Parentalidade e filiação: os lutos necessários

 por Talita Arruda Tavares

Tornar-se mãe e tornar-se pai não são tarefas fáceis, e os principais desafios não poderão ser “atenuados” por manuais sobre como ser mãe e como ser pai. O ideal de parentalidade – como todo ideal – vem acompanhado de muitas fantasias, expectativas e imperativos, que oferecem pouco ou nenhum espaço para a elaboração de um luto necessário na construção da parentalidade. Mas por que falar de luto quando não estamos falando de morte e, sim, de nascimento de um bebê?

Se, por um lado, as expectativas em torno do filho ou filha que virá, bem como as expectativas relacionadas à parentalidade, são fundamentais por garantirem um lugar para o bebê que está a caminho, por outro faz-se necessária disponibilidade emocional para se vivenciar o luto que o processo de parentalidade necessariamente implica (já que o bebê nascido não será o bebê idealizado). Tudo isso faz parte da chegada do bebê na família, e o puerpério que normalmente a mãe vive (e o pai também, ainda que menos explicitamente), é a primeira etapa desse processo de luto parental.

Gostaria de focar aqui o luto relacionado ao filho sonhado, que nunca será como o filho que nasceu. Se esse luto não pode entrar em cena na relação com os filhos, há grandes chances de essa criança (tomando o caminho da neurose, e não da psicose, de que não vou falar neste texto) se tornar um adulto frustrado, com a sensação de fracasso e sentimento de culpa. Esse ensaio tem por objetivo trazer duas vinhetas clínicas que ilustram situações distintas onde esse luto parental não pôde ser realizado de forma suficiente e suas implicações para a vida subjetiva dos filhos, agora adultos.

O que a clínica tem a nos dizer sobre isso?

Felipe tem 36 anos e trabalha na empresa dos pais há 10 anos. Entrou na empresa com o compromisso e promessa de fazê-la crescer, meta que rapidamente foi conquistada. Ele se sente extremamente responsável pelos pais e as duas irmãs, mesmo elas já tendo formado as próprias famílias e se estabelecido profissionalmente. Felipe sente que o futuro da empresa depende dele, assim como a velhice confortável dos pais. Vive um conflito constante por querer se arriscar em uma trajetória profissional autônoma e, ao mesmo tempo, tem medo de descobrir que, na verdade, não tem competência para trabalhar em outros lugares.

Eduarda tem 20 anos e está no mesmo curso universitário que o pai cursou. Não sabe se é a carreira que quer, mas parece indiferente a isso. Apesar de tirar boas notas, ela acha que não aproveita as aulas, não se interessa pelos textos ou discussões. Ela se sente viva aos fins de semana, quando está com os amigos e passa a maior parte do tempo embriagada, transando com várias pessoas, nas baladas, dirigindo em alta velocidade. Não tem controle de quanto dinheiro gasta, usando o cartão de crédito dos pais sem limite. Nesses momentos consegue viver intensamente, o que contrasta com sua semana, que passa contando os dias que faltam até a sexta-feira. Sente que não corresponde àquilo que seus pais esperariam dela, vive culpada, sem conseguir sair desse ciclo por onde gira sua vida.      

Não é raro que pessoas procurem análise por se sentirem fracassadas na vida, impotentes diante dos desafios e certas de que não são capazes de ir atrás de seus sonhos. Em geral, essas queixas vêm acompanhadas de um grande sentimento de culpa que, muitas vezes, durante o processo de análise se descobre estar relacionado ao sentimento de que não correspondem às expectativas dos pais, sejam elas quais forem.

O convite que faço agora é que possamos seguir a discussão abordando alguns caminhos possíveis para a construção da parentalidade e o que isso pode ter a ver com o sentimento de impotência do filho ou filha diante da vida.

Sua majestade, o bebê!

Um belo dia e o casal está grávido! Chegou a hora de se tornarem mãe e pai. Finalmente chegou o momento de colocar em prática tudo aquilo que sempre se pensou em fazer diferente dos pais, quando viessem a ter o próprio filho. Tempos de idealização do que será a maternidade, a paternidade, a parentalidade. Tempos de sonhar com o filho ou a filha que está por vir. Sua majestade, o bebê, como diria Freud, está a caminho.

Sabemos da importância do investimento narcísico dos pais que estão à espera de um bebê. Imaginar como será a vida desta criança, qual profissão irá seguir, se será mais teimoso e seguro como o pai, ou se será mais tranquilo como a mãe, se vai puxar mais o nariz do pai ou os olhos da mãe, todas essas especulações antecipam um lugar na família para o filho ou a filha que está chegando.

