Conferência | Um apartamento em Urano

[ Un appartement sur Uranus ]

por Paul B. Preciado

Tradução | Camila Quinteiro Kushnir

Revisão (transcrição e tradução) | Paulo Sérgio de Souza Jr.

 

Intervenção realizada em sessão plenária, no dia 17 de novembro de 2019, às 15h45, no âmbito da 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana: “Mulheres na psicanálise”.

 

Boa tarde,

Prezadas senhoras, prezados senhores da Escola de psicanalistas da França,

Senhoras e senhores da Escola da Causa Freudiana,

E não sei se vale a pena que eu também diga “boa tarde” a todos aqueles que não são nem senhoras nem senhores, porque acredito que não haja entre vocês alguém que tenha renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista efetivo depois de ter conseguido fazer o passe e ser aprovado — falo, aqui, de um psicanalista trans ou não binário que tenha sido admitido entre vocês. Se existe, permitam-me enviar a esse mutante, desde já, o mais caloroso dos cumprimentos. [risos e aplausos]

También quiero saludar aqui a todos psicoanalistas hispanohablantes, de América Latina y de España [aplausos]: señoras, señores, y sobre todo otros (aquellos que no son senhoras ni señores)[1]. [risos]

Em 1917, Franz Kafka escreveu “Um relatório para uma Academia”[2]. O narrador do texto é um macaco que, depois de ter aprendido as linguagens humanas, se apresenta perante uma Academia das mais altas autoridades científicas para explicar-lhes o que a evolução humana representou para ele. O macaco, que se chamava Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma expedição de caça organizada pelo circo Hagenbeck; como foi, em seguida, transportado para a Europa; e como foi que, em seguida, ele conseguiu se tornar um homem.

Pedro Vermelho conta como foi que ele aprendeu as linguagens humanas e como foi que, para fazer isso — e para entrar na sociedade da Europa do seu tempo —, ele teve de esquecer a sua vida de macaco e se tornar alcoólatra. Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro Vermelho, é que Kafka não apresenta a sua história de humanização como uma história de libertação, mas sim como uma crítica do humanismo europeu. Uma vez capturado, o macaco diz não ter tido outra opção que não fosse ou morrer numa jaula, ou viver passando para a jaula da subjetividade humana. E é a partir dessa nova jaula da humanidade que ele se dirige à Academia científica.

Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de cientistas, eu me dirijo hoje a vocês, acadêmicos da psicanálise, a partir da minha jaula de homem transexual: o meu corpo marcado pelo discurso médico e jurídico como transexual; caracterizado, na maior parte dos diagnósticos psicanalíticos de vocês, como sujeito de metamorfose impossível — segundo vosso colega Pierre-Henri Castel[3] —; estando, segundo a maior parte das teorias de vocês, para além da neurose; à beira, ou mesmo dentro, da psicose; tendo, segundo vocês, uma incapacidade de resolver corretamente um complexo de Édipo ou havendo sucumbido à inveja do pênis. Eu me dirijo a vocês como um macaco humano de uma nova era.

Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário — a quem nem a medicina, nem o Direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar, nem a possibilidade de produzir um discurso uniforme de conhecimento sobre mim mesmo —; eu aprendi, como Pedro Vermelho, a linguagem do patriarcado colonial: a língua de vocês. Eu estou aqui para me dirigir a vocês.

Talvez vocês digam que estou recorrendo a um conto kafkiano para começar a falar-lhes, mas o colóquio de vocês me parece mais próximo da época do autor de “A metamorfose”[4] que da nossa. Vocês organizam um encontro para falar das “mulheres na psicanálise” em 2019 como se nós ainda estivéssemos em 1917 [burburinho], e como se esse tipo particular de animal — que vocês chamam, de forma condescendente e naturalizada, de “mulher” — ainda não tivesse um reconhecimento pleno enquanto sujeito político; como se ela fosse um anexo ou uma notinha de rodapé, uma criatura estranha e exótica entre as flores[5] [risos], sobre a qual é preciso refletir, de quando em quando [aplausos], num colóquio em mesa-redonda.

