Uma quinta-feira
Há algum tempo atrás, cabia a mim abrir o consultório às quintas-feiras de manhã. Chegava por volta das 7 horas, destrancava a porta, ligava a música da sala de espera e ia direto para cozinha passar o café. Em uma dessas manhãs fui surpreendido por um paciente que aguardava do lado de fora do consultório. Disse que estava esperando o “Dr. A.”[1], mas que havia chegado com antecedência. Após me dizer como se chamava, lhe indiquei a sala de espera pedindo para que se sentisse à vontade, liguei o rádio e entrei na minha sala. Algo nele me era extremamente familiar, fazendo com que dentre os breves minutos em que levei procurando o contato de “A.” no celular e fazer a chamada, lembrei-me de algo que havia ocorrido algumas semanas antes.
Ocorre que A. e eu fazíamos parte de uma rede de encaminhamentos de pacientes em situações de alta vulnerabilidade social, econômica, psíquica e política, e algumas semanas antes havíamos recebido por e-mail o pedido de encaminhamento para atendimento de um paciente morador de rua de uma cidade próxima a São Paulo. Particularmente, eu havia ficado bastante animado com o encaminhamento e estava pronto para aceitá-lo, quando compreendi, depois de uma troca de e-mails, que a intensão era a de que os atendimentos fossem realizados em consultório particular. Imaginava que o encaminhamento buscava por psicanalistas que topassem realizar atendimentos e intervenções no território do paciente, naquilo que compreendo como atendimento clínico de populações marginalizadas[2] ou de pessoas em situação de rua[3]. Dessa maneira, desisti do encaminhamento com uma incômoda “pulga atrás da orelha”. Entretanto, A. aceitou realizar o atendimento.
Quando consegui falar com meu colega no celular, ele me informou que a situação era muito estranha, já que horário de atendimento do rapaz seria às 15 horas – para sua primeira sessão. Portanto, A. conversou com o paciente através do meu celular e na sequência me disse que ele iria ficar na sala de espera até o horário da sessão, ou seja, passaria por volta de 8 horas na sala, aguardando seu analista. Decidi por seguir meu dia-a-dia no consultório: janelas abertas, luzes acessas, rádio ligado, apenas faltava passar o café. Quando me dirigia à cozinha, o sujeito intervém:
— Dr., têm café? É que vou passar o dia aqui e não vou ter tempo para almoçar. Um café ia dar uma “segurada no estômago”.
No que de súbito respondi:
— Bom, não têm café ainda. Vou passar um agora e já te trago um copo.
Assim que o café ficou pronto, lhe servi em um dos copos de plástico que ficam na sala de espera e nossa interação acabou por aí. Porém, esta situação peculiar não foi simples para mim e apesar de já ter a ela dedicado alguns anos de reflexão, seus efeitos ainda me desalojam enquanto psicanalista. É difícil descrever como a sucessão de acontecimentos neste dia me deixaram envergonhado e inseguro, pois minhas ações não correspondiam a estes afetos. Minha reação à situação ainda é enigmática para mim, fui breve e certeiro, como se soubesse o que estava fazendo. Não tenho dúvidas que a interpelação enunciada pelo rapaz foi interpretativa para mim — e este texto busca apresentar essa consideração —, mas essa lembrança me convoca a pensar, cada vez mais, sobre em que consistem as relações transferenciais, se é possível conceber que elas tenham hora e lugar para acontecer.
O lugar do café
Como o rapaz não foi meu paciente — e isso com certeza tem um peso nessa história —, não posso inferir sobre o que se deu depois de nossa interação[4]. Inclusive nas conversas que tive com “A.” nos dias seguintes, voltavam-se mais para as discussões que apresento aqui do que sobre o andamento do caso em si. Com essas considerações, poderia se dizer que o presente texto não é um caso clínico. Não um convencional pelo menos. Por outro lado, naquilo em que ele pôde esclarecer sobre a experiência de analista, fisgado pelo enigma do que se passa em uma sala de espera de um consultório de psicanálise, principalmente no que diz respeito às incidências clínico-políticas neste lugar, este texto é um caso clínico.
