Escansão em psicanálise e arte: uma outra Via Regia

[ Scansion in Psychoanalysis and Art: Another Royal Road ]

por Vanessa Sinclair

Tradução | Luigi Barichello

Esse texto examina a escansão na teoria e prática psicanalíticas e sua capacidade de acessar a verdade. Para isso, serão considerados artistas que, de algum modo, valem-se em seus trabalhos da ideia de corte — o corte de linguagem encontrado nos poemas acidentais de Tristan Tzara ou o método de corte [cut-up] de Brion Gysin e William S. Burroughs; a justaposição de imagens nas colagens de Hannah Höch e montagens de Man Ray; a edição fílmica sugerida por Kenneth Anger, Derek Jarman e People Like Us; a disrupção de som pelos entoadores de ruído, de Luigi Russolo, ou as manipulações de fitas do Throbbing Gristle; ou, ainda, conceituamente, à la Marcel Duchamps. Esses métodos e temáticas comparecem no trabalho dos simbolistas, dadaístas, surrealistas, fluxistas, dos acionistas e também dos artistas de vanguarda de nosso tempo. Egon Schiele explora o corte na pintura tradicional por meio da truncagem dos membros de seus sujeitos, compondo imagens a partir de procedimentos inéditos. Hans Bellmer e Unica Zürn investigam a interação entre escravidão e libertação por meio do desenho, da fotografia, da escultura e de outras formas. A arte performática faz amplo uso da exploração do corte, de Yoko Ono e Marina Abramović a Coum Transmissions e os acionistas vienenses; artistas contemporâneos, como Stelarc, por exemplo, quebram barreiras e ultrapassam limites mediante a modificação e extensão do corpo, enquanto Breyer P-Orridge explora gênero e identidade por meio de alterações físicas e comportamentais[1].

Em nosso atual momento de crise cultural, faz sentido retornar a essas ideias, francamente exploradas, a princípio, ao longo do movimento dadá, que floresceu durante o mesmo período de tempo e dentro dos mesmos epicentros culturais e intelectuais que deram origem ao campo da psicanálise. O movimento dadaísta questionou os valores aceitos pela sociedade e a visão de mundo consensual, desafiando o status quo ao mesmo tempo em que adotava novas formas de pensar. Lançando mão de novos materiais e métodos, o dadaísmo rompeu paradigmas sobre a natureza da arte e até mesmo de métodos próprios e modos de criação, observação e experimentação das obras de arte. Ao dar valor à cacofonia, aos sonhos, à espontaneidade, ao deslocamento, ao acaso e à violação da sintaxe como técnicas para libertar o inconsciente do domínio da razão e da tradição, os dadaístas perceberam que, até então, a arte servira à civilização. Sua antiarte desafiaria isso.

A relação entre psicanálise e belas artes é longa e frutífera, tendo se estabelecido desde o princípio. Sigmund Freud (1856-1939) perscrutou a teoria psicanalítica por meio do estudo de obras de arte e artistas como Leonardo Da Vinci e Michelangelo; em 1914 escreveu “O Moisés de Michelangelo”, em que começa dizendo: “De antemão devo dizer que não sou conhecedor de arte, mas apenas um leigo. […] Mas as obras de arte produzem um forte efeito sobre mim, em especial as obras literárias e as esculturas”[2]. E prossegue:

No meu modo de ver, aquilo que nos emociona fortemente pode ser apenas a intenção do artista, na medida em que conseguiu expressá-la na obra e torná-la apreensível para nós. Sei que não pode se tratar de uma apreensão puramente intelectual; deve ser produzida em nós a disposição afetiva, a constelação psíquica que gerou no artista o impulso para a criação[3].

Freud, porém, tende a apreciar a arte aos moldes da crítica literária, isto é, desmontando seus vários componentes e dando um sentido maior ao todo por meio da exploração de suas partes. Isso não é, contudo, o que me proponho a fazer. Nesse estudo, estou mais interessada no processo de criação em si, no ato, que no valor estético das partes envolvidas. Importa-me a experiência a que Freud alude: o despertar da centelha de criação, a inspiração, um momento de verdade, e que o artista exprime na — no processo de — criação de uma obra de arte.

