruéis na arte e na imaginação. A psicanálise de pintores, escultores e especialmente de poetas trágicos, artistas que buscam provocar “temor e compaixão” [Furcht und Mitleid][24] com suas obras, nos demonstra o cruzamento de pulsões originalmente fortes, pulsões visuais, auditivas (e táteis), que se manifestam em formas altamente refinadas dos processos [Umweg] pelos quais passam a pulsão agressiva, exibindo assim uma imagem bastante emblemática das transformações pulsionais que caracterizam tais processos. No caso da escolha de um grande número de profissões – para não falar de criminosos e de heróis revolucionários – uma forte pulsão agressiva parece desempenhar um papel importante [schafft und erwählt sich]. A carreira de juiz, a profissão de policial, a carreira docente e pastoral (inferno!), o domínio da saúde em geral, assim como muitas outras profissões são escolhidas por aqueles indivíduos sujeitos a pulsões agressivas particularmente intensas. Tais escolhas estão em continuidade com brincadeiras infantis análogas. Não nos surpreende que, este tipo de influência, na maior parte das vezes de importância capital, seja suficiente para a transformação pulsional (reversão em seu contrário, por exemplo), assim como parece também ocorrer no caso do artista que encontra fuga no idílio. São especialmente concebidos pela e para a pulsão agressiva os jogos infantis, o mundo fantástico dos contos de fada e de seus adoráveis personagens, o circuito das crenças populares, o culto aos heróis e as diversas e incontáveis narrativas sombrias encontradas com frequência na literatura infanto-juvenil. Outro terreno fértil para o cultivo das pulsões agressivas se encontra na política, com suas inúmeras possibilidades de manobra e de interpretações lógicas de ataques. A eleição de Napoleão como herói glorioso, o interesse pelos cortejos fúnebres e pelos anúncios de morte, a superstição, o temor das doenças e das infecções, assim como o medo de ser enterrado vivo e o interesse por cemitérios, revelam com frequência, a despeito do recalque da pulsão agressiva, o jogo secreto do prazer pela crueldade.

Se a pulsão agressiva se retirar de cena através do retorno à própria pessoa, algo que ocorre pelo seu refinamento e especialização como observamos com frequência, a reversão em seu contrário (a antítese da pulsão agressiva) acaba se transformando em uma espécie de enigma visual [Vexierbild][25]. A misericórdia, a compaixão, o altruísmo, assim como o interesse pela miséria alheia, não representam senão novas formas de satisfação nutridas pela pulsão originalmente dirigida àquilo que há de mais cruel. Isso pode parecer estranho, mas plausível se reconhecermos que apenas aqueles que carregam em si mesmos um interesse genuíno por aquilo que existe de mais sombrio sejam capazes de realmente compreender o que é da ordem do sofrimento e da dor. Tal forma de transformação mediada pela cultura se produz de modo particularmente intenso em casos de forte pulsão agressiva. É assim que o pessimista torna-se aquele capaz de melhor nos prevenir contra o perigo, e que Cassandra torna-se capaz de melhor nos advertir e de profetizar[26]. Todas estas formas de manifestação da pulsão agressiva, seja em sua forma pura, seja no retorno à própria pessoa e também na reversão em seu contrário acompanhada de expressão visível de uma forma inibida de manifestação da agressão (abulia; impotência psíquica), podem ser encontradas nas neuroses e nas psicoses. Limito-me aqui a fazer menção às crises e ataques de fúria na histeria, na epilepsia, na paranoia como expressão pura da pulsão, [ao passo que] a hipocondria, as dores histéricas e neurastênicas, assim como o sentimento mórbido geral da neurastenia, da histeria, das neuroses traumáticas [Unfallsneurose][27], dos delírio de observação, das ideias de perseguição, das [auto]mutilações e suicídio como fases do retorno pulsão agressiva contra a própria pessoa e, em caso de reversão em seu contrário, aos traços de clemência e às ideias messiânicas dos histéricos e psicóticos.

