Entrevista | Juca Kfouri

uma entrevista com Juca Kfouri

LACUNA | Paulo Beer (entrevistador)

Entrevistar Juca Kfouri é reconhecer que um tratamento sério e implicado das questões públicas consiste num elemento essencial da construção de uma vida social que escape à mera reprodução. Formado em Ciências Sociais, Juca ganhou notoriedade como editor da revista Placar, onde pôde colocar em ação sua tese de que o futebol apresenta grande potencial de mobilização social. Transitando muito além das quatro linhas do campo, Juca estabelece um debate nada distante do pensamento psicanalítico ao questionar separações tradicionais entre práticas críticas e alienantes. Não é à toa que, ao lado de seu jornalismo investigativo que mudou irreversivelmente a cobertura esportiva no país, ele também faz jus a sua história política, sendo uma das vozes que trazem algum tipo de crítica ao modo como a informação é capturada por agendas conservadoras.

LACUNA | Em nosso contato por e-mail você comentou que havia passado por três processos de psicoterapia. Como foi?

Juca Kfouri | Veja… eu comecei a fazer terapia eu tinha 39 anos. Eu estava no meu segundo casamento. Tive uma paixão, fiquei divididíssimo entre a minha mulher, com quem estou até hoje, e esta paixão, e procurei ajuda terapêutica. Com o doutor Mezher, que foi um dos introdutores da terapia de grupo em São Paulo. Doutor Anibal Mezher. [Psicodramatista] Isso. Fiz com ele, acho que dois anos. Depois, fui fazer terapia com o doutor Nairo. E já fiz mais uma temporada com ele. Foi assim, foi uma necessidade, quase um pronto socorro terapêutico. Eu te confesso que eu tinha, por causa do meu pai, eu tinha um certo… não preconceito, mas não acreditava. Meu pai, que era uma pessoa profundamente neurótica e muito culto, dizia que não fazia terapia porque ele sabia mais do que os terapeutas e que nenhum terapeuta aguentaria conversar com ele muito tempo. E ele defendia a ideia de que um dia os alemães, não sei por que ele encasquetava que eram os alemães, iam descobrir drogas que iam compensar neuroses. Ele dizia que isso é um problema químico muito mais do que psíquico. Defendia isso ardorosamente. E ele não viveu pra ver….

LACUNA | A hegemonia desse discurso?

JK | Exatamente! Mas, enfim. Foi isso e eu sou muito grato a terapia. Mais do que à minha (terapia) pessoal, mas porque desta minha paixão resultou um filho, que depois teve que se submeter conosco a terapia familiar, e foi o que manteve todo mundo equilibrado. Então, eu sou muito grato ao papel que a terapia desenvolveu, desempenhou na minha vida.

LACUNA | E em algum momento você chegou a pensar nessas implicações políticas ou não da terapia? Isso te ocorreu?

JK | Veja bem, eu acho que foi meio que natural que a escolha dos três terapeutas com que eu tive contato mais próximo, de politicamente sermos muito parecidos.

LACUNA | Você sabia disso antes?

JK | Rapaz, eu não sabia disso antes. Talvez o do Nairo, sim. Mas, do doutor Anibal, não. Mas, revelou-se.

LACUNA | Revelou-se como?

JK | Porque eu sempre fui, de alguma maneira, eu sempre tive militância política. Pra mim, a questão ética sempre foi absolutamente prevalente. E um traço da minha ambiguidade, que me fazia doer muito, era a situação da traição ou de estar com duas mulheres ao mesmo tempo. E isso pra mim, era um problema ético… Não me esqueço, o doutor Anibal um dia me disse “Você é uma pessoa extremamente vaidosa, né?”. E eu disse “Não, ao contrário, acho que eu não tenho nenhuma vaidade. Não ligo a mínima para roupa, para automóvel…”. E ele disse “Não, você é o varão de Plutarco. Você tem a maior das vaidades”. E eu disse: “Por quê, doutor Anibal?”. Ele disse assim: “Você tem a vaidade de dizer que ninguém te tem nas mãos, que você é absolutamente independente. Essa é a maior das vaidades”. E isso, evidentemente, se exteriorizava na ambiguidade que eu estava sofrendo em função da questão ética.

LACUNA | E você acha que essa coisa de ninguém te ter nas mãos tem a ver com sua escolha pelo jornalismo?

JK | Eu, na verdade, não escolhi ser jornalista. Eu entrei na Ciências Socias para fazer carreira acadêmica. Eu queria ser professor universitário. E para defender uma tese de doutorado sobre o futebol como fator de mobilização social. Veja bem, eu entrei na faculdade em 1970, em plena ditadura Médici. Era de grupo clandestino, era da ALN [Ação Libertadora Nacional], adorava futebol, era corintiano. Uma bela noite, o Gabriel Cohn, que era meu professor de Sociologia I, marcou uma prova na noite em que jogariam Brasil e Romênia na Copa de 70. Eu levantei a mão e falei “Professor, tem jogo do Brasil”. E a classe inteira me vaiou. O Gabriel ficou desconsertado. E falou “Peraí, isso aí não se resolve com vaia. Se resolve no voto. Quem quer manter a prova na quarta-feira?”. Nesse dia eu descobri que minha classe tinha vinte e um alunos, nunca tinha feito a conta. Deu vinte a um pela manutenção da prova. E eu passei a ser olhado como um alienado e até com uma certa desconfiança. Anos depois eu fiz uma contabilidade: desses 21 alunos, 17, inclusive eu, éramos de alguma maneira ligados a alguma organização clandestina. E evidentemente um não sabia do outro e o outro não sabia do um. Eu fazia noturno, trabalhava já durante o dia na Editora Abril. E eu fui trabalhar na Editora Abril porque a Editora Abril ia lançar a revista Placar em 70. Eu não fui direto pra revista Placar, eu fui pro Departamento de Documentação e Pesquisa Jornalísticas pra atender a Placar, porque tinha um amigo que trabalhava no DEDOC e que quando soube que a Abril estava atrás de alguém pra atender a Placar que ia nascer… Sabia que eu tinha arquivo de futebol, do Corinthians, do Pelé, de basquete que eu gostava. E ele falou que tinha um amigo assim assado…

Eu namorava desde os 15 anos, queria me casar, queria sair de casa, queria ter o meu aparelho. Me preocupava muito ser preso em casa: o meu pai era procurador de justiça, ia fazer uma cagalhufança dessas na família… E eu fui lá fazer uma entrevista, achando que não ia dar em nada, e me contrataram. Para você ter uma ideia, eu era voluntário ao CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva]. Eu tinha escapado do CPOR, do exército, por excesso de contingente, e como eu dirigia para o braço direito do Marighella, pro Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, o Velho, ele me convenceu que não… Que eu tinha que ia para a infantaria e não cavalaria, porque cavalaria é arma de burguês. “Aprender a andar de trabuco no meio da selva pra treinar guerrilha”. E eu sou a única pessoa que eu conheço que se alistou voluntariamente. A Abril me ofereceu emprego, era um salário extraordinário. A Editora Abril teve essa característica no jornalismo brasileiro. Quer dizer, foi a primeira grande empresa de comunicação a permitir que o jornalista tivesse um emprego só. Eu ganhava, moleque de tudo, 20 anos de idade, meu primeiro salário era alguma coisa hoje na casa dos 10 mil reais. Havia um problema. Eu tinha que me desvencilhar do exército, coisa que eu fui conseguir graças a estarmos no Brasil. Meu avô paterno era amigo do gerente da Antártica aqui em São Paulo, o sr. Bitar. O sr. Bitar fornecia guaraná, cerveja e chope de graça para o comandante do segundo exército, coisas do Brasil… E assim eu acabei liberado.

Bom, a prova foi mantida. Ao sair da classe, eu disse ao Gabriel “Professor, eu não venho fazer a prova.” Foi a única vez que eu o vi irritado e ele me disse “Tudo bem, tudo bem. Você vem aqui sexta-feira e faz sozinho em uma classe”. E assim foi. No ano seguinte foi pior, porque teve uma decisão do basquete masculino, acho que em Porto Rico, no Pan Americano. Brasil e Cuba. Eu era ex-jogador de basquete, tinha jogado basquete 5 anos no Paulistano, federado e tudo. E anunciei a plenos pulmões que ia torcer pelo Brasil. A minha classe ficou indignada. Como é que ia torcer contra o Comandante. O Comandante… Eu tenho simpatia pela Revolução, o time de basquete… Mas eu sou brasileiro. Eu defendia ardorosamente a tese de que a ditadura já nos roubava tantas coisas, nos incutia tantos medos, que eu não ia permitir que ela mexesse nos meus sentimentos mais enraizados. Ainda dizia para as pessoas “O hino brasileiro me comove, me emociona. Eu não permito que a ditadura ache que o hino do Brasil é dela. Não é”. E eu mantenho isso até hoje. Pouco antes do impeachment, no Largo da Batata, eu fiz um discurso em que eu dizia para as pessoas “Nós temos que não permitir que essa gente roube o verde e amarelo da gente. O verde amarelo não é deles”. Bom, fiz a prova, continuei trabalhando na Abril. Me formei, comecei a fazer pós-graduação com o Francisco Weffort – fundador do PT, depois Ministro da Cultura do Fernando Henrique – na política.