A entrada de Jacques Lacan (1901-1981) trouxe o conceito de escansão para a teoria e prática psicanalíticas, realçando o valor potencial do corte/interrupção. Visto que muito do que transcorre no tratamento psicanalítico tem lugar fora da sessão, Lacan defendia que era melhor que um analisando saísse num momento envolto em potencialidade e curiosidade do que ao término de um período de tempo preestabelecido, e isso porque essa consistência permitiria ao analisando ressuturar o inconsciente antes de deixar a sessão. Nascia assim a “sessão de tempo variável”. Concorde-se ou não com a sessão interrompida, cabe reconhecer o valor de se demarcar um momento em que o analisando está experimentando um ponto de conexão, clareza, discordância ou outra forma de irrupção do inconsciente, o que também pode sobrevir por meio da reverberação da linguagem, ao se marcar um significante, levantar uma questão ou ficando em silêncio. Assim como os sonhos, a escansão pode então ser tomada como outra “Via Regia” para o inconsciente; a escansão se mostra como outra trilha de acesso à verdade ao trespassar a narrativa consciente que formulamos para nós mesmos.

O recurso da escansão tem sido empregado pela arte, pela literatura e pela poesia — e também na psicanálise —, e, de maneiras diversas, gera efeito semelhante. Este texto percorre um fio de artistas e intelectuais que, por meio da ruptura, da justaposição, da escansão, produzem o corte. Técnicas que lançam luz sobre as dinâmicas do inconsciente, da associação livre, dos sonhos, da metáfora, da metonímia.

Como o espaço para essa apresentação é limitado, darei ênfase ao advento da fotografia como um corte em si mesmo e aos movimentos de vanguarda que se firmaram na virada do século, época em que também a psicanálise se estabelecia.

O advento da fotografia: um corte no tempo

O surgimento da fotografia causou uma mudança de perspectiva difícil de ser compreendida hoje: nossa cultura está tão amplamente permeada por seus efeitos que é impossível imaginar como era a vida antes dela. Toda a cultura digital, mídia, televisão, cinema, internet e programação assenta na imagem, e é praticamente impossível imaginar nossas vidas sem ela.

Daguerreótipo
Daguerreótipo

Comecemos com uma breve história: em 1839, a primeira câmera foi patenteada por Louis Daguerre (1787-1851), que anunciou sua invenção proclamando: “Capturei a luz! Apanhei seu voo!”[4]. Ainda que minuciosamente belo, o método de Daguerre infelizmente não veio a permitir a criação de reproduções ou múltiplos de uma imagem. Em 1841, William Henry Fox Talbot (1800-1877) anunciou seu método de reprodução de imagens, chamado por ele de “calótipo”. Embora não tão rico em detalhes como o daguerreótipo, o calótipo permitia que várias impressões fossem feitas a partir de um negativo.

William Henry Fox Talbot, An oak tree in winter [Calótipos de papel salinizado] (Lacock, c. 1842-43)

Em poucas décadas, a câmera deixou de ser um dispositivo especializado a serviço da elite para se tornar instrumental na vida social e cultural. A fotografia logo passou a ser utilizada em sistemas burocráticos — como identificação, registro policial, forense, processual —, bem como para reconhecimento militar, relatórios de guerra, jornalismo, referência enciclopédica, registros antropológicos, história da arte, ciências médicas, estética, em cartões postais, álbuns de família, retratos e pornografia. Em “Usos da fotografia – Para Susan Sontag”, John Berger (1926-2017) observa que “a velocidade com que se apoderaram de usos possíveis da fotografia é certamente um indicativo de sua central e insondável aplicabilidade para o capitalismo”[5].

Brownie com visor [opcional] (março de 1900)

A primeira câmera popular, e relativamente barata, chegou ao mercado por volta de 1888. Em 1900, mesmo ano em que Freud publicara A interpretação dos sonhos, Eastman Kodak lançou a Brownie, a primeira câmera portátil acessível, manuseável e de apontar e disparar. Vendida como “simples o suficiente até para crianças usarem”[6], a Brownie trouxe a fotografia para as massas; sua chegada revolucionou verdadeiramente a fotografia e a sociedade em geral ao levar às mãos das pessoas comuns a habilidade de desfrutar das imagens. Em um ano, a Eastman Kodak havia vendido 250.000 delas, e várias outras empresas passaram então a criar e comercializar sua própria marca.

De certa forma, tanto o desenvolvimento da psicanálise de Freud quanto a invenção da câmera portátil fizeram o foco se voltar para o indivíduo. Na psicanálise, ao invés de doutores, médicos e “especialistas” dizendo ao paciente como esses se sentiam, e por quê, o sujeito foi, pela primeira vez, convidado a falar; e o médico, a ouvir. De modo semelhante, a Brownie também deslocou o poder para as mãos do indivíduo: no lugar da mídia, dos jornalistas, do governo, das figuras de autoridades e de “outros” decidindo o que deveria chegar aos cidadãos, o indivíduo passou a ter controle das fotos que captaria, e onde, e também de quem e daquilo que seria importante lembrar e recordar. Embora possa parecer uma mudança simples, foi uma transformação bastante significativa.

