[ Zur Aetiologie der konträren Sexualempfindung ]
por Isidor Sadger
Apresentação | Patricia Porchat
Tradução e notas | Flávia Ripoli Martins & Caio Padovan
Apresentação
Como receber e ler, com o intervalo de mais de um século, um artigo sobre a etiologia de determinadas formas de amar e de praticar sexo, que foram historicamente estigmatizadas como perversões e patologias sexuais? Sem dúvida com olhos diferentes daqueles que se deleitam com textos de Judith Butler e de Paul B. Preciado, ou que renovam a leitura da psicanálise a partir da obra de Foucault e de Deleuze, entre outros. Este artigo, somado às notas dos tradutores, traz à cena as investigações médico-científicas da virada do século XIX ao século XX, arejadas pelo advento da psicanálise e seus primeiros desdobramentos. Mas de lá para cá muita coisa mudou em termos de amor e de sexo entre homens. A começar, pelo próprio questionamento do que é um homem e, consequentemente, do que é uma mulher. Soma-se a isso as operações de desconstrução, desnaturalização, historicização de conceitos e desvelamentos de ideologias, protagonizadas pelas teorias feministas, estudos gays e lésbicos, teorias de gênero, teoria queer, estudos transgêneros e estudos decoloniais. Provocada por esses movimentos, a psicanálise vem produzindo respostas para uma sociedade em transformação e relendo a sua própria história enquanto teoria, prática e agrupamento institucional que produziu reveses no que diz respeito à diversidade humana.
Entre as mudanças operadas, destacamos o desdobramento do sexo em sexo e gênero, a valorização da autoidentificação e a expertise das pessoas transgênero acerca de suas vidas, a politização das identidades autoatribuídas. Além disso, vimos o saber psicanalítico confrontar o saber médico e apontar para o desejo do sujeito; vimos o surgimento do saber militante, resultando numa aproximação, entre psicanálise e política. Por último, o “doente do amor e do sexo” se tornou apenas analisando e, eventualmente, militante.
Este artigo merece ser lido por seu valor histórico num sentido amplo. Aqui encontramos uma parte da história das teorias acerca das homossexualidades, a história do saber-poder médico-psicanalítico acerca das práticas sexuais dissidentes, a história do modus operandi de Sadger enquanto psicanalista de seu tempo, fazendo uso de uma metodologia investigativa centrada na teoria da libido e do complexo de Édipo; ainda, encontramos a história dos efeitos teórico-clínicos das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena sobre seus membros e, principalmente, a história de conceitos psicanalíticos em pleno desenvolvimento. Alguns desses conceitos se tornaram cruciais para o trabalho ad infintum acerca do enigma do sexual: o recalque, a sexualidade infantil, as fantasias, a bissexualidade e o narcisismo. ♦
“Sobre a etiologia da sensibilidade sexual contrária”, originalmente: Sadger, I. (1909) “Zur Aetiologie der konträren Sexualempfindung”, Medizinische Klinik, 5(2), pp. 53-56.
A sensibilidade sexual contrária[1] esteve sempre no centro de toda a Psychopathia sexualis[2] e as histórias clínicas de inúmeros uranianos [Urninge][3], em geral redigidas a partir de suas autobiografias, ocupam os escritos de todos os nossos patologistas do sexual. A mim me parece, no entanto, que o apreço por essas autodescrições foi até agora em muito exagerado. A partir delas, tomamos conhecimento de apenas uma coisa com a devida clareza, a saber: como o doente quer ser visto pelo médico e não como ele de fato é na realidade; não como ele chegou à sua perversão, mas sim o que ele disse sobre ela, independente dele ter ou não agido de boa-fé; não porque, por exemplo, acabou se afastando das mulheres ou cometendo todas as suas perversidades, mas tão somente suas fantasias posteriores a este respeito. Cabe lembrar que, ao menos inconscientemente – mas muitas vezes também de forma consciente – todo mundo mente a respeito de assunto sexuais, em particular quando os temas abordados parecem muito obscenos ou chocantes ou quando acabam ferindo demasiadamente a vaidade daquele que os aborda. E mesmo que o paciente seja absolutamente honesto, ele não poderá nos oferecer a verdade pelo simples fato dele não a conhecer. As experiências e as fantasias que foram determinantes e que inicialmente levaram à inversão tornaram-se completamente inconscientes para ele, como pode ser demonstrado em cada caso individual por meio do método psicanalítico. Nesse sentido, acredito que a Psychopathia sexualis só tem a ganhar ao comparar os seus resultados com aqueles alcançados pelo método psicanalítico[4].