Na sequência desta discussão sobre a forma de retorno contra a própria pessoa, devo ainda fazer menção a outro fenômeno de grande importância para se compreender a estrutura da neurose: a angústia. Ela representa uma fase da pulsão agressiva dirigida à própria pessoa e não pode ser comparada senão com a fase alucinatória de outras pulsões. A angústia pode assumir diferentes formas, dado que a pulsão agressiva que a fundamenta pode se apoderar de diferentes sistemas. Assim, ela pode inervar o sistema motor (provocando tremor, gagueira, contraturas tônicas e clônicas[28] e manifestações catatônicas; pode provocar paralisias funcionais em caso de inibição da agressão); assim como excitar o sistema vasomotor (provocando palpitações, palidez, rubor); ou ainda outras vias [nervosas], provocando transpiração, incontinência urinária ou fecal e vômitos, ou então, em caso de inibição, impedindo secreções. Se ela atinge a consciência, tende a engendrar fenômenos conscientes ligados à coordenação de vias [nervosas] inferiorizadas, provocando o aparecimento de ideias obsessivas e marcadas pela angústia, de alucinações sensoriais, da aura [histérica][29] e de imagens oníricas. – mas em todos estes casos, será sempre orientada em direção aos órgãos inferiorizados, assim como a sua superestrutura [psíquica] correspondente, à bexiga, aos intestinos, à laringe, ao aparelho motor, aos órgãos responsáveis pela respiração (provocando asma), à circulação sanguínea, de modo a possibilitar que nos ataques o eixo central do psiquismo [psychischen Hauptachsen] do paciente [des Erkrankten] possa aparecer novamente. – Durante o sono, na perda de consciência e na ausência observada em casos de histeria e epilepsia, notamos o mais elevado grau de inibição da agressão.

Além das pulsões [orgânicas] primárias, a dor poderá também desencadear a pulsão agressiva, assim como – tal como se revela na relação entre as suas diferentes manifestações – se apropriar, em caso de redirecionamento a própria pessoa, de vias [nervosas] envolvidas na dor produzindo – a depender do grau de inferioridade do órgão em questão – enxaquecas, clavus[30], nevralgia do trigêmeo, dores nervosas na região do estômago, do fígado, dos rins e do apêndice (assim como: eructação, bocejo, soluço, vômito e gritos nervosos). Através da psicanálise, é possível encontrar a inibição pulsional como causa desencadeante, a qual também costuma anteceder tais crises de dor ou sucedê-las após um sonho de agressão [Aggressionstraum][31] acompanhado ou não de angústia e, por vezes ainda, o quadro clínico se vê modificado por sintomas passageiros ou persistentes de insônia, cuja causa imediata pode ser atribuída à não satisfação da pulsão agressiva.

Especialmente durante a infância, as irradiações motoras da pulsão agressiva são bastante evidentes. Gritar, espernear, se jogar no chão, morder, ranger, etc. são consideradas como formas simples dessas pulsões que não raro encontramos também na crise neurótica, em particular na histeria. 


*Alfred Adler é… Alfred Adler.


**Caio Padovan é Psicólogo, doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Atualmente é professor de Psicologia clínica na Universidade de Montpellier 3 e pesquisador associado do Centre de recherche psychanalyse, médecine et société (CRPMS) e do Laboratoire Epsylon (Dynamiques des capacités humaines et des conduites de santé).


***Julia Joergensen Schlemm é psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia clínica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutoranda em Filosofia da Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).



[1][N.T. Normalmente, em se tratando de textos psicanalíticos, o termo alemão Regungé traduzido por “excitação”. No entanto, neste caso, sendo a perversão um fenômeno psíquico de natureza qualitativa, optamos pelo uso do termo português “tendência”. Considerando a complexidade do artigo de Adler, fomos obrigados a realizar ao longo desta tradução uma série de conseções deste tipo, as quais foram devidamente sinalizadas. Algumas adaptações sintáticas visando garantir a inteligibilidade do texto foram também realizadas. Aproveitamos para anunciar aqui que um trabalho contendo esclarecimentos de ordem mais conceitual e histórica sobre a teoria adleriana da pulsão está sendo preparado pelos tradutores e deverá ser publicado em breve].

[2]Ver: Freud, S. (1905). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 83 p. [N.T. Chamamos a atenção aqui para o fato de que, na nota original de Adler, consta na referência a data de 1906 e “Berlin” no lugar de “Lepzig”].