Já direcionando para essa tese: futebol como fator de mobilização. Eu discutia… Há um filme magnífico, “O ano que meus pais saíram de férias”. Aquela coisa, vamos torcer contra, vamos torcer contra, aí o Rivelino faz o gol e “Bahhhh!”, ninguém se aguenta. A Dilma conta isso, ela estava no presídio e assim se comportou também. Aliás, tem um documentário, “Memórias do Chumbo: o futebol nos tempos do Condor”, em que uma ex-presa política argentina conta um episódio que para mim é absolutamente exemplar: ela estava presa na prisão da marinha, que é da mais terríveis em Buenos Aires, que fica a 500 metros do Monumental de Núñez. A Argentina é campeã do mundo contra a Holanda, em 78, e ela é retirada da cela por dois carcereiros que a levam pra rua pra ver a torcida saindo do Monumental de Núñez enlouquecida: “Argentina! Argentina! Argentina!”. E ela conta, no depoimento, a quase esquizofrenia que ela sentiu porque ela também estava feliz que a Argentina tinha sido campeã, que ela também queria berrar “Argentina! Argentina! Argentina!”. Os caras gozando ela, “Tá vendo que ninguém tá preocupado com você!”, e ao mesmo tempo ela queria falar “tão matando gente, tão torturando gente aqui a 500 metros”.

Bom, aí eu sou convidado no começo da pós-graduação, eu já era gerente do DEDOC, em 74, fui convidado pra assumir a chefia de reportagem da Placar. Nunca tinha feito uma reportagem na vida e ainda disse pro diretor da revista “Mas, Jairo…” e ele falou “Nós queremos o seu senso de organização”. A essa altura eu já não estava mais na ALN, Marighella tinha morrido, o Toledo tinha morrido, tinha sido morto, por ironia, no sítio do Wadih Helu, ex-presidente do Corinthians, da Arena. Tinha sido morto por tortura no sítio do Wadih Helu e eu tinha perdido completamente os contatos com a ALN, estava no Partido Comunista e fui ser chefe de reportagem da Placar. O que me impedia de continuar a pós, porque a pós, não sei se ainda hoje, mas a USP, escola pública de elite, pós-graduação só diurno, para ter dedicação exclusiva. Então a Abril me liberava às terças-feiras para ir fazer o curso. Era o melhor dia da minha semana, imagina que eu ganhava da Abril pra passar a terça-feira na USP. Mas, isso era inconciliável com a Placar. Porque Placar fechava na madrugada da segunda-feira, a segunda-feira era folga e na terça-feira era o dia de abrir a revista. E quem abre a revista é o chefe de reportagem. Traz as pautas, cobre…. Então, aí eu percebi que eu estava inoculado pelo vírus do jornalismo, eu não ia seguir carreira acadêmica. Abdiquei da carreira acadêmica e comecei minha carreira de jornalista.

Doze anos depois do Gabriel ter marcado a prova no Brasil e Romênia, em 82, governo Montoro, governo eleito em São Paulo, era diretor do Arquivo do Estado professor José Sebastião Witter que tinha sido diretor da Escola de Altos Estudos da USP, são paulino militante. O Witter me telefona (eu já diretor da placar, em 82) e me convida a participar de um grupo que estava se reunindo no Arquivo do Estado para pensar uma Enciclopédia Brasileira do Futebol. Uns vinte minutos depois que essa reunião começa, quem entra? Gabriel Cohn. Fazia um tempão que eu não o via. E eu adorava ele. Eu olhei para ele e falei “Mestre, você aqui, que surpresa!”. Ele vem em direção a mim de dedo em riste “Você está surpreso seu veadinho? Porque você é tão preconceituoso quanto os seus colegas que não me permitiram ver Brasil e Romênia na Copa de 70”. Eu falei “Que isso, professor? Foi você que marcou a prova”. Ele disse “Marquei porque sou desligado, como você bem sabe, mas saiba você que eu sou tão corintiano ou mais que você. Que eu não acredito em sociólogo no Brasil que não tenha o fundilho das calças puídos pelas arquibancadas. E que você, eu sabia muito bem onde você trabalhava e o que você fazia. Mas, você também não achava que os barracões da Ciências Sociais eram o locus adequado para tratar de futebol. Você nunca veio falar de futebol comigo”. E era verdade. Eu nunca fui falar de futebol com ele. E o Gabriel foi, de alguma maneira, decisivo para que eu escolhesse o jornalismo e não a vida acadêmica por uma razão. Meu último trabalho de sociologia para ele, de sociologia IV: eu cheguei a noite na escola para pegar a nota e tinha uns seis ou sete colegas reunidos na porta da sala, dos barracões, e um deles me disse “Meu, parece que você teve a nota mais alta que o Gabriel já deu na vida! É o que ele está dizendo para as pessoas.” Falei “Num é possível.” Fui até ele e ele me deu a prova, 9,5. Com uma observação “Juca, você tem certeza que você não ser jornalista?”. Eu parei e olhei aquilo e falei “Mestre, esta observação me faz duvidar da nota”. Ele olhou para mim, deu sorriso e falou assim: “O Juca, deixa eu te dizer uma coisa: se eu fosse fazer uma avaliação do seu trabalho com método puramente acadêmico, eu devia te dar zero. Como resenha, está uma delícia. Por isso, eu te dei 9,5”. Isso me ajudou muito quando eu recebi o convite pra assumir a Placar, a chefia de reportagem, eu pensei “eu acho que o Gabriel tem razão, meu negócio é menos a academia e é mais isso aqui”.

Mas, aí, quer dizer, quando eu começo a minha vida de jornalista propriamente dita, estava mais do que incorporado que a minha visão não seria uma visão que ia se limitar as quatro linhas do campo. E aí, que de alguma maneira, eu sou tido como um dos responsáveis pela iniciativa do jornalismo investigativo no futebol. Entre outras coisas, porque a Placar não era evidentemente um veículo que sofresse censura. Então, Placar fez coisas, desde de fazer uma capa com Dom Paulo Evaristo Arns, “Pastoral do povo corintiano”. Com ele segurando a bandeira do Corinthians, e essa pastoral, o texto termina “Não há derrotas definitivas para um povo”. Como quando começou a onda de atentado às bancas de jornais que vendiam imprensa alternativa: Movimento, Opinião, Pasquim… Enfim, os diversos jornais de esquerda que faziam oposição à ditadura. Nós publicamos uma série de reportagens contra a violência, evidentemente focando no ‘volante brucutu’, no ‘zagueiro que dá porrada’…, mas era um libelo contra a violência. E eu considero que um dos maiores troféus que eu recebi na minha vida de jornalista, não o prêmio Esso, o prêmio não sei o quê, esses prêmios todos que você ganha, mas uma carta com mais de 20 assinaturas de presos políticos do Barro Branco (Placar era das poucas publicações que entravam no presídio), agradecendo, “Entendemos”, e assinado.
Ou seja, embora eu tenha abdicado de fazer a tese, eu não abdiquei da ideia de olhar para o futebol como um fator de mobilização, e eu posso exagerar – eu sou meio exagerado –, mas eu te diria o seguinte: foram essenciais para a minha formação, para a minha visão de mundo, ter estudado em grupo escolar, Grupo Escolar Aristides de Castro, ali no Itaim. Em Escola Estadual, Ministro Costa Manso, também ali no Itaim. E frequentar a arquibancada dos jogos do Corinthians. A mistura. Eu cresci tanto no campo de futebol como na escola, misturado. Filho de procurador de justiça, ou seja, de uma classe média, não diria alta, mas média, sem nenhuma dificuldade maior na vida. Mas, com todo tipo de gente. E isso meio que me moldou. E eu tenho plena consciência dessa coisa… Ia em caravana do Corinthians e me misturava. E aí, é a tal história, você também se aproxima das pessoas mais parecidas com você. Claro que é uma visão um pouco idealizada, mas coisas assim que me agradavam profundamente era ver pesquisas do Ibope que diziam que a maior parte da torcida do Corinthians era do MDB, apoiavam o MDB. Tinha razão de ser. Naquela época inclusive, estamos falando do jejum de 23 anos do Corinthians, naquela época o Corinthians não tinha essa torcida que tem hoje, que vai pra Itaquera. A torcida do Corinthians era muito o povão mesmo, né? Embora fosse também entrando no time do Montoro, do Antonio Ermílio, do Dom Paulo. Eu sempre falo: do maior empresário, do governador e do Cardeal. Mas, era muito o povão. E isso foi essencial.