Antes de passarmos ao desenvolvimento dessa concepção, eu gostaria de trabalhar a ideia de que o significante “café” não fora uma mera contingência na situação. Vindo do interior de São Paulo, mais precisamente da cidade conhecida como “terra do café”, de certa maneira, a própria imagem de café ou da palavra “café” de imediato surtem certo efeito de familiaridade em mim. Mas, para além disso, foi somente após ter me graduado em psicologia que comecei a ter gosto por tomar café. Em alguns trabalhos em instituições, no consultório ou na pós-graduação, a hora do “cafezinho” começou a se mostrar um dos mais agradáveis e mais importantes momentos das minhas atividades. É no convite para um “cafezinho” que as coisas se horizontalizam, que o afeto atravessa as conversas burocratizadas e o lugar onde as parcerias se firmam.
Tal significante também estava especificamente associado ao prazer de chegar de manhã no consultório para trabalhar e ter um café fresquinho, recém-coado por um de meus colegas. Ir tomar um café na cozinha sempre fora um momento de trocas mais rápidas, porém mais calorosas no consultório: um espaço para o desabafo ou para a risada, também o momento de levantar e até mesmo resolver uma questão — de psicanálise, ou da vida mesmo. Nas instituições de saúde, assistência social ou mesmo jurídicas em que trabalhei, o café também tecia os encontros. Não havia lugar mais estratégico do que a mesa em que serviam o café para poder puxar assunto com um técnico, ou mesmo com usuários dos serviços. Se a ideia era fazer um grupo operativo ou uma atividade de oficina, o cafezinho sempre acabava aparecendo antes, durante ou depois do encontro.
O seriado mexicano Chaves (El Chavo del 8, 1971) é um enorme sucesso no Brasil, havendo uma intensa absorção de tal programa em nossa cultura. Nele encontramos outra dimensão do “cafezinho” que parece se adequar muito bem ao imaginário social brasileiro. Os personagens enamorados Dona Florinda e Professor Girafales mantém um relacionamento amoroso tão repetitivo quanto utópico, no qual seus encontros nunca passam do “cafezinho”. Diariamente seguem o mesmo ritual no qual ela lhe convida para entrar e tomar uma xícara de café, enquanto ele, por educação pergunta se não está incomodando. Embalados pela trilha de E o vento levou (Gone with the wind, 1939), eles declamam seus eternos votos amorosos em torno de uma desculpa cotidiana para sua ligação.
O café é um convite. O “cafezinho” figura-se como um subterfúgio ritualizado que permite a emergência dos afetos nas relações burocratizadas. Eu não havia titubeado, pois parecia saber a resposta certa para a pergunta do paciente: “Bom não têm café ainda, vou passar um agora e já te trago um copo”. Depois, tive e ainda tenho dúvidas se “respondi bem”. Tento compreender minha rapidez na resposta dentro daquilo que Zygouris chama de “pensamento-relâmpago”[5], algo que relampeja “da boca do analista” e que diz da transferência. Dessa maneira, o pedido de um café para segurar o estômago interpelou-me em uma rede de significantes que me levaram a respondê-lo transferencialmente. Não se trata de uma interpretação, pois parece ter mais efeito no inconsciente do analista do que do analisando. Tem efeito desopilador em um psicanalista.
Era a primeira sessão dele e eu sabia disso. Lembrei-me de uma das minhas primeiras sessões de análise em que esperei o convite de meu analista para entrar em seu consultório. Tal como um vampiro que não ultrapassa o batente da porta sem convite, revelava certo tipo de relação que tendo a estabelecer com supostas “regras” da psicanálise. Quando entramos no campo do desconhecido recorremos às regras como balizas para nossa ação – em determinado aspecto, essa é uma das funções da regra: dizer o que deve ser feito quando não se sabe exatamente o que fazer. É cômodo, pois nos desimplica da posição de escolha sobre nossos atos. Estou falando do momento em que nos rendemos às “normas da tradição”, em que nela nos alienamos em nossa prática. Atendi à demanda de um paciente dentro de um consultório de psicanálise. Inexperiência e heresia. Atendi a demanda, porque para mim o café é um convite.
O pobre e o divã
Lendo minhas ações, suponho que eu queria era que rapaz se ancorasse[6] naquele lugar, o consultório. Repousava em mim o desejo de que ele se sentisse acolhido. Queria garantir o convite, de que sua primeira experiência com o consultório de psicanálise fosse boa e que isso facilitasse sua transferência com A.. Mesmo tendo consciência disso, eu o tratava como um paciente de instituições de saúde ou assistência social. Não conseguia ignorá-lo como no cotidiano fazia (e faço) com os pacientes de outras classes sociais.