A partir de uma série de análises, pretendo fazer uma síntese dos resultados e enfim explicá-los usando uma fórmula geral [Paradigma]. Começo com alguns princípios que também se aplicam à histeria e à neurose obsessiva[5]. Ora, tal como ocorre no caso das afecções orgânicas, todas as conjecturas etiológicas feitas até agora visam localizar uma causa única. Mas a experiência psicanalítica nos ensina que se trata aqui, invariavelmente, de um encontro de várias condições etiológicas diferentes, não apenas de um único elemento, assim como, em grande medida, do fator quantitativo do qual inicialmente depende a sua resultante[6]. Os mesmos elementos podem ser também encontrados em pessoas normais e, de fato, as condições [Bedingung] para a ocorrência de uma série de perversões sexuais podem ser observadas com muito mais frequência do que a própria perversão. Mas se uma certa quantidade for excedida, então, o paciente terminará simplesmente se inclinando para um dos lados. Vale notar que, por mais superficiais que possam parecer os pressupostos etiológicos elaborados até agora, há por trás de todos eles uma ponta de verdade, mas raramente mais do que isso. A respeito da sensibilidade sexual contrária, podemos agora afirmar, por exemplo, como algo de bem estabelecido, que todos os seres humanos são bissexuais por natureza[7]. Encontramos raízes homossexuais [homosexuelle Wurzeln] não apenas em todas as psiconeuroses, mas também entre as pessoas normais, que nunca abandonaram completamente a inclinação para o próprio sexo. Acontece que estas inclinações não se manifestam no período de plena maturidade, mas antes na velhice e na infância, prolongando-se até a puberdade. Alguns consideram que a perversão é exclusivamente inata, outros afirmam com a mesma firmeza que ela é inteiramente adquirida[8]. Ora, como será demostrado adiante, ambas as afirmações estão corretas e são, de alguma forma, verdadeiras, provavelmente em todos os casos; o mesmo é válido para outras afirmações, de que apenas homens libertinos que enjoaram das mulheres acabam se voltando para os homens ou, simplesmente, de que o amor frustrado seria a força motriz [Triebfeder] da homossexualidade; ou ainda de que a sedução é a principal culpada ou, enfim, de que seria o fato de conviver unicamente com pessoas do mesmo sexo na ausência do outro sexo. Tudo isso é de alguma forma verdadeiro, mas não como em geral é colocado, quer dizer, de maneira exclusiva. São realmente libertinos vividos, homens que se cansaram das mulheres, pessoas que foram frustradas em seu amor pelo sexo oposto. Acontece que isso não toca diretamente as pessoas mais maduras, mas antes às crianças, que são também menos libertinas no ato do que na fantasia e, no final das contas, o amor realmente frustrado desempenha um papel enorme não apenas para pessoa adulta, mas sobretudo no caso das crianças pequenas durante a primeira infância[9]. Isso é especialmente verdadeiro no caso da sedução, assim como da convivência e da interação quase exclusiva com pessoas do mesmo sexo. Contudo, como mencionei acima, estes não são mais do que fatores individuais consideravelmente superestimados quando tomados de maneira isolada.