placar dom paulo

Então, eu nunca torci contra a seleção brasileira, eu nunca apostei no quanto pior, melhor. Eu sempre achei que quanto pior, pior. Eu sempre dei como exemplo o fato e que o Brasil foi campeão do mundo em 58, era o Juscelino o presidente, ele morreu caçado pelo golpe. O Brasil foi bicampeão do mundo, era o João Goulart o presidente, ele morreu caçado pelo golpe. Quer dizer, o fato de eles terem sido os presidentes em duas conquistas não significou que se tornaram imbatíveis. A Itália foi bicampeã mundial com Mussolini e morreu morto pelo povo italiano, pendurado de cabeça pra baixo. E a ideia que se tem do Médici não é o presidente de radinho de pilha que dava palpite no futebol: é do pior período da ditadura, do mais obscurantista, do que mais torturou, do que mais matou. O Médici não é o campeão do mundo de 70. É o Pelé, é o Tostão, é o Rivelino, não é o Médici. Eu sempre achei que essa confusão inclusive, de alguma maneira, depreciava o entendimento do que é o povo brasileiro.

LACUNA | Quando você fala dessa inserção da Placar durante a ditadura, você está falando também, não só o futebol contém um caráter de mobilização, como em determinado momento ele contém talvez uma das poucas vias possíveis de mobilização?

JK | Aí, o que nós temos. Exemplos práticos. Primeira faixa aberta em público pela anistia, foi no Morumbi, em um jogo Corinthians e Santos, com mais de 100 mil pessoas. Porque era a garantia que, na hora que a polícia chegasse para desmontar a faixa, já não encontraria quem abriu a faixa. Os autores da faixa estão vivos aí até hoje: Antônio Carlos Fon, Chico Malfitani e o irmão do Samuel Mac Dowell. Os dois primeiros corintianos e o irmão do Samuel Mac Dowell santista. Samuel Mac Dowell, veja como as coisas são, que foi um dos advogados que condenou o estado brasileiro pela morte de Vlado. Ele com o Marco Antônio Brabosa. Com trinta e poucos anos de idade. Corajosos pra cacete. Você tem formando a Democracia Corintiana, ainda no período da ditadura, quer dizer amalgamada com a campanha das Diretas.

faixa-anistia
Tenho um célebre caso: assim que acabou o toque de recolher em Santiago depois do golpe do Pinochet, tem um jogo de futebol. Um clássico, Colo-Colo e Universidad Católica, ou Universidad del Chile, agora eu não me lembro qual das duas Universidades. 40 mil pessoas no estádio e acaba a luz, tem um apagão. Tem um apagão, a primeira reação é de susto, e aí as pessoas que estavam no estádio contam: gente começou a acender isqueiro e de repente começou a se ouvir uma ala do estádio – Estádio Nacional, presídio e o escambau – um cantochão “Libertad! Libertad!” De repente, as 40 mil pessoas estavam cantando, gritando “Libertad! Libertad!” e não tinha o que fazer. Você [não] ia pôr, sei lá, 20 mil camburões na porta do estádio para pender todo mundo, ne? Isso sempre me tocou muito.

Isso não significa que eu não tenha clareza sobre o uso que se faz do futebol por governos. Claro que se faz, claro que se fez em 70. “Ninguém segura esse país…”. Claro! Agora, eu dou sempre esse exemplo, isso se faz em regimes autoritários e em regimes democráticos. O esportista é o gladiador moderno, raros são os profissionais capazes, digamos, de traduzir o orgulho nacional quanto uma conquista esportiva. Por mais que o popstar tenha identificação com seu país, o esportista é que emula, estimula, emociona. O exemplo que eu gosto de dar: 2002, o Brasil ganha a copa do mundo, faz um voo de 25 horas do Japão pra cá. Desce em Brasília. Em vez de o Fernando Henrique, o professor, o sociólogo, ir ao aeroporto, condecorar os jogadores e mandar cada um para casa, não, os jogadores são postos num caminhão do corpo de bombeiros e fazem um trajeto de 7 horas entre o aeroporto e o palácio. O único que estava certo ali foi o Vampeta, que chegou bêbado e dando cambalhota… Se é um general da ditadura que tivesse feito isso, até hoje a gente estaria dizendo “Tá vendo? Que desrespeito aos direitos humanos”. E foi um presidente, eleito, legítimo, sociólogo, até então tido como um homem de esquerda, né? Porque se usa, se usa. Não tenho dúvida nenhuma. E se usa para o bem e para o mal.

cambalhota Vampeta
Esse é outro episódio que eu gosto sempre de contar: o Lula teve a generosidade de fazer do estatuto do torcedor a primeira lei que ele assinou. Estatuto esse aprovado no governo do Fernando Henrique. A única lei de oito anos do Fernando Henrique aprovada por unanimidade. Por acordo de liderança. O Lula assinou. O Lula assinou e o Gilberto Carvalho, que era então chefe de gabinete dele, telefonou perguntando se eu iria… Eu participei da confecção do estatuto, dei palpite. Se eu iria para solenidade, eu falei que não, porque eu achava chato. Ele disse “O presidente gostaria que você viesse”. É claro que eu fui. Cheguei no palácio do planalto. Fui recebido por um cara do cerimonial que me levou para dentro da sala que ia ser a assinatura. Na primeira fila estavam os ministros e tinha uma cadeira ‘Jornalista Juca Kfouri’. E eu falei “Não, não! Vou sentar lá no fundo, desde a escola eu gosto de sentar no fundo pra observar”. Ele falou “Não, não. O senhor vai me desculpar, mas no cerimonial o senhor tem que sentar aqui”. O Lula começou o discurso dele, depois dos agradecimentos de praxe, dizendo o seguinte “Nunca mais vamos ouvir o jornalista Juca Kfouri dizer que no Brasil torcedor é tratado feito gado”. O auditório veio abaixo de aplausos. Eu não sabia onde enfiar a gravata. Não tinha um cartola na plateia. Eles tinham plena consciência que a aquele estatuto era enfiado goela abaixo deles. Lula terminou o discurso [dizendo] “A presença do jornalista aqui é a minha homenagem a todos os jornalistas que foram processados, tiveram credenciais negadas”. Eu tinha já 53 anos, quase avô, não tinha mais o direito da ingenuidade. Eu tomei um táxi para o aeroporto… eu esmurrava o ar e eu dizia “Foderam-se!”. Pegaram o presidente que tem os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas!

Seis meses depois, o Lula estava de braço dado com o Ricardo Teixeira naquele jogo no Haiti. Que foi um negócio muito bacana, mas ao mesmo tempo serviu para ele ser seduzido pela cartolagem do futebol. E para que, em seguida, desse aos cartolas a “Time-mania”, sem exigir nada de contrapartida como modelo de gestão. Deu aos caras que fizeram a dívida um instrumento para que, com dinheiro público, saldar a dívida (que eles não saldaram diga-se de passagem). Porque o poder de sedução que o cartola do esporte tem de botar o ídolo na sala do presidente, é uma coisa que a gente não é capaz de avaliar. E o Lula se deixou seduzir por isso. A Dilma não, até porque não tinha a mesma relação com o futebol. E já era José Maria Marin, que teve elogio do Fleury. Mas, assim mesmo, ela nunca recusou estar junto com o Marin ou teria recusado. Um dia eu perguntei para ela “Como é que pode?” Ela disse: “Juca, ele é que tem que ficar incomodado, não eu. Eu ganhei, ele perdeu.” Enfim…

Então eu sempre tive a consciência de como pode ser usado do outro lado. A ditadura argentina, usou, pra burro. Mas não subsiste, não sobrevive a ideia de que foi a ditadura que ganhou a copa. Na Argentina, aliás, mais ainda do que aqui. Porque o que você encontra na Argentina de literatura de jornalistas argentinos mostrando como aquela copa foi manipulada… O célebre episódio do jogo Argentina e Peru. Do [Jorge Rafael] Videla ir ao vestiário e fazer o discurso de uma só América Latina…É uma grandeza. Os argentinos, as pessoas sensatas da Argentina, comemoram muito mais o título do México de 86 do que o título de 78 em casa. Porque eles sabem a quantas aquilo foi. Embora, evidentemente o jogo final contra a Holanda não teve… O jogo terminou porque ganhou. Tomou uma bola na trave no último minuto da prorrogação. Não teria o que fazer ali.