Certa vez, Guattari afirmou que por mais que a psicanálise de sua época se empanturrasse de linguística e de matemática, ela continuava a “[…] repisar as mesmas generalidades sobre o indivíduo e a família”[7]. É no mesmo texto, chamado “O divã do pobre”, que ele acusa a psicanálise de nunca ter sido mais que “[…] um pequeno artesanato reservado as elites seletas”[8]. Crítica dura, generalista, mas extremamente pertinente. Levanta o questionamento imprescindível sobre a impossibilidade técnica, metodológica e teórica da psicanálise atender os pobres. A presença de tal paciente, um morador de rua na sala de espera, quebrou minha rotina em relação ao consultório. O que eu não estava vendo ou escutando que agora ficava completamente escancarado, impossível de ignorar?
A crítica de Guattari não parece tão datada ou tão infundada se pensarmos que ainda hoje “Pagamos por um lugar no divã para nos fazermos invadir pela presença silenciosa de um outro — se possível alguém distinto, alguém de classe nitidamente superior à nossa”[9]. Trata-se de um calcanhar de Aquiles da clínica psicanalítica, não só em termos ideológicos, mas também na história de sua própria institucionalização. A situação na qual o paciente me pede um copo de café, instantaneamente me remeteu a um recorte de classe, trazendo à tona o laço social e político no qual nos encontrávamos, mesmo que o setting do consultório possa sugerir que sejamos “imunes” a ele.
Ao debater sobre o início dos tratamentos psicanalíticos, Freud toca nesta questão e afirma “[…] lamentar que a terapia analítica seja quase inacessível às pessoas pobres, tanto por razões externas quanto internas”[10]. Mesmo concebendo a possibilidade de realizar o tratamento de alguém que não tenha condições financeiras de “bancar” uma análise, Freud indica que a própria condição de vulnerabilidade social e econômica poderia “enganchar-se” à neurose. É o que chama neste texto de “lucro secundário da doença”, isto é, a pessoa poderia então eximir-se inconscientemente da responsabilidade de sua miséria através da piedade produzida por seu adoecimento. Tal formulação sugere que a própria condição da pobreza de alguma maneira inviabilizaria um tratamento psicanalítico. Formulação incômoda.
Em uma de suas conferências introdutórias à psicanálise, Freud retoma essa questão, elucidando certa impotência do método psicanalítico frente ao que denominou como “frustrações reais”. Segundo Freud, são os infortúnios da vida: “[…] a falta de amor, pobreza, dissensões de família, escolha mal feita de um companheiro no casamento, circunstâncias sociais desfavoráveis, e a rigidez dos padrões éticos a cuja pressão o indivíduo está sujeito”[11]. O psicanalista deve recusar assumir o papel de um benfeitor benevolente que acredita dotar-se de poderes milagrosos quanto a estas questões, diz Freud ao reconhecer alguns limites sócio-políticos da metodologia de tratamento psicanalítico:
Mas, quem somos nós [os psicanalistas], para adotar semelhante benevolência como instrumento de nossa terapia? Pobres como somos, socialmente sem poderes, compelidos a ganhar a vida com nossa atividade médica, não estamos sequer em condições de ampliar nossos esforços até as pessoas sem recursos, como podem fazê-lo, afinal de contas, outros médicos com outros métodos de tratamento. Nosso tratamento consome tempo demasiado e é por demais trabalhoso para que isso se torne possível.[12]
Assim sendo, Freud indica que a impossibilidade do atendimento da população pobre estaria relacionada a uma espécie de limitação metodológica de tratamento. A eventualidade de uma análise ser demorada e por ser “trabalhosa” cercearia a possibilidade de que pessoas sem poder aquisitivo pudessem receber um tratamento psicanalítico. Agora as limitações deslocam-se para o campo das “frustrações reais”, aquilo que está além do poder do analista, mas também para limitações metodológicas da própria prática psicanalítica. O reconhecimento de possíveis limitações na metodologia e na técnica relacionadas a um recorte de classe dos atendidos foi retomado com dotes proféticos em seu pronunciamento no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, em Budapeste no ano de 1918. Este pronunciamento foi publicado no Brasil sob o título de “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica”[13] ou “Caminhos da Terapia Psicanalítica”[14]. Nele encontramos a famosa e controversa formulação freudiana sobre a fusão do puro ouro da análise e o cobre da sugestão direta como o recuo técnico incontornável para a realização do tratamento da população pobre.