Exemplos ilustram melhor do que palavras. Seguindo esse princípio, pretendo esclarecer tudo o que foi dito até agora através do caso[10] de um masoquista homossexual [homosexuellen Masochisten], que acabou também apresentando uma série de perversidades sexuais, assim como um bom número de sintomas histéricos e obsessivos. O então estudante de 21 anos, tomado pelo fardo familiar[11], me foi encaminhado por estar atormentado por suas inclinações homossexuais – que se dirigiam principalmente a jovens entre 14 e 20 anos de idade – e por todo tipo de anseios masoquistas. Ele me assegurou que essas inclinações estavam relacionadas ao fato de que, além de seus pais, ele manteve um contato quase exclusivo com meninos durante a infância e a adolescência. Até aquele momento, ele havia tentado a sorte apenas três vezes com uma mulher (uma prostituta), mas sempre se mostrou completamente impotente, de modo que, a cada vez, fazia a prostituta representar uma cena masoquista para obter algum prazer. Mesmo assim, havia apenas uma ereção, mas nunca a ejaculação, “presumivelmente porque uma mulher havia praticado o ato e não um homem”. Quando questionado se chegou a sentir alguma inclinação pelo sexo oposto, lembrou-se apenas de uma ocasião, durante o segundo ou terceiro ano de vida, quando abriu o portão do jardim de maneira particularmente galante para uma menina da mesma idade. Parecia, portanto, se tratar de um caso puro de inversão sexual com traços masoquistas.
Após 6 meses de psicanálise com esse paciente particularmente inteligente, acabamos, no entanto, alcançando resultados significativamente diferentes. Em primeiro lugar, o fato dele ter sentido atração por mulheres apenas uma vez durante a primeira infância se revelou completamente falso. Na realidade, de acordo com seu próprio relato, uma série descontínua de relações, tanto com homens quanto com mulheres, havia povoado sua vida sexual. Além disso, notamos ao longo de sua história a existência de inclinações para ambos os sexos, tal como podemos observar em pessoas perfeitamente normais, cujas inclinações temos todo o direito de aproximar da paixão sexual, na medida em que, durante a puberdade, passarão a determinar de maneira clara as suas posteriores escolhas objetais. Como ocorre em todos esses casos, a primeira pessoa que ele amou foi a própria mãe, de quem mais tarde ele se afastaria, após ter tido com ela todo tipo de fantasia de coito [Koitusphantasien] durante a puberdade. Com 2 anos, ele se sentiu fortemente atraído por uma babá mais velha, a quem imediatamente pediu em casamento, e com quem fantasiou o coito em sonhos repetidos durante a puberdade. Um pouco mais tarde, se seguiu o tal galanteio com a menina da mesma idade, que foi tão evidente que sua mãe chegou a provocá-lo, deixando-o extremamente envergonhado e zangado. Naqueles primeiros anos de vida, teria ainda se apaixonado por uma empregada, que retornaria de forma inequívoca em paixões posteriores. Desde o primeiro ano, ele conviveu durante as férias de verão com dois primos cerca de dez anos mais velhos, por quem logo se apaixonaria intensamente, embora eles o espancassem de maneira sistemática e o amarrassem por diversão. Esses dois priminhos, que o acompanharam durante toda a infância, foram decisivos para o desenvolvimento das suas posteriores tendências masoquistas e homossexuais, juntamente de um barão muito violento de 9 anos, por quem o menino de dois anos manifestaria um amor ardente. No seu quarto ano de vida, aconteceu dele se inclinar por um garotinho da mesma idade que o ensinou a puxar o prepúcio para cima e para baixo, depois pelo pai e, logo em seguida, pela irmã. Na sequência, com 6 ou 7 anos, houve uma paixão por um preceptor [Hauslehrer] a quem dirigiu várias fantasias sádicas. Com 7 ou 8 anos, ocorreram paixões heterossexuais por 3 ou 4 meninas da escola, todas elas encarnando um tipo de jovem que despertaria seu interesse anos mais tarde. Com 10 anos, sobreveio uma renovada paixão homossexual por um colega da escola primária. Nos primeiros anos do ensino médio, suas fantasias masoquistas se desenvolveram cada vez mais, principalmente as de estar amarrado – permanecendo, no entanto, indeterminado por um longo tempo se seria por um homem ou por uma mulher – assim como seu fetichismo por luvas. O fato dele ser invertido não lhe veio à consciência senão aos 15 anos.