LACUNA | Mas o quê que você acha que está contido nessa experiência da arquibancada que tem tanto poder?

JK | Então, é o seguinte, você tem duas visões quase opostas digamos de filósofos do futebol. Você tem o Bill Shankly que foi técnico, manager do Liverpool quando o Liverpool tomou conta do futebol europeu, que dizia “É evidente que o futebol não é uma questão de vida e de morte, é muito mais do que isso”. Ou você tem o Arrigo Sacchi dizendo “O futebol é a coisa mais importante entre as coisas menos importantes”. Isso prevalece muito. As vezes, por exemplo, em que eu estive com o Fernando Henrique para tratar disso, do futebol, a sensação que eu tinha era que, ao sair da sala dele, ao próximo que entrasse, ele ia dizer assim “Acho que o Juca enlouqueceu. Com a Rússia quebrada, o FMI batendo na minha porta, ele quer que eu faça uma lei de futebol. Tem coisa mais importante para tratar”. E o próprio Lula, embora tenha consciência da importância cultural… Porque o Fernando Henrique não sabia distinguir o Biro-Biro de uma bicicleta, ele achava que Biro-Biro era uma jogada. Não estou caricaturando. Levamos ele na cabine do Osmar Santos, quando ele estava fazendo campanha para o Senado, e o Osmar narrando “Biro-Biro…”. E ele falou assim “Ué? Biro-Biro é um jogador?” e eu falei assim “Ah, professor, claro que é um jogador”. “Eu jurava que era uma jogada que nem a bicicleta”. O goleiro do Palmeiras era o Gilmar e ele achava que o Gilmar dos Santos Neves. “Ainda joga o Gilmar?” “Não, esse aí é homenagem a ele. Que dá pra ser neto…” Não sabia nada… Era a grã-fina de narinas de cadáver do Nelson Rodrigues. O Lula não. Mas o Lula entrou numas de dizer “Po… vocês são muito críticos… é muito difícil administrar um time de futebol”. Encantou-se com o André Sanchez. Veio aqui, pediu a reunião aqui antes da Copa. Aqui, aqui nessa sala. Estava o [José] Trajano, o Antero Greco, Paulo Calçade, Paulo Vinicius Coelho. Entrou aqui para tentar nos convencer a apoiar a Copa do Mundo. Em três minutos ele percebeu que não daria.

LACUNA | Quando isso?

JK | Em 2013. Ele percebeu que não ia dar. Aí mudou o discurso pra sondar se a gente achava que o André Sanchez poderia ser um bom presidente pra CBF. Levou porrada pra cacete. Começou a contar caso, quase matou a gente de rir. Foi uma tarde agradabilíssima, mas saiu sem nada. Mas, por quê? Porque incorpora, enfim, a coisa da vidraça. Vocês ficam atirando pedra. Vocês não sabem da dificuldade que é. E, presidente de clube vai, leva a taça pra ele, bota o ídolo dele junto com ele e convence “Olha, não dá, eu não tenho como pagar INSS, não tenho como pagar, presidente, não tenho como pagar o imposto”. E aí abre as burras da viúva pra subvencionar essa gente toda. Um dia ele falou pra mim “O Juquinha, você acha que eu vou mandar fechar o Flamengo?”. Eu falei “Não vai mandar fechar, mas pode modernizar a gestão do Flamengo”. Aí você tem uma contradição com uma visão… como é a visão de mundo do Lula. Eu digo, e não digo porque gosto da ideia necessariamente, mas porque me curvo diante da realidade. O futebol brasileiro precisa levar um choque de capitalismo, como o futebol inglês levou. Objetivamente é assim desde que caiu o muro de Berlim. E quando você fala isso em certos setores da esquerda, gente fala “Porra, ódio eterno ao futebol moderno”. Discute-se a ideia do futebol de raiz. Não adianta. Claro que eu me encantava ir à Rua Javari, ir aqui ao Pacaembu, sentar em cima do degrau. Minha vida foi essa. Eu detesto ir a Itaquera, detesto. Nunca fui ao Allianz Parque. Mas, vejo com clareza a higienização que se fez dos estádios. O embranquecimento dos estádios. O tratamento do torcedor como se fosse consumidor e apenas isso. Me horroriza, mas objetivamente é assim que é. E a minha luta hoje é por suavizar o capitalismo selvagem, mas não é achar que você ter um modelo de gestão de clubes que abra mão dos patrocínios, da televisão….

LACUNA | E você acha que isso coloca algum tipo de incompatibilidade com esse fator de mobilização política do futebol?

JK | Então, eu acho que sim desde que a torcida não se organize e passe a exigir o lugar que ela tem direito nos estádios de futebol a preços populares. Sem que isso signifique diminuir o conforto. Porque aí é a frase do Joãozinho Trinta “Quem gosta de miséria é intelectual”. Na medida que os estádios brasileiros têm uma taxa de ocupação que não chega a 50 %, não há porquê você não ter setores populares para que o povão possa ir ao estádio. Então, aquele cara que quer pagar R$600 pra estacionar o carro a 50m da cadeira dele e tomar whisky, vá! Mas, o cara que pode pagar R$30 tem que ter espaço também.

LACUNA | E a questão da violência permeando essa coisa das torcidas organizadas?

JK | Tem todos os fenômenos conhecidos da válvula de escape, do homem grupo, da perda da identidade quando está junto. Tem um livro que eu gosto muito chamado “Entre os vândalos” de um jornalista americano chamado Bill Buford, saiu pela Cia das Letras. Esse cara saiu de Nova Iorque para fazer uma reportagem sobre os hooligans. Foi pra Londres. Ele se inscreveu numa torcida, do Arsenal se eu não me engano, e começou a participar das batalhas. Marcadas para se encontrar em estações de metrô. A reportagem virou um livro. Há um momento do livro que ele fala “Estou aqui já há seis meses, vim aqui pra passar no máximo cinco semanas, pra fazer uma reportagem. Estou aqui há 6 meses, tenho mais do que material para fazer minha reportagem e não consigo me desligar da torcida”. Aí ele descreve o que ele chama da ‘Adrenalina do Combate’. Então ele esmiúça a ansiedade e a sensação, a expectativa dos encontros entre as torcidas. Que tinha regras: não pode chutar o cara que estiver caído etc. E ele passou um tempão se metendo nisso, quer dizer, ele passa a ser ator. Deixa de ser meramente um observador. Até porque se ele ficasse só observando, alguém desconfiaria que ele estava ali de… podia ser até da polícia. E eu acho que tem muito isso mesmo, e isso não é um caso de polícia. O caso de polícia, isso aí tem um professor lá do Rio, o professor [Maurício] Murad que pesquisa isso, que estuda isso.

O Murad mostra isso por A + B, 7% no máximo são marginais. Vão para o estádio para brigar. Agora, é uma molecada com testosterona a mil, em grupo, maltratados pela PM desde a hora que entra no estádio. Encostados pela cavalaria, fazer fila na bilheteria… O cara entra no estádio, se você der um toque nele, já quer te dar uma porrada. Se tiver com a camisa do adversário, então… E aí qual é a solução das nossas autoridades? É a paz do cemitério. Acaba com as duas torcidas no mesmo jogo ou chega ao paroxismo que se chegou no Rio, que você tem uma decisão de taça Guanabara em que o primeiro tempo inteiro não tinha torcida de lado nenhum. Então, para mim, é o tripé que na Inglaterra se utilizou, é verdade que a custa de uma puta elitização, é bom que se tenha claro. Mas que que os Ingleses fizeram de cara. Fizeram primeiro uma política de prevenção para fazer uma política eventual de repressão e de punição. A política de prevenção começou com a maneira mais simples do mundo. Eles punham um policial em cada estação de trem, em cada estação de metrô. Um. Você dirá “Porra, um policial não vai segurar 40 moleques que estão no vagão, esperando outros 40 que vem na direção contrária”. Mas, aí [tem] a velha coisa da presença do Estado. Que é o mesmo fenômeno que você tem nas favelas, se você tem a presença do Estado e o cara desarmado. O cara vai para outra estação. Na outra estação tem outro. Começa a desestimular. “Vai dar merda. Esse cara vai chamar mais gente. Aqui nós não vamos nos servir”. É claro que não basta. É como a gente viu nas UPPs e o diabo a quatro no Rio de Janeiro. Fez um efeito inicial, obviamente não perdurou. Porque não basta você ter ação repressiva ou ação policial. Não basta. Mas, nós não temos política para nada. Para nada.