Seria preciso, isso sim, organizar um encontro sobre os homens brancos heterossexuais e burgueses na psicanálise. [risos e aplausos]. A maioria dos discursos psicanalíticos gira em torno do poder discursivo e político desse tipo de animal necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano universal, e que é — pelo menos até o momento — o sujeito da enunciação central no discurso das instituições psicanalíticas da modernidade colonial.

Eu não tenho — como vocês podem ver — grande coisa a dizer sobre as “mulheres na psicanálise”, a não ser que eu também sou, como Pedro Vermelho, um fugitivo; que eu também fui, um dia, uma “mulher na psicanálise”; que me designaram o sexo feminino. E, como o macaco mutante, eu também saí dessa jaula apertada. Talvez para entrar em outra jaula; mas, pelo menos dessa vez, com os meus próprios pés. Falo a vocês, hoje, a partir desta jaula — escolhida e redesenhada — de homem trans; do corpo, do gênero não binário: uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens e das mulheres, pois ao menos reconhece o seu estatuto de jaula.

Gostaria de transmitir a vocês hoje pelo menos três ideias — se me permitirem — com a estranha liberdade que falar a partir de uma posição discursiva impossível me outorga. Pois enquanto homem trans, enquanto corpo de gênero não binário, mutante de uma humanidade binária e colonial que vocês representam, dediquei toda a minha vida a estudar os diferentes tipos de jaulas em que os humanos se confinam.

Antes de mais nada, gostaria de dizer que o regime da diferença sexual com o qual a psicanálise trabalha não é nem uma natureza, nem uma ordem simbólica, mas uma epistemologia política do corpo; e que, como tal, ele é histórico e é mutável.

Em segundo lugar, gostaria de lhes informar — caso vocês não saibam — que essa epistemologia binária e hierárquica está em crise desde os anos 1940. Não somente por causa da contestação exercida pelos movimentos políticos de minorias dissidentes, mas também por causa do surgimento de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos que tornam impossível a atribuição sexual binária.

Em terceiro lugar, gostaria de dizer a vocês que, abalada por profundas mudanças, a epistemologia da diferença sexual está em mutação, e vai ceder lugar — provavelmente nos próximos 10 ou 20 anos — a uma nova epistemologia. O movimento transfeminista, queer, de denúncia da violência heteropatriarcal, mas também as novas práticas de filiação, de relação amorosa, de identificação de gênero, de desejo, da sexualidade e da nomeação não são outra coisa que não indícios dessa mutação.

Diante dessa transformação epistemológica em curso será preciso que vocês decidam, senhoras e senhores psicanalistas da França, da América Latina, da Europa, do mundo; será preciso que vocês decidam o que vão fazer, onde vão se colocar, em que jaula querem estar confinados, como vão jogar as suas cartas discursivas e clínicas num processo tão importante como esse.

Peço a vocês mais alguns minutos de atenção, caso ainda consigam escutar um corpo de gênero não binário e conceder a ele um potencial de razão e de verdade.

Antes de mais nada, senhoras e senhores e outros [risos], o regime da diferença sexual que vocês conhecem e consideram como universal — e quase metafísico — sobre o qual se assentam e se articulam todas as teorias psicanalíticas, não é uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. Não passa de uma epistemologia do ser vivo, uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva das suas energias reprodutivas. Trata-se de uma epistemologia histórica que se constrói em relação com uma taxonomia racial, no período de desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na segunda metade do século XIX.

Essa epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma máquina performativa que produz e legitima uma ordem política e econômica específica: o patriarcado heterocolonial. Antes do século XIX, o corpo e a subjetividade feminina não eram reconhecidos como sujeitos políticos. A mulher, as mulheres não existiam — nem anatômica, nem politicamente — como subjetividade soberana antes do século XIX. No regime patriarcal, anterior ao século XIX, só o corpo masculino e a sexualidade masculina eram reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a sexualidade eram subalternos, dependentes e minoritários.

É interessante pensar que a psicanálise freudiana, enquanto teoria e aparelho psíquico… perdão, do aparelho psíquico… e enquanto prática clínica, aparece precisamente no momento em que se cristalizam as noções centrais da epistemologia da diferença sexual: o homem e a mulher definidos como anatomicamente diferentes e complementares pelas suas potências reprodutivas, como figuras potencialmente paterna e materna, respectivamente, na instituição familiar colonial burguesa; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade pensadas como normal ou patológica, respectivamente.