[3][N.T. Sabemos que antes de ser publicado em forma de artigo, no mês de julho, em uma revista médica alemã, o conteúdo deste trabalho fora primeiramente apresentado em forma de comunicação no contexto do primeiro congresso psicanalítico internacional, realizado entre os dias 26 e 27 de abril de 1908 no Hotel Bristol de Salzburg. Segundo a programação do evento, a conferência de Adler, intitulada “As expressões do sadismo na vida e na neurose” [Sadismus im Leben und Neurosen], seria pronunciada no dia 27. Sob o mesmo título, esta mesma comunicação seria ainda discutida pela então recentemente criada Sociedade psicanalítica de Viena (antiga Sociedade psicológica das quartas-feiras, criada em 1902) no dia 3 de junho deste mesmo ano. Tal como consta na ata da Sociedade, uma reunião informal sobre este trabalho seria ainda realizada no dia 10 de junho, na “Schultzengel” (talvez uma referência ao apoticário homônimo de Viena) da “Hohe Warte”, colina situada ao norte de Viena. A este respeito, ver: Nunberg, H. Federn, E. Nunberg, M. (2008). Protokolle der Wiener Psychoanalytischen Vereinigung, Vol. 1. Gießen: Psychosozial-Verl, 385 p., assim como a sua tradução brasileira: CHECCHIA, Marcelo. TORRES, Ronaldo. Hoffmann, W. (org.). (2015). Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena, volume I, Os primeiros psicanalistas 1906-1908. São Paulo: Scriptorum, 583 p.].

[4][Nota dos tradutores (N.T.): Artigo originalmente publicado em Adler, A. (1908). “Der Aggressionstrieb im Leben und in der Neurose”, Fortschritte der Medizin, 26(19), pp. 577-584. Ele será reeditado com pequenas mais importantes modificações em 1914, na coletânea: Adler, A. Furtmüller, C. (1914). Heilen und Bilden. Ärztlich-pädagogische Arbeiten des Vereins für Individualpsychologie. München: Ernst Reinhardt, 399 p. Mais tarde, o mesmo trabalho sera publicado com modificações significativas na segunda e na terceira edições da coletânea supracitada. A este respeito ver: Wexberg, E. (org.). (1928). Adler – Furtmüller. Heilen und Bilden, ein Buch der Erziehungskunst für Ärzte und Pädagogen. München: J.F. Bergmann, 3ª edição, 355 p. Mais recentemente, o artigo de Adler sobre a pulsão agressiva sera reimpresso no primeiro tomo de suas obras completas editadas em sete volumes pela psicanalista Almuth Bruder-Bezzel: Adler, A. (2007). Persönlichkeit und neurotische Entwicklung: frühe Schriften, 1904-1912. Studienausgabe/Alfred Adler, vol. 1. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 291 p.].

[5][N.T. O autor faz referência aqui aos recentes trabalhos publicados por Ivan Pavlov (1849-1936) sobre os reflexos condicionados, em particular: Pavlov, I. (1904). “De la sécrétion psychique des glandes salivaires (phénomènes nerveux complexes dans le travail des glandes salivaires)”, Archives internationales de physiologie, 1, pp. 119-135].

[6][N.T. “Audição em cores”, no original em francês. Tal fenômeno foi descrito pela primeira vez nestes termos pelo assistente de oftalmologia da Escola de médicina de Nantes, Louis-Marie Pédrono, em: Pédrono, L-M. (1882). “De l’audition colorée”, Journal de Médecine de l’Ouest, 14(2,6), pp. 294-311. Para uma visão geral sobre o assunto ver: Suárez de Mendoza, F. (1890). L’audition colorée, étude sur les fausses sensations secondaires physiologiques et particulièrement sur les pseudo-sensations de couleurs associées aux perceptions objectives des sons. Paris: Octave Doin, 163 p.].