LACUNA | Mas, e para além da questão da violência? Porque me parece que a violência de fato ela é restrita. Mas, existe, acho que isso está contido no que você fala também dessa sedução. Afinal, por que que essa sedução é possível? Quer dizer, existe um caráter afetivo muito presente no futebol? Isso tem uma relação com o potencial de mobilização?

JK Ah tem, tem. Eu te conto mil casos em que eu vivi isso, que eu vi isso acontecer. Desde coisas tão individuais como… Eu brinco sempre que eu virei ateu por causa do Pelé. Porque eu não pedia… eu fui batizado, crismado, fiz primeira comunhão, ia a missa aos domingos levado pela minha mãe. Meu pai era agnóstico, não ia, dizia para nós que não ia a igreja porque o cheiro das velas o enjoava. Passei anos acreditando nisso. Não ia porque não acreditava em nada, mas minha mãe ia. E levava a mim e aos meus irmãos. Eu nunca pedi para o Corinthians ser campeão no período dos vinte e tantos anos. Veja bem, eu vi o Corinthians ser campeão eu tinha cinco, eu só voltei a ver aos vinte e sete. Então, imagina o que eu sofri de bullying na escola. Eu pedia nos domingos que eu comungava que coincidia de ter Corinthians e Santos para o Corinthians ganhar do Santos. Eu falava com Deus “Eu não tô te pedindo pro Corinthians ser campeão, mas só ganhar do Santos. Quero ver ganhar do Santos”. Sei lá, no nono ano, décimo ano que ele não ganhava do Santos eu resolvi que Deus não existia. Eu falei com a minha mãe “Eu não vou mais”. Depois fui formular isso de maneira mais, digamos embasada, com o correr dos anos, mas com 15 anos eu desisti de ir à igreja porque o Corinthians não ganhava do Santos.

Com 17 eu ia em caravana do Corinthians e, querendo ou não, participava de verdadeiros saques que você fazia na ida nos restaurantes da estrada. Descia um ônibus inteiro, ia lá tomava lanche, tomava Coca-cola e ia todo mundo embora sem pagar. Quando você voltava estavam todos fechado, aí você passava fome. Mas, isso tudo te dá um espírito de pertencimento, de grupo. Eu fui a uma excursão, uma caravana do Corinthians contra o Cruzeiro em 69, decisão do Robertão. Sentei na janela, do meu lado sentou um negrão que devia pesar uns 105kg, de bermuda, camiseta regata o Corinthians que não abriu a boca. O ônibus, aquela puta farra, e não abriu a boca daqui até Belo Horizonte. E eu me lamentando, né? “Puta, que cara chato”. Perdemos o jogo em Belo Horizonte, 2 x 1. O Palmeiras foi campeão aqui em São Paulo, tinha ganhado do Botafogo. A torcida do Corinthians….quando a torcida do Cruzeiro começou a gritar “1, 2, 3 Corinthians é freguês”, ainda gritou “Palmeiras, Palmeiras, campeão”. Teve essa humilhação. O ônibus que eu estava foi apedrejado pela torcida do Cruzeiro, quebraram todos os vidros. Nós tivemos que ir para a delegacia porque o motorista fez questão de fazer boletim de ocorrência. E voltou este ônibus solitário, duas horas da manhã pela Fernão Dias. Embora fosse dezembro, nenhum vidro, um puto de um frio. E o negão absolutamente silente. Quando o ônibus despontou aqui, indo para o Parque São Jorge, tentando dormir, eu senti uma mão na minha perna, olhei, era o negão apertando a perna. Olhou pra mim com os olhos injetados “É o coringão porra! É o coringão!”, levantou e o ônibus inteiro colocou bandeira pra fora. A minha sensação é que era o desembarque em Marte. Os terráqueos chegaram em Marte e os marcianos estão olhando e tão dizendo “Caralho! Esses caras estão malucos? Um ônibus sozinho aqui essa hora da manhã? O Palmeiras é o campeão, não o Corinthians.” Vá traduzir essa sensação. Eu era amigo do ônibus inteiro. Eu encontrava os caras depois nos jogos do Pacaembu, sabia um por um. Fazia uma ligação. Nesse tempo não tinha violência. Mas, a ligação já tinha. Essa ligação, se mal dirigida vira violência. Se bem dirigida, vira uma coisa…Você sabe que era uma das minhas divergências com o Sócrates…O Sócrates era absolutamente a favor das torcidas organizadas. Eu sempre fui crítico. Eu sempre fui crítico, eu sempre achei que a única coisa que eu gostava mais desorganizado do que organizado era torcedor de futebol. Hoje eu tenho clareza que o problema não é a torcida organizada. O problema é a falta de política para reduzir o dano que 7% são capazes de fazer.

LACUNA | Você acha que esse tipo de laço que se estabelece tem a ver, por exemplo, com experiências como a democracia corintiana?

JK | Sem dúvida nenhuma. A democracia corintiana, ela começa a ser vencedora a partir do momento em que o Sócrates dava entrevistas em que ele dizia “O mal do Corinthians é o time querer jogar no embalo da torcida. A torcida é que tem que vir no embalo do time”. E eu dizia para ele “Você tá maluco, isso a torcida nunca vai te ouvir”. Ele dizia “O Corinthians vai pra cima do Juventus em cinco minutos pra matar o Juventus, toma um contra-ataque, toma um a zero e aí vira um terror. Torcedor tem que acreditar que o gol vai sair naturalmente”. Eu dizia “Mas, nunca vão acreditar que o gol vai sair naturalmente”. E o gol começou a sair naturalmente ao 30 do segundo tempo, aos 35 do segundo tempo, aos 40… E joga contra o São Paulo, que é muito melhor que o Corinthians, e empata zero a zero o primeiro jogo, e ganha o jogo seguinte e elimina o São Paulo. E a mesma coisa com o Palmeiras.

Tem um episódio no segundo título, no bicampeonato de 83, o ônibus do Corinthians fica parado na descida ali do portão principal do Morumbi, e não andava. E o time vendo que não ia chegar a tempo. E o time desce pelo meio. Eu estava lá na porta do estádio, no portão principal do Morumbi com o dr. Flávio Gikovate, que era então o terapeuta do Corinthians. Quando…os jogadores vão passando… Casagrande, Vladimir… Quando o Magro passa, eu pego ele no braço e falo “Magro, o que que houve?” Ele falou “O que houve eu não sei. Eu sei o seguinte: nós não perdemos esse jogo hoje por caralho nenhum”. E o Corinthians… o Palmeiras era melhor que o Corinthians, nesse jogo o Sócrates faz uma maldade com o marcador dele, acho que chamava Márcio. O Márcio não saia de cima do Sócrates, onde o Sócrates ia, o Márcio ia atrás dele. Uma hora que o Sócrates sai de campo, vai para lateral, sai de campo, e faz assim [aponta com as duas mãos]… Na frente da torcida do Corinthians. E a torcida: “Ahhhrrr!”. Aos 35 ele pega uma bola, dá um drible no Márcio, mete aquele taco de bilhar dele, faz um a zero pro Corinthians. No minuto seguinte o técnico do Palmeiras saca o Márcio e o Corinthians ganha de um a zero. Era simbiose absoluta. E aí, tem coisas assim, o Flávio [Gikovate], eu gostava… O Flávio não entendia bulhufas de futebol. Ele entendia de gente pra cacete. Eu adorava encontrar o Flávio antes dos jogos porque o Flávio, não que ele me dissesse se o Corinthians ia ganhar ou ia perder, ele me dizia se o Sócrates ia jogar bem ou ia jogar mal. E sabe qual era o termômetro dele? Era o seguinte: “Magro hoje não vai jogar bem”. “Por quê?” “Tá muito feliz”. “Magro hoje vai acabar com o jogo” ” Por quê?” “Brigou com a Regina”, que era a mulher dele. “Tá puto da vida”. E não errava. Então, a Democracia Corintiana, ela consegue convencer a torcida de que “ganhar ou perder, mas com democracia”. A torcida do Corinthians passa a esperar o momento do gol e o Corinthians é bicampeão paulista com o time inferior ao Palmeiras…Digamos que ao Palmeiras equilibrado, ao São Paulo o Corinthians era assim muito inferior. O São Paulo era uma seleção. O que que o Sócrates dizia “Qual é a nossa diferença? A gente olha para o jogo como um momento em que nós vamos nos divertir. Porque a gente dormiu em casa, se encontrou no domingo na hora do almoço no hotel para ir para o jogo fazer o que a gente gosta. O São Paulo olha para o jogo como o último momento antes de ficar livre. Porque está há três dias concentrado na porcaria de um hotel, num CT. Então, o jogo é apenas um último momento antes da liberdade. Para nós não, pra nós é a hora de nos divertir. A gente gosta de subir, de jogar futebol”. E eu acredito piamente que isso fizesse a diferença. Piamente.

ganhar ou perder

Então, sem dúvidas, eu acho que cria amálgamas mesmo. Que de alguma maneira explica também, não os fracassos, mas as não vitórias da seleção brasileira. Porque essa molecada não tem mais vínculo nenhum com a torcida brasileira e a torcida brasileira não tem vínculo com essa molecada. Você não pegou essa fase, eu peguei. A convocação da seleção brasileira era uma guerra, porque convocaram o teu centro avante e não o meu. O teu goleiro e não o meu. Agora não… Agora é centro avante do Barcelona ou do Bayern de Munique. Ora… Então se a seleção está indo bem a torcida abraça. Começou a ir mal… “Mercenários”, não sei o que… E o jogador também perdeu esse vínculo. Não tem essa vivência.