A psicanálise, vista do ângulo da história dos corpos abjetos, da história dos monstros da sexualidade normativa, é a ciência do inconsciente patriarcal e colonial. Peço que, por favor, não tentem negar a complexidade… perdão, a cumplicidade — a complexidade também… as duas, caso queiram —; a complexidade, então, e a cumplicidade da psicanálise com a epistemologia da diferença sexual heteronormativa.

Estou oferecendo a vocês a possibilidade de uma terapia política da instituição de vocês [risos e aplausos seguidos de agradecimento do conferencista], mas esse processo não pode ser feito sem uma análise exaustiva de seus pressupostos. Não os recalquem, não os neguem, não os reprimam, não os desloquem. Não venham me dizer que a diferença sexual não é crucial na explicação da estrutura do aparelho psíquico na psicanálise. Todo o edifício freudiano é pensado a partir da posição da masculinidade patriarcal do corpo masculino heterossexual, compreendido como um corpo com pênis eréctil, penetrante e ejaculatório. É por isso que as “mulheres na psicanálise” — esses animais estranhos entre as flores [risos], com útero reprodutor e clitóris — continuam sendo sempre um problema. É por isso que vocês precisam, em pleno 2019, de uma jornada para falar das “mulheres na psicanálise”. [risos e aplausos]

Não venham me dizer que a instituição psicanalítica não considerou, e não considera ainda hoje, a homossexualidade como um desvio em relação à norma. Caso contrário, como explicar o fato de que até bem pouco tempo atrás não havia psicanalistas podendo se identificar publicamente como homossexuais? Pergunto a vocês: quantos de vocês se definem hoje — bem aqui, nesta Escola da Causa Freudiana —, publicamente, como psicanalista homossexual? [silêncio geral seguido de risos; silêncio seguido de aplausos]

Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos] — de toda forma, estou vendo que, se depender de vocês… [risos] … talvez não tenha, não tenha nenhum… —, o que lhes peço é o reconhecimento de uma posição de enunciação política, num regime de poder heteropatriarcal e colonial. Contrariamente ao que a psicanálise pensa, não acredito que a heterossexualidade seja uma prática sexual ou uma identidade sexual. Penso que é, isso sim, um regime político que reduz a totalidade do corpo humano vivo, e a sua energia psíquica, a um potencial reprodutivo; uma posição de poder discursiva e institucional.

A psicanálise é epistemológica e politicamente… perdão, os psicanalistas… epistemológica e politicamente ainda binários e heterossexuais, até que o contrário seja dito ou denunciado — e tivemos prova disso aqui hoje. Eu não estou pedindo que os psicanalistas homossexuais saiam do armário, ainda que eu ache que isso faria bem para vocês [risos]. São os psicanalistas heterossexuais — logo, vocês (todo este auditório) — os que devem sair, urgentemente, do armário da norma.

A psicanálise freudiana começou a funcionar, no final do século XIX, como uma tecnologia de gestão do aparelho psíquico confinada à epistemologia patriarcal e colonial da diferença sexual. Não há tentativa na psicanálise freudiana de superar essa epistemologia, mas sim de inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas discursivas e terapêuticas que permitam normalizar as posições de “homem” e de “mulher”, e suas identificações sexuais e coloniais dominantes e desviantes.

Nessa epistemologia hegemônica os sujeitos patriarcais coloniais modernos utilizam a maior parte de sua energia psíquica para produzir a sua identidade normativa. Angústia, alucinação, melancolia, depressão, dissociação, opacidade e repetição não são mais que os custos gerados para a manutenção dessa epistemologia normativa. A psicologia não é uma crítica dessa epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária para que o sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos psíquicos enormes da violência indescritível desse regime. Mas essa epistemologia da diferença sexual com a qual a psicanálise freudiana trabalha, e sem criticar, eu lhes digo, entrou em crise depois da Segunda Guerra Mundial. E talvez… não tenho certeza, na verdade… se vocês estão totalmente cientes de que essa epistemologia da diferença sexual com a qual vocês continuam trabalhando está hoje em crise. Está em uma profunda crise desde… — e é esse o caso, efetivamente — desde os anos 40.