Freud mesmo fora tomado por imagens fotográficas. Cientistas, professores e médicos de sua época viram-se inundados por essa forma de documentação visual, e como nunca antes: fotos de procedimentos médicos e de anomalias recheavam livros e revistas; cartões com obras de arte, antigas ruínas e arquitetura tornaram-se abundantes, e passaram a ocupar o consultório de Freud ao lado de suas coleções de artefatos.

Talvez se possa até mesmo afirmar que a psicanálise não teria sido capaz de se desenvolver não fosse a invenção da fotografia. Esse ato de ver, de ser capaz de observar um fenômeno ou objeto — presente, mas simultaneamente à distância — estabeleceu uma nova forma de comparecer e sentir: essa mudança nos modos de percepção constituiu um novo método de experiência, não muito diferente de estar numa sessão analítica e começar a observar os próprios pensamentos e memórias como que por intermédio de uma lente: o tal “eu observador” conservando, de forma semelhante, certa distância da experiência em si. Alternativamente a ver-se capturado no turbilhão de pensamentos, emoções e associações, o esforço psicanalítico nos permite um pouco de espaço, um espaço para que possamos nos observar de um modo novo, não muito diferente daquele a partir do qual um fotógrafo (ou, posteriormente, um cineasta) olha para o sujeito ou cena. Isso se mostra, inclusive, na maneira como Freud nos instrui a imaginar alguém no vagão de um trem olhando pela janela: observar a mente tal como observamos a paisagem passando do lado de fora.

Os próprios pontos de vista de Freud foram certamente influenciados pela cultura da fotografia de seu tempo. Em A interpretação dos sonhos (1900) e em “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936) e também em várias cartas, Freud relembra os sonhos de visitar locais antigos e o sentimento estranho que os acompanhava, uma vez que já os tinha visto tantas vezes em livros e postais. Desse modo, as fotografias podem produzir certa familiaridade com um item ou lugar ao mesmo tempo em que criam uma experiência de dissonância quando confrontadas com o objeto real e sua diferença ante nossas expectativas e imaginação. Em Mirrors of Memory: Freud, Photography and the History of Art [Espelhos de memória: Freud, fotografia e história da arte], Mary Bergstein (1952-) afirma:

Como as fotografias eram tão frequentemente vistas como espelhos de memória em meados da virada do século XX, ganham especial relevância para a visão imaginativa de Freud. Enquanto impressões de luz, as fotografias parecem imitar — ao menos num sentido metafórico — o fenômeno mental das lembranças e sonhos[7].

A investida das imagens fotográficas, à época, pode ter influenciado o processo de pensamento de Freud ao observar a si mesmo, seus sonhos, seus pacientes e o mundo à sua volta.

A fotografia captura um instante, uma fração de tempo, um momento; “depósito visual, como vestígios ‘tirados’ do continuum da experiência vivida”[8]. Capturar esse instante o conserva ao nosso alcance e, ao mesmo tempo, dele nos distancia. Ficar atrás da lente de uma câmera interpõe um escudo entre o observador e o observado, entre o voyeur e o objeto contemplado.

Há algo do acaso, da imprevisibilidade, no ato de tirar uma foto. Como Roland Barthes (1915-1980) descreveu em A câmara clara: nota sobre a fotografia (1980), o fotógrafo desenvolve uma espécie de clarividência sobre o melhor momento para tirar uma fotografia, e que lembra a atenção flutuante que Freud descreve. Um estado de suspensão em que certos momentos reluzem como pedras preciosas e significantes parecem pulular. Com a prática, o analista ou fotógrafo aprende a intervir, ou a refrear, na hora certa, para lançar luz naquele momento de abertura do inconsciente, quando a vida irrompe em seu estado mais pungente e cru. Henri Cartier-Bresson (1908-2004) descreve esse fenômeno, e seu trabalho como fotógrafo, como capturar o momento decisivo: aquele momento preciso, o momento da verdade, quando tudo parece se unir, quando há mais em cena do que parece.