[7][N.T. Enquanto disciplina dedicada ao estudo das correlações entre aparência física e personalidade, a Fisiognomia seria popularizada no final do século XVIII pelo teólogo suíço Johann Caspar Lavater (1741-1801), através de sua obra intitulada Fragmentos de physiognomia, publicada em quatro volumes entre 1775 e 1778. A este respeito, ver Lavater, J.C. (1775-8). Physiognomische Fragmenten, zur Beförderung der Menschenkenntniss und Menschenliebe, 4 vol. Leipzig, Winterthur: Weidmann und Reich. No início do século XIX, a fisiognomia será rapidamente associada à Frenologia de Franz Joseph Gall (1758-1828). A partir dos anos 1870, no entanto, com a publicação de A expressão das emoções nos homens e nos animais em 1872, Charles Darwin (1809-1882) estabelecerá novos princípios para o estudo deste mesmo tipo de correlação. Ver: Darwin, C. (1872). The Expression of the Emotions in Man and Animals. London : John Murray, 374 p. No contexto da medicina de língua alemã, Théodor Meynert (1833-1892), professor de psiquiatria na Faculdade de medicina de Viena, discutirá a fisiognomia em seu tratado de 1884 desde um ponto de vista psicopatológico. Ver a este respeito, Meynert, T. (1884). Psychiatrie. Klinik der Erkrankungen des Vorderhirns, begründet auf dessen Bau, Leistungen und Ernährung. Wien: Wilhelm Braumüller, 288 p. As considerações de Adler a este respeito se inserem claramente nesta mesma tradição].

[8][N.T. Trata-se aqui do mesmo termo empregado por Freud na primeira edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. A este respeito ver Freud, S. (1905). Ibid., p. 45. Tal expressão, normalmente traduzida para o português como “pulsão escópica”, ganhará grande notoriedade no contexto da psicanálise lacaniana a partir dos anos 1960].

[9][N.T. Notamos aqui que as mesmas noções desenvolvidas por Adler em 1908 serão retomadas (em alguns casos de maneira literal) sete anos mais tarde por Freud, em: Freud, S. (1915). “Triebe und Triebschicksale”, Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse, 3(2), pp. 84-100, p. 90. A título de exemplo, podemos citar aqui a “reversão da pulsão em seu contrário” [Verkehrung der Triebes in sein Gegenteil] de Adler, retomada por Freud a partir da expressão “reversão em seu contrário” [Verkehrungs ins Gegenteil], assim como o “direcionamento da pulsão à própria pessoa”[Richtung des Triebes auf die eigene Person] de Adler, que seria retomada por Freud a partir da expressão “transformação em direção à própria pessoa” [Wandlung gegen die eigene Person]].

[10][N.T. É interessante notar que, ao invés de utilizar a categoria de Agoraphobie, introduzida em 1871 por Carl Westphal (1833-1890) e normalmente utilizada na época para fazer referência ao fenômeno em questão, Adler opta pelo uso de Platzangst, talvez em referência à categoria de Platzschwindelou “vertigem em locais públicos”, proposta em 1870 pelo médico vienense Moriz Benedikt (1835-1920) em Benedikt, M. (1870). “Über „Platzschwindel“”, Allgemeine Wiener medizinische Zeitung, 15, pp. 488-489].

[11][N.T. Tal como Freud, como vemos mais acima – e como veremos mais abaixo –, Adler faz uso diferencial das categorias de Psiconeurose e Neuropsicose].

[12]A este respeito, ver Adler, A. (1907). Studie über Minderwertigkeit von Organen. Berlin und Wien: Urban & Schwarzenberg, 92 p., p. 61ss. [N.T. Adler faz referência aqui ao sexto e último capítulo de sua obra, intitulado “O papel desempenhado pelo sistema nervoso central na teoria da inferioridade orgânica – psicogênese e fundamentos das neuroses e neuropsicoses” (pp. 61-74)].

[13]Ver: Adler, A. (1905). “Drei Psycho-Analysen von Zahleneinfällen und obsedierenden Zahlen”, Neurologisch- psychiatrische Wochenschrift, 7(28), pp. 263-266. [N.T. Ver em particular a última frase do último parágrafo deste texto (p. 266). Sabemos que este mesmo fenômeno será também estudado por Adler em outros textos, como Adler, A. (1909). “Über Neurotische Disposition: zugleich ein Beitrag zur Ätiologie und zur Frage der Neurosenwahl”, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen, 1, pp. 526-545, e em Adler, A. (1911). “Beitrag zur Lehre vom Widerstand”, Zentralblatt für Psychoanalyse, 1, pp. 214-219. O estabelecimento de um paralelo aqui com a noção de “racionalização” proposto inicialmente por Ernest Jones, em Jones, E. (1908). “Rationalization in every-day life”, Journal of abnormal psychology, 3(3), pp. 161-169, é evidente].