A politização das subjetividades dos corpos considerados como abjetos nessa epistemologia, a organização de movimentos de luta pela soberania reprodutiva e política dos corpos das mulheres e pela despatologização da homossexualidade, bem como a invenção de novas técnicas de representação das estruturas bioquímicas do ser vivo vão levar a uma situação sem precedentes depois dos anos 40. Os discursos médicos e psiquiátricos parecem ter cada vez mais dificuldades — depois dos anos 40 do século passado — para enfrentar o surgimento de corpos aos quais não se pode designar, de imediato, “sexo feminino” ou “masculino” no nascimento.

Com as novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas, e a expansão da medicalização do parto, cada vez mais bebês, chamados antigamente de “hermafroditas”, aparecem. Diante desses bebês, a comunidade médico-científica inventou uma nova taxonomia. O psiquiatra infantil John Money[6], trabalhando na Universidade John Hopkins de Nova York, deixa de lado a noção moderna de “sexo” — como realidade anatômica — e inventa a noção de “gênero” para falar da possibilidade de produzir tecnicamente a diferença sexual. As noções de “intersexualidade”, de “transexualidade”, aparecem também entre 1947 e 1960. Pela primeira vez a medicina e a psiquiatria se dão conta, com assombro, da existência de uma multiplicidade de corpos e de posições sexuais para além do binário. Mas, em lugar de mudar a epistemologia, a instituição médica, psiquiátrica, psicológica decide por modificar os corpos, por normalizar a sexualidade, por retificar as identificações.

Gostaria de compartilhar, hoje, com vocês, a hipótese segundo a qual toda a psicanálise lacaniana, que nasce precisamente depois dos anos 40 — a sua releitura de Freud, o seu desvio pela linguística —, já é uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. Penso ser possível dizer que Lacan tenta, como John Money, desnaturalizar a diferença sexual; mas que, como John Money, ele acaba produzindo um metassistema que é quase mais rígido que a noção moderna de “sexo” e de “diferença anatômica”.

No caso de John Money esse metassistema introduz a gramática do gênero, pensada como construção social e endocrinológica. Em Lacan, esse metassistema — e vocês sabem disso muito melhor que eu — também não é anatômico, mas sim aquele do inconsciente estruturado como uma linguagem. Porém, como no caso de John Money, trata-se de um sistema de diferenças que não escapa — infelizmente — do binarismo sexual e da genealogia patriarcal do sobrenome. A minha hipótese é que Lacan não conseguiu se desfazer do binarismo sexual por causa da sua afeição política pelo patriarcado heterossexual. A sua desnaturalização está conceitualmente em marcha; mas Lacan, ele próprio, não estava pronto.

A partir de 1960, com a comercialização da pílula anticoncepcional; depois, com a despatologização da homossexualidade, a epistemologia da diferença sexual entra num processo de questionamento e de mutação implacável. Hoje sabemos que, a cada 400 bebês, um é identificado como intersexual — não podendo ser reconhecido nos gêneros binários. No decorrer dos últimos 20 anos, as crianças que foram operadas ou tratadas como intersexuais organizaram-se para pedir o fim da mutilação genital e dos processos de redesignação forçada. Ao mesmo tempo, cada vez mais corpos começam a se identificar como não binários. Diferente dos Estados Unidos[7]… mas também na Argentina[8] — como vocês sabem — ou na Austrália[9] se reconhecem hoje em dia gêneros não binários como uma possibilidade política. Tenho também o prazer de anunciar a vocês que poucas semanas atrás a minha amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no registro civil da Califórnia como pessoa de gênero não binário.

As identificações de heterossexualidade e de homossexualidade, pensadas em relação à capacidade reprodutiva de dois corpos de sexo oposto, parecem cada vez mais obsoletas, diante de uma multiplicidade de técnicas de gestão da procriação assistida — não só pílula anticoncepcional ou pílula do dia seguinte, mas também paternidade transexual, PMA[10], gestação sub-rogada[11], exteriorização do útero etc. A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação. Estamos assistindo a um processo de transformação na ordem da anatomia política e sexual comparável àquele que levou a passagem da epistemologia geocêntrica à epistemologia heliocêntrica, copernicana, entre 1510 e 1730.

Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente uma epistemologia capaz de dar conta da multiplicidade radical de seres vivos, que não reduza os corpos a sua força reprodutiva heterossexual, e que não legitime a violência heteropatriarcal e colonial. Quando falo de uma nova epistemologia, estou me referindo a iniciar um processo de ampliação radical do horizonte democrático, para reconhecer como sujeitos políticos todo corpo humano vivo, sem que a designação sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade desse reconhecimento social ou político.

Estamos vivendo um momento — vou transmitir isso a vocês hoje — de uma importância, uma importância histórica, sem precedentes. A violenta epistemologia da diferença sexual — posta em questão pelos movimentos feministas, homossexuais, intersexuais, transexuais (dizemos “queer”) —, e igualmente sacudida pela confrontação com novos dados científicos, está mudando. Esse processo de mudança de paradigma científico e político levará ao reconhecimento, enquanto sujeitos políticos soberanos, de todo um conjunto de corpos que até agora haviam sido marcados como politicamente subalternos.

Nesse contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da Academia da Psicanálise da França e da Escola da Causa Freudiana, vocês têm uma enorme responsabilidade. Vocês é que sabem… e cabe a vocês saber… onde querem se colocar. Se querem permanecer do lado desse discurso patriarcal e colonial — e reafirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução sexual heterossexual —; ou entrar, conosco, os mutantes deste mundo, num processo crítico de invenção de novas epistemologias que permitem a redistribuição da soberania, o reconhecimento de outras formas de subjetividade política. [aplausos]

Vocês não podem — já, já termino… —, vocês não podem recorrer toda santa vez aos textos de Freud e de Lacan como se eles tivessem um valor universal, não situado historicamente; como se esses textos não tivessem sido escritos no interior dessa epistemologia patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e de Lacan a lei é tão absurdo quanto teria sido pedir a Galileu que ele retornasse aos textos de Ptolomeu ou a Einstein que continuasse pensando com a física de Aristóteles.

Hoje os corpos antigamente excluídos do regime da diferença sexual falam e produzem um saber sobre eles mesmos. Os movimentos transfeministas, me too, ni una a menos operam uma transformação crucial. Vocês já não podem continuar falando do complexo de Édipo ou do Nome-do-Pai numa sociedade na qual as mulheres são objeto de feminicídios, onde as vítimas da violência patriarcal estão se expressando para denunciar seus pais, seus maridos, seus chefes, seus namorados; onde as mulheres denunciam a política institucionalizada do estupro; ou onde milhares de corpos saem às ruas para denunciar as agressões homofóbicas, e os assassinatos, quase cotidianos, de mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo.

Vocês já não podem continuar afirmando a universalidade da diferença sexual e a estabilidade das identificações heterossexuais e homossexuais numa sociedade onde é legal mudar de sexo, onde é possível se identificar como pessoa de gênero não binário; numa sociedade em que já há milhares de crianças nascidas em famílias não heterossexuais e não binárias. Continuar praticando a psicanálise utilizando a noção de diferença sexual, e com instrumentos críticos como o complexo de Édipo, seria hoje tão aberrante como pretender continuar navegando pelo universo com um mapa geocêntrico ptolemaico, ou negando as mudanças climáticas, ou afirmando que a Terra é plana. [aplausos]

Hoje em dia… — eu sei, já vou terminar bem rapidinho —, hoje, meus amigos psicanalistas, é mais importante escutar os corpos excluídos pelos regimes patriarcais coloniais do que reler Freud e Lacan [burburinho]. Não se refugiem junto aos pais da psicanálise. A obrigação política de vocês [aplausos] é cuidar dos filhos, não legitimar a violência dos pais. Chegou a hora de botar o divã na praça e de coletivizar a palavra, de politizar o inconsciente.