LACUNA | Você fala isso do Sócrates, dá essa impressão de que existe de fato um afeto enorme mobilizado pela experiência e ao mesmo tempo tem uma limitação desse afeto. “No fim das contas a gente tá aqui para se divertir”. Tem algo que parece que coloca uma barreira nisso e isso localiza melhor as coisas?

JK | Porque aí é que tá. Vamos dizer assim: o limite do brotherismo. Uma coisa é até onde nós vamos juntos. Outra coisa é eu indivíduo, como é que eu vejo isso, como é que eu curto isso. Nesse particular, até o Sócrates eu acho que é um ponto fora da curva porque o Magro tinha uma consciência social do que ele representava tão exacerbada que no fim da carreira dele, um dia ele já no Santos ele me disse “Puta, eu acho que eu perdi um certo tempo. Eu não curti coisas que hoje eu tô sendo capaz de curtir, mas que eu sei que estão acabando. Porque ele sempre se recusou a ser um personagem. Sempre se recusou. Então, ele baixava a bola da coisa da idolatria. “Eu sou igual a você. Não me venha não… Tamo na mesma”. Isso fez dele moleque santista, virar um adulto corintiano. A comunhão dele com, e ele dizia isso, com o sofrimento do corintiano. A identificação dele com o excluído e daí ele defender a torcida organizada e dizer que eu tinha uma posição elitista. “Porra, basta você ir lá na Gaviões e ver quem é que tá lá no chão da Gaviões. Da quadra da Gaviões. Não é possível que você reduza isso a questão da violência. Esses caras tão organizados. Você imagina se a gente consegue fazer com que dessa organização, esses caras passem a apoiar um partido político progressista, um político progressista.” Mas, é incrível que no Brasil… Eu sou absolutamente convencido, um presidente de CBF que organizasse um campeonato brasileiro, que pusesse 40 mil pessoas em média nos estádios, se elegia presidente do Brasil. Um governador de estado que conseguir minimizar o problema da violência nos estádios e permitir que os clássicos voltem a ter duas torcidas se elege presidente do Brasil. Mas, eu… Por mais que se fale essa mentira que o Brasil é o país do futebol, porque não é, mas por mais importância que o futebol tenha na cultura brasileira ele nunca foi tratado como tal. Nem pelos donos dos meios de comunicação, que você não identifica com… Nenhum Civita jamais gostou de futebol, nenhum Mesquita gosta de futebol, os Frias também pouco ligam pra futebol, os Marinhos, você não vê um deles no Maracanã.

LACUNA E a política? Quando eu te perguntei da escolha pelo jornalismo e da coisa de não estar na mão de ninguém. Eu estava lembrando de uma passagem do seu livro que você fala de convites ou de supostos convites para assumir o Ministério e que você recusa porque entende que seria incompatível com a sua posição de jornalista. Tem aí um entendimento de uma incompatibilidade entre política e jornalismo, ou algum tipo específico de engajamento político?

JK Então, veja… tem uma porção de fatores aí. Na medida em que eu fiz a opção por ser jornalista, para mim sempre foi muito claro que muito dificilmente em qualquer função política eu teria o espaço que eu tenho como jornalista. Isso pesa de um lado. Por outro lado, pesa a questão da grana. Eu ganho como jornalista muito mais do que eu posso ganhar como Ministro. E como eu não vou roubar e não vou aceitar jeton por ser membro do conselho da Petrobrás ou… Essas gambiarras que gente faz para compor salário, acho imoral. Eu não sobreviveria com quatro filhos e o escambau, em Brasília. Em terceiro lugar, se eu fosse Secretário de esportes do Fernando Henrique, o João Havelange passaria por cima de mim todas as vezes que quisesse falar com o Fernando Henrique indo direto no Fernando Henrique. Como fez com o Zico que era muito mais importante do que eu, como fez com o Márcio Braga que era muito mais importante do que eu, como fez com o Bernard do voleibol. Só não faria, como não fez, em cima de um cara: o Pelé. Daí a invenção do Pelé. Que, diga-se de passagem, do ponto de vista da legislação fez as coisas avançarem. Não é culpa dele se depois no Congresso estuporaram com a Lei Pelé. Então, eu nunca tive dúvida, porque antes do Fernando Henrique querer que eu fosse Secretário de Esporte, o Montoro quis que eu fosse candidato a deputado federal, que eu fosse…. Mas, nunca tive a menor tentação, a menor tentação. Sou absolutamente convicto de que, enfim, se não nasci para ser jornalista, adotei o jornalismo como meio de vida e vou morrer jornalista.

LACUNA | Você não enxerga uma incompatibilidade entre, digamos o posicionamento político do jornalista e a atividade do jornalismo?

JK | Não,eu gostaria muito de militar muito mais na política do que eu milito. E o jornalismo não me impede. Você raramente verá, por exemplo, eu assinar um manifesto. Você verá eu manifestar as minhas posições. Isso com clareza.

LACUNA | Qual que é a diferença?

JK | A diferença… Eu dizer pra você “O impeachment foi um golpe. A prisão do Lula é injusta.” Eu digo para você, eu escrevo, esta é a minha opinião, é a visão que eu tenho. O que não significa, não me permite, ir fazer uma entrevista com o Lula, como eu já fiz e vou fazer de novo agora no começo de junho, e fazer com ele uma entrevista chapa-branca. Eu vou perguntar pra ele de novo se ele não acha que o PT é fartamente responsável pelo Bolsonaro. A minha independência como jornalista me permite trafegar em todas as áreas. Se o Bolsonaro quiser me dar uma entrevista, eu vou entrevistar o Bolsonaro. Vou fazer uma entrevista com ele, sem ser mal-educado, sem ser agressivo, mas vou perguntar as coisas que eu quero perguntar. Se eu for para o palanque dizer “vote no Lula”, ou assinar um abaixo assinado ‘Estou com o Lula’, eu perco completamente o direito de achar que você tem que olhar pra mim como se eu fosse um cara independente. Porque uma coisa é você saber a minha opinião, que estou dando para você olhando no seu olho. Outra coisa é você saber…eu posso até dizer para você “Vou votar no Lula”. Aliás, eu acho que todos os veículos brasileiros deviam fazer como faz o New York Times “Ponderadas as… O New York Times recomenda que seus leitores votem no candidato democrata”. O que não envenena a cobertura do candidato republicano, ao contrário, torna mais transparente.

LACUNA | Você falou que o PT é responsável pelo Bolsonaro. Você acha que o jornalismo brasileiro… em que medida é responsável pelo que aconteceu?

JK | Muito mais do que o PT. Porque foi um genocídio em relação ao PT, ao Lula, à Dilma na mídia brasileira. Eu sempre digo “É um golpe midiático, político, parlamentar”. E eu ponho midiático em primeiro lugar. Em primeiro lugar. Compare tudo que se sabe hoje em relação ao Lula, por exemplo, e ao Aécio ou ao Serra ou ao Alckmin. E quem está preso? O Brasil foi anestesiado pela mídia.

E num sentido um pouco mais amplo, em relação a produção, a circulação de fake news, de fatos alternativos. Qual você acha que é o papel do jornalismo?
Essa é uma das minhas angústias de algum tempo para cá. Eu acho que a mídia tradicional fez o que fez, sem nenhuma vergonha, sem nenhum constrangimento, parcial para cacete, sem dar direito de responder, sem investigar direito, comendo na mão do Moro, comendo na mão da polícia… Enfim… Jornalismo da pior qualidade. E a imprensa dita de esquerda fez a mesma coisa com o sinal trocado. Abdicou de fazer jornalismo para fazer contra vapor. E aí nós não temos jornalismo. Nós temos uma guerra de informações.