[14]Adler, A. (1907). Ibid.

[15][N.T. Sem dúvida, essa noção possui íntima relação com a teoria do “plasma germinativo” [Keimplasma], desenvolvida por August Weismann (1834-1914) nos anos 1880, mais precisamente e de maneira definitiva em Weismann, A. (1892). Das Keimplasma. Eine Theorie der Vererbung. Jena: Fischer, 629 p. Freud faria referência à mesma ideia, utilizando o conceito de plasma germinativo, em seu artigo sobre o Narcisismo, publicado 1914, assim como em outros momentos de sua obra. A este respeito ver, principalmente, Freud, S. (1914). “Zur Einfuhrung des Narzißmus”, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen, 6, pp. 1-24, p. 5. Apesar de ser considerada como um importante antecedente da noção moderna de gêne, o conceito de plasma germinativo não exclui completamente a hipótese da transmissão dos caracteres adquiridos, não sendo tão pouco incompatível com o pensamento darwinista da segunda metade do século XIX. A este respeito, ver Pichot, A. (1999). Histoire de la notion de gène. Paris : Flammarion, 344 p.].

[16][N.T. Ver nota mais acima sobre o assunto].

[17][N.T. O termo Wertigkeit, que traduzimos aqui por “potencialidade”, é o mesmo que será usado no início deste parágrafo na composição da palavra Organwertigkeit, então traduzida como “potencialidade do órgão”. Lembramos que essa noção se associa à ideia de “função” ou “desempenho” [Leistung], ligada por sua vez à superestrutura psíquica (cujo substrato é orgânico), assim como à ideia de Minderwertigkeit, que traduzimos por “inferioridade do órgão” e que está no título da importante obra de Adler publicada em 1907, O estudo sobre a inferioridade dos órgãos].

[18][N.T. Referência à “teoria da degenerescência” desenvolvida por Bénédict-Augustin Morel (1809-1873) nos anos 1850, popularizada em Morel, B-A. (1860). Traité des maladies mentales. Paris: Victor Masson, 866 p., e ainda presente no discurso psicopatológico do início do século XX, sobretudo através das obras de Valentin Magnan (1835-1916) na França e de Emil Kraepelin (1956-1926) na Alemanha].

[19][N.T. Referências de Adler aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de Freud, publicados em 1905]

[20][N.T. Referência provável de Adler à: Abraham, K. (1907). “Das Erleiden sexueller Traumen als Form infantiler Sexualbetätigung”, Zentralblatt für Nervenheilkunde und Psychiatrie, 30, pp. 854-865].

[21][N.T. Raciocínio bastante próximo àquele desenvolvido por Freud em seu manuscrito de psicologia científica de 1895, ligada à condição de “desamparo” do bêbe recém-nascido face ao mundo externo. Mais conhecido em Brasil pelo título Projeto para uma psicologia científica, este manuscrito será publicado pela primeira vez em Freud, S. (1950). Aus den Anfängen der Psychoanalyse: Briefe an Wilhelm Fliess, Abhandlungen und Notizen aus den Jahren 1887-1902. London: Imago, 477 p.].

[22][N.T. A este respeito ver o capítulo 1 e principalemente o capítulo 3 (debate sobre a histeria reflexa) em Breuer, J. Freud, S. (1895). Studien über Hysterie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 269 p.].

[23][N.T. Trata-se aqui de um famoso aforismo de Georg Christoph Lichtenberg (1742-1799). Em seu artigo, Adler o cita de maneira aproximada nos seguintes termos: „Es ist merkwürdig, wie selten und ungerne die Menschen nach ihren religiösen Geboten leben und wie gerne sie für dieselben kämpfen“. No original de Lichtenberg, publicado em uma coletânea póstuma organizada por seu filho Ludwig Christian, podemos ler a seguinte passagem: “ist es nicht sonderbar, daß die Menschen so gerne für die Religion fechten, und so ungern noch ihren Vorschriften leben ?”. Para esta citação, ver: Lichtenberg, L.C. Kries, F. (org.). (1801). Gerg Christoph Lichtenberg’s Vermischte Schriften nach dessen Tode aus den hinterlassenen Papieren gesammelt und herausgegeben von Ludwig Christian Lichtenberg und Friedrich Kries, vol. 2.Göttingen : Dieterichschen Buchhandlung, 460 p., p. 167.