Nós já estamos enfrentando uma nova aliança necropolítica do patriarcado colonial e de novas tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida nenhuma, já estamos confrontados a uma farmacolonização crescente das ditas patologias psiquiátricas, uma mercantilização das indústrias de cuidado.

[alguém chama: “Paul!”]

É, acho que é para eu parar.

[risos, aplausos]

Uma última coisa: eu penso que a tarefa que nos resta por fazer é começar um processo de despatriarcalização, deseterossexualização e descolonização da psicanálise [aplausos] (…) uma psicanálise mutante à altura dessa mutação de paradigma. Talvez somente este processo de transformação — por mais terrível e desmantelador que lhes possa parecer — mereça hoje, de novo, ser chamado de “psicanálise”.

[aplausos]


* Paul B. Preciado é… Paul B. Preciado.


** Camila Quinteiro Kushnir possui graduação em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e mestrado em teoria psicanalítica pela mesma instituição. Tendo realizado especialização em clínica psicanalítica e saúde mental (IPUB/UFRJ), é membro da sociedade psicanalítica Apertura para Otro Lacan – APOLa (Buenos Aires) e atua como psicóloga clínica em Centro de Atenção Psicossocial na cidade do Rio de Janeiro.


*** Paulo Sérgio de Souza Jr. é psicanalista, linguista e tradutor. Com pós-doutoramento pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, é doutor e bacharel em linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Responsável pela tradução de diversos autores do campo da psicanálise, idealizou e traduz os textos da plataforma digital Escritos Avulsos (www.escritosavulsos.com), que publica traduções, inéditas em português, de obras de Jacques Lacan.



[1] “Também quero cumprimentar aqui todos os psicanalistas falantes de espanhol, da América Latina e da Espanha. Senhoras, senhores e, sobretudo, outros — aqueles que não são senhores nem senhores”. (N. do R., como todas as notas inseridas neste texto)

[2] KAFKA, Franz (1917) “Um relatório para uma Academia”. In: Um médico rural, 3ª ed. Trad. M. Carone. São Paulo: Brasiliense, 1994; pp. 57-67.

[3] Referência ao livro do parisiense Pierre-Henri Castel (1963-) intitulado “A metamorfose impensável: ensaio sobre o transexualismo e a identidade pessoal”. O autor, filósofo e historiador das ciências, é membro da Associação Lacaniana Internacional – ALI, e exerce a psicanálise em Paris. Cf. CASTEL, Pierre-Henri (2003) La métamorphose impensable: Essai sur le transsexualisme et l’identité personnelle. Paris: Gallimard, 2003.

[4] KAFKA, Franz (1915) A metamorfose. Trad. M. Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[5] Referência à imagem que consta no material de divulgação do evento. Cf. <www.femmesenpsychanalyse.com>.

[6] John William Money (1921-2006) foi um psicólogo e sexólogo neozelandês que emigrou para os Estados Unidos em 1947. Os estudos que realizou na década de 1950 foram os primeiros a oferecer subsídio científico para a hipótese de que a diferença entre homens e mulheres é uma construção social, e não algo biológico.

[7] Embora os Estados Unidos, como federação, não reconheçam os gêneros não binários, alguns de seus estados o fazem. Oregon foi o primeiro (“Huge validation: Oregon becomes first state to allow official third gender option”. Disponível em: <www.theguardian.com/us-news/2017/jun/15/oregon-third-gender-option-identity-law>), seguido por outros — como Washington, Califórnia, Nova Jersey, dentre outros.

[8] “Argentina emite por primera vez identificación sin especificar género”. Disponível em: <https://cnnespanol.cnn.com/2018/11/06/argentina-emite-por-primera-vez-identificacion-sin-especificar-genero/>.

[9] “Australia is first to recognise ‘non-specified’ gender”. Disponível em: <www.pinknews.co.uk/2010/03/11/australia-is-first-to-recognise-non-specified-gender/>

[10] Procriação (ou Reprodução) Medicamente Assistida.

[11] Conhecida vulgarmente como “barriga de aluguel”.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | PRECIADO, Paul B. (2019) Um apartamento em Urano (Conferência) [Trad. C. Q. Kushiner & P. S. Souza Jr.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p. 12, 2019. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-12/>.