Não se deve supor que cada um dos elementos elencados por nós na passagem acima estava consciente ou mesmo acessível para o paciente desde o início, tendo sido por ele enumerados de forma absolutamente ordenada. Em vez disso, a recordação do paciente a respeito destes acontecimentos foi se dando de maneira gradual, no decorrer da análise, após semanas e meses de trabalho. Sim, a compilação completa e exaustiva só foi alcançada após cerca de seis meses de pesquisa conjunta[12].
Mas o que aprendemos com aquilo que foi dito até agora? Primeiramente, o quão pouco as pessoas, até mesmo as mais inteligentes, conhecem a respeito de si mesmas e o quão cuidadosamente devemos receber até as mais sinceras informações por elas transmitidas. Em segundo lugar, que mesmo nos casos aparentemente puros de inversão, elementos próprios à sexualidade normal nunca estão ausentes, podendo inclusive existir em grande número sem que o paciente esteja completamente ciente deles. Em terceiro lugar, que as diferentes perversidades, tal como os sintomas histéricos e obsessivos, são determinadas na primeira infância, até o quarto ano de vida. Gostaria ainda de já adiantar que a forma específica das perversidades, com suas diferentes nuances, corresponde muito bem às experiências e fantasias individuais, muitas vezes com contaminação [Kontamination][13], isto é, com o agrupamento de fortes desejos em uma única ação ou de diferentes pessoas no objeto de suas respectivas inclinações.
Quando perguntei ao paciente o que ele realmente queria de um homem, ele me respondeu: primeiro apanhar e depois ser penetrado no ânus. Seu ideal sexual inclui apenas homens jovens, desde que não tenham barba. E se ele enfim encontrasse um, no futuro ele o excitaria muito pouco[14]. Os representantes confessos desse ideal teriam sido seus primos cerca de 10 anos mais velhos, que com tanta frequência o espancavam, assim como o tal barão violento; em todos os casos, homens que expressam um sorriso hostil e gozador. “Eu gosto de dois tipos de jovens”, revela o paciente, “rapazes briguentos, fortes e violentos – modelos do barão e, em parte, também dos dois primos, na verdade esses dois primos em primeiro lugar – e um tipo terno e dócil, onde o barão se encaixa melhor, apesar de toda a sua agitação – assim como várias mulheres. Dentre os homens mais velhos, eu amava apenas meu pai que, também um pouco homossexual, conquistou meu coração na infância graças a sua enorme ternura, ao contrário da minha mãe que era excessivamente severa[15]. Sei que quando criança ele cantava canções para mim e me beijava com mais frequência do que se espera de um pai. Quando minha mãe passou algumas semanas com sua irmã, que acabou falecendo na época – eu tinha 4 anos – dormi com ele na cama por um bom tempo, o que posteriormente se associou a uma série de fantasias e sonhos homossexuais”. Eis então que o próprio paciente chamou minha atenção para algo que a análise provou estar correto. Inicialmente, ele tinha preferência por certos meninos, uma predileção que ocultava o amor que ele sentia pela própria irmã, que aliás tinha algo de menino, em particular seus traços faciais. Isso pôde ainda ser reconhecido de forma regular e constante na transferência, por meio de sinais característicos, revelando que por trás das figuras de jovens amados surgiam sempre figuras femininas de sua infância como, por exemplo, a empregada doméstica, uma priminha invertida anfígena[16] ou uma das colegas por quem ele se apaixonou quando tinha 7 ou 8 anos.