Moi [J. H. Lartigue] (Rouzat, setembro de 1920)

Antes de Cartier-Bresson, o fotógrafo Jacques-Henri Lartigue (1894-1986) já capturava imagens distintas do cotidiano: momentos de surpresa, contingências e acasos na França do início do século XX. Lartigue parece captar a maravilha da virada do século, cheia de possibilidades e oportunidades à medida que as tecnologias em constante evolução anunciavam o nascimento de uma nova era, la belle époque, anterior às tragédias e calamidades das guerras mundiais. Muitas de suas fotografias captam brincadeiras e esportes envolvendo prodígios tecnológicos, ciclismo, patinação no gelo, máquinas voadoras, corridas de carros, barcos… Lartigue põe em foco a diversão e emoção dessas máquinas, e a inventividade humana envolvida na sua criação e execução. Apesar de ter vivido tanto as guerras mundiais quanto a Grande Depressão, Lartigue parece conservar esse senso de possibilidade ao longo de sua carreira e em seus trabalhos ulteriores.

Posteriormente, os surrealistas passaram a olhar para as fotografias como se essas abarcassem o conteúdo manifesto dos sonhos. Claramente influenciados pelas ideias e escritos de Freud, os surrealistas valeram-se de uma visão nova sobre a fotografia, para além do puramente documental, como aponta Peter Galassi (1951-), historiador da arte. Para ele, os surrealistas podiam ver, numa foto cotidiana, mensagens e significados que passavam despercebidos ao espectador comum e até mesmo aos fotógrafos. Fotografias usuais, especialmente quando apartadas de suas funções práticas, carregam uma miríade de significados imprevisíveis e não intencionais.

Espraiando o inconsciente

No começo do século XX a psicanálise estava se firmando pela Europa e América do Norte. O que começara como reuniões semanais da “Sociedade das Quartas-feiras”, no consultório de Freud, em 1902, evoluiu para a Sociedade Psicanalítica de Viena, fundada em 1908; em 1913, sociedades já haviam se formado em Berlim e Zurique (1910), Nova York e Munique (1911) e em Londres e Budapeste (1913), assim como a Associação Psicanalítica Internacional (1910). À medida que a psicanálise ia se radicando, movimentos artísticos de vanguarda igualmente varriam o continente.

File:Luigi Russolo and assistant Ugo Piatti in their Milan studio with Intonarumori, L’Arte dei rumori (The Art of Noises), 1913.jpg
Luigi Russolo e Ugo Piatti, seu assistente (Milão, 1913)

Na Itália, o pintor Luigi Russolo (1885-1947) — filho de um relojoeiro e organista — começou a produzir seus próprios instrumentos musicais e a criar composições experimentais para eles. Membro do movimento futurista, Russolo desenvolveu e construiu os primeiros “entoadores de ruído” [intonarumori] ou “órgãos de ruído”, compondo o que viria a chamar de “redes de ruídos” e, depois, de “espirais de ruídos” para sua invenção. Concentrou-se em criar e coletar ruídos do cotidiano e sons ao acaso, além de distorções e rupturas de composições musicais tradicionais. Em 1913, Russolo publicou seu manifesto A arte dos ruídos, no qual esboça duas concepções teóricas, discutindo a invenção da máquina no século XIX e o nascimento do ruído segundo sua perspectiva. O primeiro concerto público com o “órgão de ruído” se deu em abril de 1914, resultando em tumultos e repercussão negativa na imprensa, que descartou qualquer mérito dito artístico dessas produções disruptivas. As ideias de Russolo, contudo, marcam um momento crucial na evolução da estética musical do século XX. Russolo é, via de regra, considerado o pai da primeira poética sistemática do ruído e o criador do sintetizador, e sua influência em músicos pioneiros como Edgar Varèse (1883-1965), Pierre Schaeffer (1910-1995) e John Cage (1912-1992) encontra-se bem referenciada[9].

Na época da eclosão da Primeira Guerra Mundial, muitos dos futuristas foram alistados. Filippo Marinetti (1876-1944) relata que enquanto todos os soldados estavam na linha de frente ou ocupados preparando refeições, acendendo fogueiras ou revezando-se cavando por água, “Russolo estudava os ruídos da guerra e, a partir deles, buscava aperfeiçoar seus intonarumori[10]. Infelizmente, nenhum dos instrumentos de Russollo sobreviveu à guerra, restando apenas alguns compassos de algumas de suas composições.