O bebê depende da idealização de seus pais para começar a existir enquanto sujeito. E, se o parto e o puerpério passam mais ou menos a salvo de grandes intercorrências, no geral, o bebê consegue sustentar suficientemente bem a ilusão narcísica dos pais de ser o bebê sonhado. Digo suficientemente bem, já que, mesmo que tudo vá bem, o bebê real nunca corresponderá exatamente ao bebê sonhado. No entanto, ele precisa ainda sustentar a ilusão de completude narcísica dos pais, pois sua constituição subjetiva depende disso. Com todo o seu desamparo originário, o bebê precisa de alguém que saiba sobre ele, que interprete seus choros e desconfortos como comunicações, atendendo às suas necessidades. Se muito precocemente os pais estão destituídos do lugar de onipotência frente a seu filho, se não se sentem autorizados a interpretar os gritos do bebê como uma comunicação, paralisados e confundidos com o grande desamparo que acompanha o pequeno ao mundo, a constituição subjetiva do bebê está em risco.

Desta forma, percebemos que o início do processo de construção da parentalidade necessita de um tempo de ilusão de onipotência, não só para o bebê, como diria Winnicott, mas também para os pais!

Se tudo correr mais ou menos bem, sem grandes traumas nesses primeiros tempos, aos poucos a criança poderá ir se separando emocionalmente dos pais, marcando uma diferença importante em relação ao narcisismo parental, já que sobre o filho real, os pais nada sabem.

Neste sentido, podemos pensar que a construção da parentalidade acontece em dois tempos fundamentais que não param de se alternar ao longo da vida dos filhos. Um tempo seria aquele em que os pais reconhecem o filho como seu, já que o filho sonhado equivale ao filho real. E um outro tempo seria aquele em que os pais conhecem seu filho real, já que ele existe para além do que sabiam e reconheciam.

Assim, se tornar mãe e se tornar pai exige um árduo trabalho de construção que não pode se dar sem a elaboração de um luto – luto pelo filho sonhado que não nasceu e que nunca nascerá. Mas quais seriam as condições facilitadoras para que esse luto dos pais possa acontecer de forma menos traumática para todos os envolvidos?

A parentalidade não dá conta, ou não deveria dar conta, de suprir tudo o que se refere ao desejo humano. Mesmo que a escolha de uma mãe ou de um pai seja abrir mão da carreira profissional para se dedicar exclusivamente aos cuidados com os filhos, ainda assim pode existir espaço para outros interesses para além das crianças: uma paixão pelo futebol, gosto por artesanato, plantas, culinária, encontros com amigos, desejo sexual pelo companheiro ou companheira, qualquer desejo que não possa ser satisfeito na relação com os filhos.

O interesse dos pais por outros assuntos que não o próprio filho ou filha permite que a criança perceba que ela não é tudo na vida dos pais – ufa, ainda bem! Se dar conta de que a felicidade e satisfação para os pais não depende só da criança é um grande alívio para ela – afinal, a vida dos pais não circunscrita à parentalidade torna possível que a vida do filho exista para além da expectativa dos pais. E será a partir desse desencontro estrutural que uma abertura intersubjetiva se estabelecerá, liberando os filhos da responsabilidade de garantir o bem-estar dos pais e autorizando-os a desejar outras coisas do lado de fora de casa.

O bebê das sombras.

Até aqui falamos sobre a construção da parentalidade nas melhores condições possíveis. No entanto, sabemos que não é sempre assim e que há ocasiões em que, por motivos diversos, o filho esperado está mais para um filho das sombras do que para a “majestade, o bebê”. Neste caso, também se trata de um filho idealizado, mas, diferentemente do primeiro, esta idealização tem mais a ver com um filho de pesadelo do que um filho dos sonhos, as expectativas parentais estão mais para pequenos votos de morte do que de vida.

Essas situações podem ser mais frequentes quando bebês vêm logo após um evento traumático, sem que haja tempo (concreto ou simbólico) para a elaboração do luto dos pais – como, por exemplo, em casos de perda gestacional anterior, morte de um filho ou de um ente querido. Outras situações que também podem gerar expectativas negativas em relação ao bebê que está a caminho são uma gravidez indesejada, alguma deficiência ou anormalidade orgânica, ou quando o sexo do bebê não corresponde àquele que era esperado.

É claro que nenhuma dessas situações é via de regra para expectativas negativas em relação ao filho que virá; muitas vezes a construção da parentalidade de um bebê que chega num contexto não ideal pode se sair muito bem, obrigado! Mas, e nos casos em que este cenário negativo de expectativas “rouba a coroa” de majestade do bebê? O que podemos esperar em relação à sua constituição subjetiva?

Ricardo Rodulfo (1990), psicanalista argentino, nos ajuda a pensar nas condições intersubjetivas que antecedem um bebê no mundo, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis. Rodulfo traz o conceito de mito familiar, definido por ele como tudo aquilo que antecede e atravessa os sujeitos de uma determinada família: suas origens e histórias em torno da qual a família se organiza e se reconhece. Segundo ele, para que uma criança tenha um lugar subjetivo em sua família, ela precisa estar inserida no mito familiar, ou seja, sua “sobrevivência psíquica” depende de um trabalho ativo da criança de recolher e receber significantes familiares, como se fossem materiais para seu processo de “construção” subjetiva.