Tratou-se de um momento bastante atípico de Freud, no qual ele leu seu pronunciamento — fato raríssimo, já que ele sempre havia criticado a insegurança daqueles que precisam ler suas ideias em público[15]. Não se podia esperar menos, pois no Congresso em Budapeste, “[…] representantes oficiais dos mais altos escalões das potências centro-europeias estavam presentes às comunicações e demais atividades, como observadores”[16], o que sem dúvida seria o suficiente para produzir tal situação atípica. Inclui-se aí o fato de que Freud esperava como resultado do Congresso, que se pudesse firmar uma parceria com o Estado, no qual a psicanálise se tornasse uma medida de saúde pública. O advento das neuroses de guerra fizera com que a psiquiatria e a neurologia, após muita resistência, se voltassem ao método psicanalítico como tratamento para tais padecimentos.
Nesse sentido, ganha o peso da precariedade do pós-guerra a tentativa freudiana de viabilizar o atendimento de camadas mais amplas da população através do financiamento estatal para a construção de “[…] alguma organização [que] nos permitisse aumentar nosso número de forma tal que bastássemos para o tratamento de grandes quantidades de pessoas”[17]. Além disso, Freud previa novas reformulações técnicas para o novo desafio, chegando à derradeira formulação em seu pronunciamento:
Então haverá para nós a tarefa de adaptar nossa técnica às novas condições. Não tenho dúvida de que o acerto de nossas hipóteses psicológicas impressionará também os incultos, mas teremos de buscar a mais simples e palpável expressão para nossas teorias. Veremos, provavelmente, que os pobres se acham ainda menos dispostos a renunciar a suas neuroses do que os ricos, porque a difícil vida que os espera não os atrai, e a doença significa, para eles, mais um título à assistência social. […] É também muito provável que na aplicação em massa de nossa terapia sejamos obrigados a fundir o puro ouro da análise com o cobre da sugestão direta, e mesmo a influência hipnótica poderia ter aí seu lugar, como teve no tratamento dos neuróticos de guerra[18].
Não precisamos ir muito longe para demonstrar a estranheza presente na ideia de “recuar” a técnica psicanalítica novamente para a sugestão e hipnose na tentativa de ampliação da população que recebia atendimentos psicanalíticos. Sabemos que as esperanças de Freud foram frustradas com o fim da Guerra e com o desmantelamento do aparato estatal, porém também se sabe que o cervejeiro Anton von Freund — que fora tratado por Freud — realizou uma doação em dinheiro à Associação Psicanalítica, possibilitando em 1920 a fundação da Policlínica de Berlim e em consequência o Instituto Psicanalítico de Berlim — lugar onde se instituirá pela primeira vez a formalização de uma formação psicanalítica. Assim, chegamos ao ponto em que o atendimento de alguém pobre toca a questão da normatividade institucional psicanalítica, assim como na abertura freudiana para a inovação e certa “elasticidade da técnica”. A questão principal trazida por Freud aqui talvez seja mesmo a ideia de que a psicanálise é uma prática que constantemente reflete sobre a suas formulações técnicas.
Se o pobre não possui um lugar no divã, isto é, se o método e técnica psicanalítica desde suas fundações são reconhecidamente inacessíveis à uma grande parte da população, Freud demonstrou-se incomodado, e até certo ponto implicado em resolver essa questão — por mais que seus motivos fossem questionáveis. De alguma maneira, tal incômodo e implicação levou a psicanálise a se desenvolver em torno da ampliação não só dos atendimentos, mas também das formações. Assim, podemos inferir que não só o pobre é historicamente excluído do divã do analista, como ele encontra-se no centro estrutural da institucionalização da psicanálise.
Ampliar e Implicar
Retornemos à sala de espera. Quando o paciente de um colega me pediu por um café e eu lhe atendi essa demanda por ele viver em situação de rua, duas recomendações psicanalíticas me atingiram instantaneamente como relâmpagos fulminantes. Uma bastante ortodoxa e outra mais relacionada às minhas experiências em relação ao atendimento com população de rua e com adolescentes em medida socioeducativa. O primeiro relâmpago fulminante me dizia que enquanto analista, eu não deveria atender as demandas do rapaz, principalmente por ele não ser meu paciente. Perguntava-me inconscientemente: “que tipo de efeito isto teria na análise que ele estaria por realizar com A.?”. O segundo relâmpago me dizia sobre este pedido por café ser enunciado por alguém em situação de vulnerabilidade. Era um café para “segurar o estômago”. Solapou-me a ideia de que o horror da fome pudesse entrar nos consultórios psicanalíticos, e mais, poderia sentar na sala de espera.