Nos anos que antecederam a Primeira Guerra, muitos fugiram para a neutra Suíça. A inauguração do Cabaret Voltaire, em fevereiro de 1916, marcou o início do movimento dadaísta, reunindo uma miríade de artistas e intelectuais dos mais diversos países, meios, origens e visões de mundo. Os poetas alemães Hugo Ball (1886-1927) e Emmy Hennings (1885-1948) o fundaram a partir de um chamado de artistas no jornal local:

Do you want to go to war or hang out in Switzerland with this guy? Hugo Ball reciting the poem Karawane at the Cabaret Voltaire, 1916
Hugo Ball recitando o poema Karawane (Cabaret Voltaire, 1916)

Cabaret Voltaire: sob esse nome, um grupo de jovens artistas e escritores se formou […] com o objetivo de se tornar um centro de entretenimento artístico e de intercâmbio cultural. O Cabaret Voltaire ocorrerá a partir de encontros diários em que os artistas visitantes apresentarão sua música e poesia. Os jovens artistas de Zurique, independentemente de sua orientação, estão convidados a trazer suas ideias e contribuições[11].

Os artistas que responderam realizaram seu primeiro sarau poucos dias após o anúncio, e ficaram inicialmente conhecidos como a Sociedade de Artistas Voltaire. O Cabaret Voltaire nasceu como um cabaré literário em que Ball, no piano, sempre acompanhava Hennings, que cantava e recitava poemas. Emma Hennings era bastante conhecida naquela época, pois esteve envolvida com o movimento expressionista alemão antes do movimento dada; atraía multidões, combinando canções populares, baladas e entretenimento à leitura de textos literários clássicos e experimentais.

Os dadaístas faziam uso do aspecto performativo do cabaré para mostrar suas experimentações e esforços artísticos. Uma das performances mais populares foi a versão de Hennings para o poema antiguerra de Ball, Totentanz (“Dança da Morte”), declamado por ela ao som de um jingle muito conhecido na época, chamado “É assim que vivemos”:

Assim morremos nós, assim morremos nós
E morremos todo dia
Pois há conforto em morrer-se assim.[12]

Cantar essa letra acompanhada de uma música e melodia utilizada tipicamente para invocar o patriotismo era uma provocação, uma declaração antiguerra[13]. Hennings sacudiu o público de forma atípica, insólita; esse tipo de justaposição de palavras, forma e conteúdo era característico das apresentações dos dadaístas: os artistas visavam intencionalmente criar um efeito perturbador no público. “No âmago do dadaísmo estava o ‘ato gratuito’, o gesto paradoxal e espontâneo destinado a revelar a inconsistência e a insanidade das crenças convencionais”[14].

Esses trabalhos são apenas alguns dos exemplos do espírito da época: a arte inspirava à medida que avançavam também a ciência e a tecnologia que transformaram rapidamente o mundo à sua volta, conduzindo simultaneamente à era mais comercialmente produtiva e massivamente destrutiva que o mundo vivenciara até aquele momento. Os diferentes métodos e modalidades dos quais se valeram esses artistas expõem dinâmicas inconscientes, por vezes facilitando ou tencionando capturar eventos até então efêmeros — perceptíveis apenas por uma fração de tempo, meros segundos, um vislumbre de um momento de verdade — assim como Freud criou uma forma de marcar os traços indômitos do inconsciente: os sonhos, os lapsos, os chistes, as fantasias e os atos falhos.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Rolland (1980) A câmara clara: nota sobre a fotografia, 7ª ed. Trad. J. Castañon. Nova Fronteira, 2018.

BELLIS, M. (2019). “The history of photography: pinholes and Polaroids to digital images”, ThoughtCo, 30 de maio de 2019. Disponível em: <www.thoughtco.com/history-of-photography-and-the-camera-1992331>.

BERGER, John (2013) Understanding a Photograph. Ed. G. Dyer. London: Penguin

BERGSTEIN, Mary (2010) Mirrors of Memory: Freud, Photography and the History of Art. Ithaca: Cornell University Press.

CHESSA, Luciano (2012) Luigi Russolo, Futurist: Noise, Visual Arts, and the Occult. Berkeley: University of California Press.

DELPIRE, Robert [Org.] (1976a). Henri Cartier-Bresson. New York: Aperture.

_____. (1976b). Jacques-Henri Lartigue. New York: Aperture.

FREUD, S. (1900) Obras completas, vol. 4: “A interpretação dos sonhos”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

_____. (1914) “O Moisés de Michelangelo”. In: Obras completas, vol. 11: “Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; pp. 373-412.

_____. (1936). “Um distúrbio de memória na acrópole (Carta a Romain Rolland)”. In: Obras completas, vol. 18: “O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros texto”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 436-450.