LACUNA | Nesse sentido, voltando um pouco pro começo: você falou dessa afinidade política com os seus terapeutas. Você sabia que o doutor Anibal Mezher foi um dos poucos… ele era parte de um grupo majoritariamente conservador durante a ditadura, pessoal do Pacheco e Silva, mas ele era um dos poucos que se opunha a ditadura. Você sabia disso?

JK | Não…

LACUNA | Mas, você acha que isso de alguma maneira… isso nunca transpareceu, nesses termos pelo menos?

JK | Não, mas quer dizer, veja… ai é que tá. Ele era corintiano, ele é… ele tá vivo ainda. Deve estar muito velhinho, mas…E eu não vou ser capaz de reconstituir exatamente, mas houve um momento, houve uma sessão em que de alguma maneira ficou claro que a gente tinha visões, naquilo que era essencial, muito parecidas. De maneira tal a, vamos cuidar do que te trouxe aqui porque do resto estamos…. enfim, vamos torcer para o mesmo time domingo, entendeu? Vamos torcer para o mesmo resultado nas urnas. Já estávamos vivendo em plena democracia, estávamos vivendo o começo do governo Collor.

LACUNA | Mas você acha que poderia ser cuidado se não tivesse essa afinidade.

JK | Não, eu acho que não. Posso… É claro que eu tenho amigos neoliberais, tenho um grande amigo neoliberal com quem eu brigo uma barbaridade, com quem eu almocei terça-feira e interrompi o almoço porque ele me disse “Felizmente eu não estava no Brasil no dia da eleição. Se eu tivesse, eu teria votado no Bolsonaro porque no PT eu não voto”. E eu falei para ele “Você vai me desculpar, mas nunca mais repita isso. Já que você não votou, não repita isso. Pelo menos na minha frente. Porque eu não posso admitir que você votou no cara que gosta de quem me torturou. Não posso admitir. É mais forte do que eu. Você não pode estar votando num cara que diz que o Ustra é o ídolo da vida dele. Eu tive no DOI-CODI quando o Ustra era o diretor do DOI-CODI”. Ai ele “Pô, Juca… Você leva as coisas muito pessoal”. Eu falei “Não é muito pessoal. Eu sei o tamanho do que isso significa. Então, não há nada que seja pior do que votar nele. E eu repito sempre a frase do dr. José Carlos Dias “Só o Bolsonaro pra me fazer votar no PT”. Ele votou no Haddad. Tucano. Homem do Dom Paulo, diabo a quatro, nada a ver com o PT. Disse isso, mas Bolsonaro não. Ai não dá… Eu imagino que… Eu imagino que o terapeuta me mandaria embora. Quer saber? Você me diria “O Juca, acho que não sou o cara certo para cuidar de você. Porque…” Porque também é o seguinte, aí o fato de eu digamos, de eu ser uma figura pública, por um lado facilita. O cara sabe, ninguém tem dúvida muito sobre quem eu sou, das pessoas que me conhecem. Então eu acho que o cara rejeitaria. Eu não consigo, imagina se eu ia ter um terapeuta, por melhor que fosse, bolsonarista. Não há hipótese. Palmeirense sim, mas bolsonarista não (risos).

LACUNA | Em relação à presença do Flávio como terapeuta do Corinthians: o que que você acha dessa entrada da psicologia no esporte?

JK | Essencial. Te conto tantos casos. Desde um caso famoso que aconteceu nas olimpíadas de Los Angeles no voleibol. Brasil tinha aquela baita seleção de vôlei: Bernard, William, Montanaro… Tava jogando contra os Estado Unidos pra ficar entre os quatro finalistas. Os americanos já eram um dos finalistas. O Brasil precisava ganhar pra ser finalista. O jogo pau a pau, o médico que é aqui de São Caetano, dr. Matsudo. Ele estava vendo jogo pela televisão com o psicólogo chefe da equipe olímpica americana, amigo dele. 0 dr. Matsudo ganhou o equivalente ao que se chama de Nobel da medicina esportiva anos atrás na Suécia. Matsudo tava vendo o jogo com esse psicólogo chefe e de repente o psicólogo pediu licença pra ele um minuto. Foi ao telefone e falou com alguém. Voltou, sentou e o jogo mudou. Brasil pá, pá, pá, ganhou o jogo rapidamente, três a zero. O Matsudo virou para ele e falou “Eu tô enganado ou você ligou pra quadra?” Ele disse “É, eu falei com o meu psicólogo do voleibol para falar pro treinador que vocês precisam ganhar esse jogo, nós não. Para quê que se mata?”. Os dois foram pra semifinais, os dois ganharam as semifinais, os dois foram pra final. O Brasil entrou na quadra campeão olímpico. Tomou de três a zero. Não teve jogo. Não teve jogo. Teve um time de voleibol feminino que era campeoníssimo, começou uma temporada, perdeu um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete jogos seguidos. Para times vagabundos, comparados com o time que só perdia. A psicóloga não estava entendendo nada do que se passava, até que um belo dia ela chegou para o diretor do clube e disse “Temos que mandar o sr. Antônio embora”. “Como? O motorista?” “Sim. O motorista que leva e busca as meninas pra treinar, leva e busca a meninas pra jogar, entrega as meninas em casa” “Mas, por quê?” “Porque ele diz pra elas que elas não valem nada, ele diz pra elas que elas não jogam coisa nenhuma, que elas vão perder”. O motorista; mandaram o motorista embora, o time foi campeão. Você vai dizer “Não, peraê, nada é tão simples”. Claro que nada é tão simples, mas a capacidade que um profissional tem de identificar pontos fracos e fortes é evidente. E hoje as medições, elas são tão absolutamente detalhistas que evidentemente as equipes esportivas têm que ter alguém pra cuidar da cabeça. E não cuidam, não apenas por preconceito ou porque o técnico acha que ele faz esse papel ou por uma economia burra. Porque você não vai pagar mais do que 25 mil reais por mês para um terapeuta fazer um trabalho desse num clube. Você paga 500 mil para um jogador que se perde por não ter o terapeuta. Lembrando sempre que em regra, quem são os que ganham 500? São os que saíram da favela, que saíram do cortiço. São os caras que de uma noite para o dia ficam milionários. E que por causa disso buscam derivativos e não aguentam.

LACUNA | E você acha que isso anda de algum modo junto com essa mudança na relação da torcida com o time?

JK | É claro que dentro do ponto de vista de segurar a pressão, de ajudar a segurar a pressão, de fazer o entendimento, sem dúvida. Agora o que você não pode é achar que vai fazer pronto-socorro psicológico como o Felipão achou que fazia, que faria na copa de 14. De chamar a psicóloga antes do jogo contra a Alemanha porque contra o Chile o capitão da seleção chorou. Ora, cacete, se chegou aquele ponto já não havia mais o que fazer.

LACUNA | É justamente nesse sentido que eu estava perguntando. Um pouco do contrário, que essa falta de relação deixa mais propício esse tipo…

JK | Claro, porque você fica isolado, sozinho, se sentindo solitário, entregue as feras. Você não tem proteção.

LACUNA | E aí volta um pouco pro que você estava falando justamente, dessa combinação do Corinthians com a torcida durante a Democracia…

JK | Lembre-se, quando o Sócrates chegou no Corinthians, aqui no Pacaembu, um jogo de manhã contra o Guarani, o time do Corinthians não conseguia sair do vestiário. Tinha perdido o jogo, a torcida cercou. Eles ficaram mais de cinco horas no vestiário porque não conseguiam ir embora. O Sócrates passou dez jogos depois daquilo, fazia gol e não comemorava. E as pessoas perguntavam para ele, e os repórteres perguntavam para ele “Por que que você não comemora?” “Ué, semana passada queriam bater em mim agora querem que eu vá comemorar? Não.” Tem que ter… Quem tem né? Essa personalidade, essa autoridade moral para fazer. Ele fez. Ele fez. Depois começou timidamente a levantar o braço e começou a conversar com a torcida, e começou a fazer essa catequese. Vocês é que tem que vir no nosso embalo e não nós no de vocês.

LACUNA | Como que você vê esse surgimento, fortalecimento talvez ainda um pouco tímido, mas desses grupos mais críticos dentro das organizadas?