Neste sentido, as expectativas negativas em relação ao bebê que vai nascer, assim como as expectativas positivas, se apresentam como significantes familiares disponíveis para aquela criança. Neste sentido, a criança que encontra à sua disposição significantes negativos precisará fazer uso destes para garantir algum lugar de subjetivação na sua família. Assim, em certa medida, o bebê real se identifica com o bebê das sombras idealizado pelos pais, já que é o lugar possível para ele inicialmente. Desta forma, percebemos que o bebê das sombras também é o bebê do narcisismo parental, já que sua constituição subjetiva depende de alguém que saiba sobre ele, alguém que possa antecipar significantes que o definem enquanto sujeito.

No entanto, à medida que a criança e, depois, o adolescente, podem ir se separando emocionalmente dos pais, eles também poderão reavaliar a pertinência dos significantes familiares que outrora serviram para sua subjetivação. A independência emocional conquistada em relação aos pais permite que certos significantes sejam descartados, outros ressignificados, abandonados e, ainda, que se possam construir novos significantes para si mesmo. Na verdade, esse processo de desconstrução e de reconstrução dos significantes que nos definem enquanto sujeitos não cessa de acontecer, enquanto houver vida, perguntas e desejo. É também este o trabalho de uma análise.

Retomando as vinhetas e concluindo…

Felipe foi recebido pelos pais como sua majestade, o bebê! E, ao mesmo tempo em que sustentava essas altas expectativas, tentava se libertar delas: se metia em encrencas, aprontava muito na escola, mas a culpa era sempre dos outros – os pais garantiriam essa versão dos fatos. Felipe nunca perdia seu lugar de majestade junto aos pais, até um momento em que, por razões diversas, isto ficou insustentável… Episódios de síndrome do pânico, aliados a um episódio de surto. É logo após essa crise que começa a trabalhar na empresa dos pais, talvez precisando restabelecer suas bases identitárias estremecidas, para si próprio e junto aos pais.

Dez anos depois da crise de pânico, procura a análise, pois acreditava que uma nova crise estava se aproximando e sentia que não tinha cuidado daquilo que fez com que ela surgisse da primeira vez. Mais fortalecido emocionalmente, Felipe buscava alguma mudança, mas não sabia o que e nem em que direção. Sabia que precisava cuidar da idealização que fazia de seus planos profissionais e pessoais. Conquistava as metas que estipulava para si a cada cinco anos, mas isso não trazia a felicidade que ele imaginava que sentiria. Esta apatia emocional, aliada à sensação de que não era competente o bastante, traziam um sentimento de culpa e fracasso significativos para sua vida.

Eduarda foi recebida por uma mãe que desejava muito ter uma menina delicada, feminina, bailarina. Eduarda diz que a mãe sonhava em ter uma boneca e, com muito pesar, reconhecia que isso ela não era…, e não era desde bebê, pois soube que deu muito trabalho para a mãe desde seus primeiros meses, pois vomitava todo leite que mamava, e bonecas não vomitam.

Apesar do significante “boneca” ser associado por Eduarda à delicadeza, ao feminino, ao comportado, características que, diga-se de passagem, não definiam Eduarda, o significante “boneca” também se refere a uma dimensão inconsciente de algo estático, sem desejo, sem vida, e essa imagem descreve bem Eduarda quando ela chegou para análise. Ao longo do processo, Eduarda se dá conta de que sua mãe é deprimida, não consegue se satisfazer com nada, não se anima com nada, não deseja nada. Ela percebe que sua mãe nunca se mostrou satisfeita com nada que acontecia ao seu redor. Não era responsabilidade dela a insatisfação da mãe. No entanto, era sua a responsabilidade de sair do papel de “boneca” da sua própria vida.

A construção de uma vida subjetiva menos permeada por idealizações, sentimento de culpa e frustração implica um trabalho de luto para Felipe e Eduarda, elaboração de um luto por aquilo que eles nunca serão para os pais. Nunca serão os filhos idealizados que eles também gostariam de ser. Falávamos no início sobre o luto necessário dos pais em relação aos filhos e, aqui, também chegamos à importância do luto dos filhos em relação ao que eles não poderão ser para os pais.

A partir do momento em que se abre mão do impossível de ser o filho do narcisismo parental, seja dos sonhos, seja das sombras, se ganha a liberdade subjetiva para se constituir enquanto um outro diferente, podendo se apropriar dos próprios desejos e de sua identidade.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução, in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006 (1914);

IACONELLI, V. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. São Paulo: Annablume, 2015;

RODULFO, R. O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

WINNICOTT, D. Objetos e fenômenos transicionais, in: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.


* Talita Arruda Tavares é psicóloga e mestra pelo IPUSP, psicanalista pelo Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae e pós graduada em Psicopatologia Perinatal e Parental pelo Instituto Gerar. Autora do livro “O brincar na clínica psicanalítica de crianças com autismo” (Ed. Blucher, 2019).




COMO CITAR ESTE ARTIGO | ARRUDA TAVARES, Talita (2020) Parentalidade e filiação: os lutos necessários. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -9, p. 5, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/07/01/n-9-05/>.