GALASSI, Peter (1987) Henri Cartier-Bresson, The Early Work. New York: The Museum of Modern Art.

HEMUS, Ruth (2009) Dada’s Women. New Haven: Yale University Press.

ROSENBERG, Jennifer (2018) “Learn how the Brownie camera changed photography forever: how Eastman Kodak changed the future of photography”, ThoughtCo, 5 de julho de 2018. Disponível em: <www.thoughtco.com/brownie-camera-1779181>.

RUBIN, William (1967) Dada, Surrealism, and Their Heritage. New York: The Museum of Modern Art.

RUSSOLO, Luigi (1913) The Art of Noise: Destruction of Music by Futurist Machines. London: Sun Vision Press, 2012.

ZACZEK, Iain (2018) A Chronology of Art: a Timeline of Western Culture from Prehistory to the Present. London: Thames & Hudson.


* Vanessa Sinclair é psicanalista, recentemente transferida de Nova York para Estocolmo. Atende pacientes em diferentes países. É editora de Rendering Unconscious: psychoanalytic perspectives, politics and poetry (Trapart Books, 2019), coeditora (com Manya Steinkoler) de On psychoanalysis and violence: contemporary lacanian perspectives (Routledge, 2018) e autora de Switching Mirrors (Trapart Books, 2016). Conduz o podcast Rendering Unconscious, no qual aborda a conjuntura da psicanálise e dos cuidados de saúde mental, política, arte, cultura e eventos. É uma das fundadoras da Das Unbehagen: a free association for psychoanalysis, e organiza conferências psicanalíticas internacionais. Mais informações podem ser encontradas em <www.drvanessasinclair.net>, <www.renderingunconscious.org>, <www.trapart.net> e <www.dasunbehagen.org>. (Esse texto é parte de um livro, no prelo, intitulado Scansion in psychoanalysis and art: another royal road (Routledge, 2020).

** Luigi Barichello é linguista. Trabalha com tradução e narração/locução. E-mail: <lbarichello@uol.com.br>.



[1] Sem dúvida será muito frutífera ao leitor a visita a sites como: <http://peoplelikeus.org>, <https://stelarc.org/projects.php>, <www.coum.co.uk>, <https://mai.art/>, <www.throbbing-gristle.com>. (N. de T.)

[2] FREUD, Sigmund (1914) “O Moisés de Michelangelo”. In: In: Obras completas, vol. 11: “Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; p. 374.

[3] FREUD, Sigmund (1914) “O Moisés de Michelangelo”. In: In: Obras completas, vol. 11: “Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; p. 375.

[4] ZACZEK, Iain (2018) A Chronology of Art: a Timeline of Western Culture from Prehistory to the Present. London: Thames & Hudson; p. 198.

[5] BERGER, John (2013) Understanding a Photograph. Ed. G. Dyer. London: Penguin; p. 49.

[6] ROSENBERG, Jennifer (2018) “Learn how the Brownie camera changed photography forever: how Eastman Kodak changed the future of photography”, ThoughtCo, 5 de julho de 2018. Disponível em: <www.thoughtco.com/brownie-camera-1779181>.

[7] BERGSTEIN, Mary (2010) Mirrors of Memory: Freud, Photography and the History of Art. Ithaca: Cornell University Press; p. 9.

[8] BERGSTEIN, Mary (2010) Mirrors of Memory: Freud, Photography and the History of Art. Ithaca: Cornell University Press; p. 15.

[9] CHESSA, Luciano (2012) Luigi Russolo, Futurist: Noise, Visual Arts, and the Occult. Berkeley: University of California Press; p. 3, passim.

[10] CHESSA, Luciano (2012) Luigi Russolo, Futurist: Noise, Visual Arts, and the Occult. Berkeley: University of California Press; p. 114.

[11] HEMUS, Ruth (2009) Dada’s Women. New Haven: Yale University Press; p. 17.

[12]So sterben wir, so sterben wir / Und sterben alle Tage, / Weil es so gemütlich sich sterben läßt”. Cf. <www.totentanz-online.de/medien/literatur/ball.php>. (N. de T.)

[13] HEMUS, Ruth (2009) Dada’s Women. New Haven: Yale University Press; p. 31, passim.

[14] RUBIN, William (1967) Dada, Surrealism, and Their Heritage. New York: The Museum of Modern Art; p. 12.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | SINCLAIR, Vanessa (2019) Escansão em psicanálise e arte: outra Via Regia [Trad. L. Barichello]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p. 4, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-04/>.