[24][N.T. Referência de Adler à Poética de Aristóteles, provavelmente através dos escritos de Jacob Bernays (1824-1881). Em seus Dois ensaios sobre a teoria aristotélica do drama, Bernays propõe Fucht e Mitleid, “temor e compaixão”, para traduzir dois termos-chave da poética de Aristóteles, a saber, phobos e eleos. Segundo o filósofo grego, a tragédia será definida como “a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a catarse de tais paixões” (utilizamos aqui uma versão ligeiramente modificada da tradução de Ana Maria Valente, em: Aristóteles (2004). Poética. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 123 p., p. 47-8. Um breve comentário sobre as noções de temor e de compaixão, assim como a relação destes dois afetos com a noção de “catarse”, se encontra no prefácio à obra em questão, escrito por Maria Helena da Rocha Pereira). Para o estudo de Jacob Bernays – tio de Martha Bernays, futura esposa de Freud – ver: Bernays, J. (1880). Zwei Abhandlungen über die aristotelische Theorie des Dramas. Berlin: Wilhelm Hertz, 187 p.].

[25][N.T. Segundo o influente dicionário alemão de Jacob e Wilhelm Grimm, editado entre os séculos XIX e XX, o termo Vexierbild designa uma forma muito particular de enigma visual, “uma imagem que contém em seus traços elementos de dissimulação” e que, por vezes, imprime um sentido macabro por detrás de uma imagem sedutora. Ora, considerando a passagem do texto questão – que evoca a noção de reversão de uma pulsão em seu contrário – a metáfora não poderia ter sido mais bem empregada pelo autor. Para o verbete de dicionário, consultar a versão online do Deutsches Wörterbuch von Jacob Grimm und Wilhelm Grimm, estabelecida pela Universidade de Trier].

[26][N.T. Referência ao mito grego de Cassandra].

[27][N.T. O termo Unfallsneurose, literalmente “neurose acidental”, era usado na época a fim de designar os casos de névrose traumatique descritos nos anos 1880 por Jean-Martin Charcot (1825-1893). Para uma discussão a este respeito, ver: Bruns, L. (1901). Die traumatischen Neurosen – Unfallsneurosen. Wien: Alfred Hölder, 131 p. Como nos mostra este autor, o uso diferencial destas duas designações estava ligada a diferentes concepções sobre a natureza dos sintomas próprios ao quadro clínico em questão].

[28][N.T. Referência aos dois primeiros períodos do Grande ataque histérico (período “epileptoide” e período dos “grandes movimentos”), descritos pela primeira vez de maneira completa por Richer, P. (1879). Étude descriptive de la grande attaque hystérique ou attaque hystéro-épileptique et de ses principales variétés. Thèse de médecine à la Faculté de médecine de Paris, 193 p., sob a orientação de Charcot. Desde muito cedo, Freud associa diferentes sintomas manifestos durante o grande ataque histérico a elementos de natureza psicológica, tal como podemo ler em Breuer, J. Freud, S. (1893). “Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene”, Wiener medizinische Blätter, 16(3), pp. 33-35, (4), pp. 49-51].

[29][N.T. Referência a um dos fenômenos prodrômicos que, segundo Charcot e seus alunos, precede o ataque histérico propriamente dito em seus quatro períodos. Para uma descrição completa da chamada Aura hystérique, ver Richer, P. (1885). Études cliniques sur l’hystéro-épilepsie ou grande hystérie. Paris: Adrien Delahaye et Émile Lecrosnier, 2ème Édition, 975 p., p. 24-30].

[30][N.T. Forte dor de cabeça que não se confunde com a enxaqueca].

[31][N.T. Terminologia inusual em psicanálise. Adler faz provavelmente referência aqui a sonhos cujo conteúdo inclui cenas ou atos de agressão].




COMO CITAR ESTE ARTIGO | ADLER, Alfred (1908) As expressões da pulsão agressiva na vida e na neurose [Trad. C. Padovan e J. J. Schlemm]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -6, p. 9, 2018. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2018/12/10/n06-09/>.