JK | Eu acho do cacete, acho do cacete. Tem os crumunistas no Cruzeiro, a democracia corintiana, o coletivo da democracia corintiana. A Gaviões tem uma… sempre historicamente uma direção mais progressista mas, pois é, então, é isso que eu digo pra você. Essa gente organizada indo para rua para ajudar a combater todos os desvarios desse governo, tanto o estadual quanto o federal, porra, é valioso, é valioso. Rejeitar o que se fez no dia da entrega da taça… “Aqui não, aqui não”. Nós estamos ainda muito no beabá.

LACUNA | Você acha que tem algum lugar que isso se mostra com mais intensidade? Porque quando você fala “essa gente organizada”, se a gente pega a democracia corintiana, parece que não está falando só de que a torcida poderia ser levada em direção a um ideal. Era um modo de organização fazia com que eles se posicionassem de outra maneira?

JK | Você pega a Alemanha. Pega a torcida do Borussia Dortmund, a torcida do Borussia Dortmund fez o Borussia Dortmund, contra as regras da FIFA, tirar as cadeiras da parte de trás de um dos lados do gol porque amuralha amarela quer ver o jogo em pé. Não quer ver o jogo sentado com conforto. E tantas fez, que os caras tiraram as cadeiras. E a FIFA teve que aceitar e recuar. Quem tem esse grau de mobilização para fazer isso dentro do clube, faz isso na cidade, faz isso no país. A gente achou, se iludiu, que a Democracia Corintiana teria esse efeito. Teve de certa maneira na campanha das diretas, mas é claro, aí de novo bota o Trotsky na discussão, não faz revolução num clube só. Não faz. Foi muito fácil decepar a Democracia Corintiana. Não sobrou nada, não tem um resquício.

muralha amarela 2

LACUNA | Por que que foi tão fácil?

JK | Porque o Sócrates foi embora.

LACUNA | Era muito ligada ao Sócrates?

JK | O Corinthians perdeu o título de 84, mandaram o Vladimir para o Santos, o Casagrande emprestado pro São Paulo. Ganhou a eleição o Roberto Pasqua que tinha oitenta e tantos anos contra o Adilson Monteiro Alves que era o barbudinho da Democracia Corintiana, que depois se perdeu, mas enfim, ali era o cara que simbolizava… Numa eleição de conselheiros e a torcida invadiu o Parque São Jorge e a diretoria eleita teve que fugir pelos fundos. Fugir pelos fundos do clube. Mas, estava eleito. E desmontaram tudo. Desmontaram tudo. Como desmontaram o Bom Senso, mandaram o Paulo André pra China. Exílio dourado né? Foi ganhar um puta de um dinheiro. Quando voltou pro Cruzeiro o Vanderlei Luxemburgo disse pra ele “Se você quiser jogar, para de falar. O presidente já disse. Que não me traga problemas pra CBF”. E aí a gente entra em uma outra discussão. Que é a discussão da exigência que muita gente faz, que eu não faço, do heroísmo com o pescoço alheio. “Ahhh! O Paulo André não devia ter aceitado. Devia ter…”. Sim, e aí abandonava a carreira e ia ser candidato. É muito fácil você advogar heroísmo para o outro, e você não. Eu sequer exijo que as pessoas façam o que eu faço. Eu faço o que eu faço porque sou eu com as minhas circunstâncias. Eu não sei quais são as suas. Por que que eu vou achar que… “Ah! Mas, você tem a mesma formação que eu…” Sim, mas não tem uma porrada de outras coisas iguais.

LACUNA | E você acha que tem alguma potencialidade de resistência hoje em dia?

JK | Eu sou gramsciano, eu sou pessimista na análise, otimista na ação. Eu acredito que sim, eu acho que sim. Até porque se eu não achasse eu não…acho que não continuaria fazendo as coisas que eu faço. Acho que sim, é que a gente, em termos de história, a gente pega um período muito curto. Eu tenho netas, eu acredito que as coisas vão… Quer dizer, a Dinamarca não era a Dinamarca de hoje 300 anos atrás.

LACUNA | Amanhã você vai assistir à final da Champions ou vai no Pacaembu ver as finais da Copa da Favela?

JK | Isso, pois é. Falei já com eles [sobre ver a Champions]. Como é que eu posso… Tenho que fazer minha coluna da Folha ainda por cima. Como é que a gente deixou que nós mesmos passássemos a dar essa importância…. É claro, a globalização… Sei de isso tudo. Mas, antes era Santos e Botafogo, percebe? Era Santos e Palmeiras. Era Cruzeiro e Santos. Era Flamengo e São Paulo. Você esperava do mesmo jeito, você dizia “Puta! O jogo do Zico contra o Careca” “O jogo do Pelé contra o Ademir da Guia, contra o Mané Garrincha” Ou mais recentemente o jogo do Sócrates contra o Roberto Dinamite. E agora?

LACUNA | Mas, a final do feminino é antes.

JK | É, a final é às 11h. Eu sou capaz de ir com as minhas netas.

LACUNA | Então, ai você vê, será que ai tem uma potencialidade mais atual de alguma coisa nova aparecer? Quer dizer, eu vi uma notícia ontem que a Globo vai passar a Copa do Mundo Feminina.

JK | Sim, e a Globo vai passar o jogo da favela. Aí entra a discussão dos puristas e tal. Em que medida é futebol raiz a final ser no Pacaembu. Está bom, Pacaembu, por enquanto, público, cabe. Mas, precisa da Globo? E, até que ponto o fato de entrarem esses grandes respaldadores não dá uma forma que de alguma maneira manieta a criatividade, o que é voluntário, o que é natural e põe dentro dos cânones.

LACUNA | O que você acha?

JK | Eu preferia que não tivesse esse respaldo todo. Entende?

LACUNA | Da copa da favela? E em relação ao futebol feminino estar ganhando espaço?

JK | Eu acho do cacete. Agora eu acho que o futebol…. Se a gente não consegue dar jeito no futebol masculino….O futebol feminino tendo que vencer o preconceito que tem que vencer. E aliás um anúncio belíssimo da Nike, não sei se você já viu. Eu fiquei admirado, de tirar o chapéu. Que a menina dizia “Quando eu era pequeninha eu queria bola, eu não queria boneca. Boneca, o máximo que eu gostava, era dessa aqui carequinha ó.” Ela tira a cabeça da boneca e começa a chutar a cabeça da boneca até ganhar a bola. É do caralho o anúncio. É isso né? É claro que o capitalismo sabe fazer as coisas, sabe trazer pra si aquilo que a gente considera que seja um passo libertário e tal. Mas, o futebol feminino como instituição eu acho que terá uma dificuldade brutal. Porque nós temos essa dificuldade… Não se esqueça, o campeonato brasileiro de futebol não dá 20 mil pessoas de média. E aí você começa a correr risco de querer coisas, de exigir coisas até via legal que não cabe: “A remuneração do prêmio da campeã brasileira de futebol tem que ser igual”. Não pode ser igual porque a economia que ela gera não é igual. Tem que ser proporcional. “Ah! Mas, é discriminatório!” Mas, como é que você resolve isso? “Ah! É obrigatório agora ter time de futebol feminino”. Eu gosto, como eu gosto de cota. Tá? Mas, o ideal seria não precisar obrigar. Ok. As cotas, o ideal que se foda. Temos uma dívida social a pagar. Mas, quando você entra na esfera da coisa privada, como é o futebol e imagina que a campeã brasileira vai ganhar o mesmo que o campeão brasileiro… aí eu acho que você tá viajando na maionese. E você vai acabar prejudicando o futebol feminino. Porque vai chegar alguém e vai…. “Não, isso é insensato. Para”. Então, às vezes, o excesso de proteção acaba fazendo com que fique desprotegido.

LACUNA | A não ser que seja uma proteção que seja embasada, né?

JK | Isso, na comunidade, não pessoas, na sociedade. Claro. Você já foi a rua Javari alguma vez na sua vida? Não tem nada mais legal. Não tem nada mais legal. A única camisa de clube que já pus na minha vida que não seja do Corinthians é a do Juventus. Claro que você vai dizer “É por causa do J….”. É uma coincidência apenas. Não tem nada melhor do que aquilo ali.


* Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999. Atualmente está também na ESPN-Brasil. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha.  https://blogdojuca.uol.com.br/lista-colunas-na-folha/

** Paulo Beer é psicanalista, mestre e doutorando no Instituto de Psicologia (IP-USP). Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise e da Société International de Psychanalyse et Philosophie. Editor de Lacuna – uma revista de psicanálise. Autor de Psicanálise e ciência: um debate necessário (Ed. Blucher, 2017). Contou com apoio da FAPESP  (processos 2016/03096-7 e 2018/09753-5) para a realização desta entrevista.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | BEER, Paulo (2019) Entrevista com Juca Kfouri. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -7, p. 5, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/08/07/n-7-5/>.