Ao propor a formalização de práticas psicanalíticas clínico-políticas dentro de uma perspectiva implicada de psicanálise, Rosa sustenta o caráter clínico das intervenções realizadas por psicanalistas fora dos consultórios. Assim sendo, a psicanálise implicada[19] seria aquela “[…] constituída pela escuta dos sujeitos situados precariamente no campo social que permite teorizações sobre os modos como são capturados e enredados pela maquinaria do poder”[20]. A posição desejante destes sujeitos, no laço com o outro, torna-se o cerne de tais teorizações, possibilitando a construção, ou o realçamento de estratégias e táticas clínicas. Entretanto, neste âmbito ganham também destaque as “[…] modalidades de resistência aos processos de alienação social” [21] vividos por quem se encontra enlaçado na exclusão, ou privilegiado pela inclusão. Neste ponto, gostaria de trazer uma citação que há muito surte efeitos em minha prática clínica que, no entanto nunca havia antes penetrado as paredes do meu consultório particular:
A prática clínico-política neste âmbito relança as demandas institucionais, em geral focadas naqueles indivíduos que desorganizam ou atacam as normas institucionais. Estas são relançadas para diagnosticar, não o indivíduo, mas os laços sociais que atualizam os processos de exclusão em curso, e buscar reverter e inverter a direção das práticas, de modo a permitir a todos a elaboração de seu lugar na cena social. A direção de tratamento proposta junto às instituições parte da demanda e do sintoma referidos à instituição e seus efeitos no sujeito, em um posicionamento implicado na cena onde o que está em jogo são os lugares do sujeito no discurso, na relação do sujeito com a instituição, com o instituído e o instituinte. Elucida as trajetórias institucionais e efeitos, seja de ofertar um lugar simbólico, seja em induzir identidades imaginárias – nestas últimas, em lugar das histórias que podem ser contadas, produz-se silêncio e impedimento[22].
O pedido por um cafezinho também me lembrava do que havia aprendido ao trabalhar com profissionais e adolescentes de um programa de Medida Socioeducativa de regime semiaberto. Apesar de diversas divergências de opiniões entre os técnicos e os jovens atendidos, todos concordavam com a importância de um “lanche legal” para o estabelecimento de um vínculo de trabalho entre a molecada e os profissionais[23]. Fora do consultório, a ideia de “atender a demanda” já havia encontrado seu lugar dentro técnica psicanalítica para mim. Claro que não se trata da ingênua constatação de que a psicanálise implicada é aquela que “atende demanda”. Tal resolução seria desonesta. Aqui me refiro muito mais à formalização dos pressupostos já presente em Freud que dizem sobre a psicanálise ser interrogada quanto sua amplitude e sua inventividade para se ajustar a novas práticas e teorias para os diversos tipos de instituições e settings.
Martins diz que “Abandonar o setting clássico exige um esforço no sentido de não apenas inventar novos dispositivos como também de formular novos enquadres teórico-conceituais e de, sobretudo, escutar demandas provenientes de posições às quais o psicanalista de uma clínica tradicional não está acostumado”[24]. Isto é, na ampliação da prática e da teoria psicanalítica, o analista é confrontado a lidar com “[…] demandas que não estão dirigidas a ele e precisa aprender a lidar com elas”[25]. Reconhecemos que aqui a psicanalista trata da “ampliação” na especificidade de sua prática, ou seja, nos atendimentos com a população em situação de rua. Mas o que gostaria de propor aqui é a ideia de que uma psicanálise implicada não remeta à apenas aos settings que não sejam o consultório particular e sim as “transferências particulares”. Não há porque duvidar que a prática psicanalítica em consultório não seja também clínico-política, mas precisei que um rapaz em situação de rua me pedisse um café na quinta-feira de manhã para a “ficha cair”.
Como lidar com a demanda por um café, para “segurar o estômago” em uma quinta-feira de manhã em um consultório particular de psicanálise? Quando se parece não avançar em uma questão, talvez seja o momento de se recuar alguns passos. Nesse sentido, tornou-se uma implicação com a própria regra em relação à demanda em análise. De fato, no período em que tal situação havia ocorrido, a questão da demanda já urgia nos meus próprios atendimentos, já que por algumas vezes havia recusado pedidos e presentes de alguns pacientes, principalmente por não querer “atender a demanda”. Fazia o que achava ser o certo, em termos psicanalíticos, mas sentia-me alienado a um dogma estranho.
Em Lacan podemos encontrar a seguinte definição de “demanda”: “É aquilo que, a partir de uma necessidade, passa por meio do significante dirigido ao Outro.” [26]. Continua: “[…] a demanda, por si só, é tão relativa ao Outro, que o Outro logo se descobre na posição de acusar o sujeito, de repeli-lo, ao passo que, ao evocar a necessidade, ele o autentica, assume, homologa, aproxima-o de si, já começa a reconhecê-lo, o que é uma satisfação essencial”[27]. Assim, temos que a demanda direcionada ao Outro tem por efeito a recusa, uma oposição natural do Outro àquilo que se demanda. Isso leva Lacan a considerar que é da própria estrutura da demanda sustentar-se sobre uma oposição.
O que mais interessa nesta consideração lacaniana é a relação entre necessidade e demanda, principalmente para que possamos pensar na problemática de um pedido “por café”, com intuito de “segurar o estômago”. A principal diferença entre necessidade e demanda está relacionada a certa impossibilidade de mensurabilidade da demanda. O remodelamento de uma necessidade em demanda, por meio de um significante dirigido ao Outro, defenestra aquela em uma possibilidade ad infinitum. Segundo Lacan, a criança nos pede a lua de presente, exatamente por valer-se do complexo significante ao infinito.
Para exemplificar essa distinção, Lacan recorre à um chiste trazido por Freud — o chiste da maionese de salmão. Aqui, assim como em nosso caso, a problemática da demanda escorrega para um chiste, marcado pela tensão econômica (e por que não de classes sociais?). No chiste, um sujeito de alma caridosa dá uma esmola para um amigo (que poderia muito bem ser um morador de rua), mas acaba surpreendido por ver, em seguida, o próprio comendo uma maionese de salmão com o dinheiro doado. A questão da demanda aparece aqui no fato de que o amigo pobre havia demandado dinheiro para findar algumas dividas que o assombravam. O benfeitor questiona algo como: “mas sua demanda era de dinheiro para as dívidas” e o amigo lhe responde o subtexto: “a necessidade era a fome, a demanda por dinheiro e o desejo por salmão”. Me lembra de uma vez, que um tio meu ao dar umas moedas para um morador de rua em um semáforo, o adverte: “Não vai beber, hein?” e o rapaz, ironicamente, devolve: “Não se preocupe! Vou comprar uma casa!”
A interpretação do pedido por café, na construção de um caso singular que se direciona para a pergunta em relação ao desejo do paciente, não me era uma responsabilidade – lembro: não era meu paciente. Mas de certa forma, naquele momento da demanda, eu encarnava para nossa relação o lugar impossível do Outro. Um Outro que responde de um lugar em que os estômagos estão segurados e o café tem outra significação. Não se tratava de interpela-lo pelo questionamento sobre o desejo por sei-lá-o-que que estava transvestido de demanda por café, e muito menos levá-lo para degustar um café gourmet trajado de Ralph Lauren. O que se tratava era de convidá-lo para entrar e tomar um café. ♦
Referências
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* Diego Amaral Penha é psicanalista. Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Grupo de pesquisa CNPq Sujeito, sociedade e política em psicanálise (USP), do Laboratório Psicanálise Política e Sociedade (PSOPOL- USP) e da Rede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política (REDIPPOL). Autor dos livros: “Psicanálise e Cinema: Filmes Curam?” (2018) e “Teorias de Freud: Descobrindo o Inconsciente” (2013). Organizador do livro “Ensaios Sobre Mortos-Vivos: The Walking Dead e Outras Metáforas” (2018). Colunista de cinema e quadrinhos para o site Mob Ground (mobground.net). Atualmente pesquisa as relações entre Psicanálise, Política, Arte e Horror.
[1] Há época, eu e “A.” atendíamos no mesmo consultório e “A.” não era doutor.
[2] BROIDE, Jorge (2009) Psicanálise: nas situações sociais críticas. Curitiba: Juruá. 137 p.
[3] MARTINS, Raonna Caroline Ronchi (2016) A escuta ético-política na rua. 100 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
[4] Alguns anos mais tarde soube que o paciente teve de interromper seu tratamento para cumprir pena em regime fechado.
[5] ZYGOURIS, Radmila (2015) A gata de Schrödinger [Trad. P. Beer]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 0, p. 3. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2015/09/29/a-gata-de-schrodinger/>.
[6] BROIDE, Emilia Estivalet; BROIDE, Jorge (2012) O atendimento em situações sociais críticas. A construção de método: O plano individual de atendimento: Parte 1. Disponível em: < http://www.promenino.org.br/noticias/arquivo/o-atendimento-em-situacoes-sociais-criticas-a-construcao-de-um-metodo-o-plano-individual-de-atendimento-parte-i>. Acesso em: 10 jun. 2016.
[7] GUATTARI, Félix (1975) “O divã do pobre”. In: METZS, Christian et al (Org.) Psicanálise e Cinema: Cinetexto. São Paulo: Global, 1980; p. 107.
[8] GUATTARI, Félix (1975) “O divã do pobre”. In: METZS, Christian et al (Org.) Psicanálise e Cinema: Cinetexto. São Paulo: Global, 1980; p. 108.
[9] GUATTARI, Félix (1975) “O divã do pobre”. In: METZS, Christian et al (Org.) Psicanálise e Cinema: Cinetexto. São Paulo: Global, 1980; p. 114.
[10] FREUD, Sigmund (1913) “Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise)”. In: Volume XII – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996; p. 148.
[11] FREUD, Sigmund (1916-17) “Conferência XXVII – Transferência”. In: Volume XVI – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996; p. 434.
[12] FREUD, Sigmund (1916-17) “Conferência XXVII – Transferência”. In: Volume XVI – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996; p. 434.
[13] FREUD, Sigmund (1919[1918]) “Linhas de progresso na terapia psicanalítica”. In: Volume XVII – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[14] FREUD, Sigmund (1919) “Caminhos da terapia psicanalítica”. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): Além do princípio de prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[15] DANTO, Elizabeth Ann (2005) Freud’s Free Clinics: psychoanalysis and social justice, 1918-1938. Nova York: Columbia University Press; p. 17.
[16] FREUD, Sigmund (1919) “Introdução a A Psicanálise e as Neuroses de Guerra”. In: Volume XVII – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996; p. 227.
[17] FREUD, Sigmund (1919) “Caminhos da terapia psicanalítica”. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): Além do princípio de prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 291.
[18] FREUD, Sigmund (1919) “Caminhos da terapia psicanalítica”. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): Além do princípio de prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 292.
[19] ROSA, Miriam Debieux (2013) Psicanálise implicada vicissitudes das práticas clínico-políticas, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v. 41; p. 30.
[20] ROSA, Miriam Debieux (2013) Psicanálise implicada vicissitudes das práticas clínico-políticas, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v. 41; p. 30.
[21] ROSA, Miriam Debieux (2013) Psicanálise implicada vicissitudes das práticas clínico-políticas, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v. 41; p. 30.
[22] ROSA, Miriam Debieux (2013) Psicanálise implicada vicissitudes das práticas clínico-políticas, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v. 41; p. 31.
[23] Neste caso havia até o curioso caso de um desses adolescentes que comparecia todos os dias que deveria comparecer, diferentemente da esmagadora maioria dos adolescentes que faltavam com frequência. No fim descobre-se que o adolescente havia descoberto o pomar do programa do CREAS, onde realizava sua medida e sempre que chegava ao dispositivo chupava algumas laranjas antes de ir realizar suas tarefas.
[24] MARTINS, Raonna Caroline Ronchi (2016) A escuta ético-política na rua. 100 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo; p. 13.
[25] MARTINS, Raonna Caroline Ronchi (2016) A escuta ético-política na rua. 100 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo; p. 13.
[26] LACAN, Jacques (1957-1958) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999; p. 91.
[27] LACAN, Jacques (1957-1958) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999; p. 91.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | PENHA, Diego Amaral (2019) Não gostaria de entrar e tomar uma xícara de café?. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p. 3, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-03/>.