Há mais uma coisa a ser explicada: a peculiaridade da fantasia sexual de praticar apenas o coito anal, que ele também deriva de suas impressões infantis. Durante a infância, em razão de uma constipação crônica, ele teve que ser frequentemente clistado [klistiert][17] por sua mãe. Ele era uma daquelas crianças que retêm as fezes para não perder o conhecido ganho de prazer da defecação. Em poucas palavras: ele é uma pessoa erótico-anal[18]. Se considerarmos que sua mãe tinha em si mesma algo de masculino e que, tal como os dois priminhos, ela batia nele com frequência, é possível compreender a explicação que ele mesmo dá em sua análise: “Se eu imagino ser espancado por um homem e depois penetrado no ânus, é bem possível que os dois primos simplesmente tenham substituído a mãe. Eu também tinha a sensação de que por trás dessas fantasias estava a mãe com seu comportamento masculino, não apenas os primos”.
Podemos, por conseguinte, extrair daqui dois elementos novos. Em primeiro lugar, essa pederastia [Päderastie][19] nada mais é do que a continuação das pulsões infantis do órgão [Organtrieb] que acabam explorando para os seus próprios fins as frequentes irritações causadas pelo clister [Klistierwerden][20]. Assim, na pederastia, o erotismo anal da pessoa em questão evolui em um sentido particular. Naturalmente, a seringa do clister – ou qualquer outro instrumento de exploração retal – e o membro viril são uma só e mesma coisa do ponto de vista das fantasias sexuais. Em outras análises, pude encontrar com certa regularidade que o pathikus[21] e o pederasta passivo eram homossexuais que sofreram de um reforço [Verstärkung] em termos constitucionais do erotismo anal, razão pela qual eles sempre retinham as fezes na infância e frequentemente eram clistados, preservando, portanto, o desejo de introducio membri in anum[22] nos anos de maturidade. A segunda descoberta, ainda mais importante, diz respeito ao protótipo [Urbilder] do desejo homossexual. Por trás desse desejo não estão apenas os homens, como fora até agora geralmente aceito, mas também as mulheres, especialmente aquelas com características e comportamentos masculinos, cujos exemplos mais correntes são parentes próximas: mãe e irmã. Considerando este achado, que poderá ser corroborado por análises posteriores e que o Professor Freud também pôde confirmar em suas experiências[23], permito-me aqui fazer de maneira categórica a seguinte precisão: não é o homem que o homossexual ama e almeja, mas o homem e a mulher tomados juntos em uma única figura [Gestalt]. É somente porque o elemento heterossexual será posteriormente suprimido [unterdrückt] que surge a aparência de uma inversão pura.
Até agora, quando fatores como o histórico familiar e a hereditariedade entravam em questão, a coisa sempre caminhava em uma mesma direção, de que a homossexualidade deveria ser encontrada na ascendência. Mais importante do que isso, contudo, e que se manifesta de modo particularmente evidente em nosso paciente é: a mistura de traços femininos e masculinos nas pessoas que são próximas dele. Por exemplo, a mãe de nosso paciente tinha várias características masculinas, o pai diversas qualidades femininas e a irmã, que morreu jovem, tinha por sua vez algo que era próprio aos meninos. Talvez se possa supor que as inclinações masculinas de sua mãe a induziam com frequência a se vestir de maneira consequente, e isso já na mais tenra infância do paciente. Em dias chuvosos, quando estava com pressa, a mãe colocava muitas vezes a veste, o sobretudo e até mesmo as botas do seu marido, para resolver alguma coisa fora, no quintal. Disfarces e dissimulações infantis desse tipo encontram apoio onde falta uma singularidade, como por vezes acabou ocorrendo com nosso paciente. Também descobri que as crianças frequentemente alternam o sexo em suas brincadeiras. O mesmo menino e a mesma menina agem como o pai, depois como a mãe, independentemente do sexo [Geschlecht][24] ao qual realmente pertencem. E, ao realizar análises de pessoas aparentemente invertidas, deparamo-nos regularmente com uma mulher amada por trás do homem amado – como em um palimpsesto, que após remoção da camada mais superficial, revela o escrito original com grande clareza. Também a cura de algumas formas de sexualidade contrária [Konträrgeschlechtlichen] se dá de modo que, quando os objetos sexuais femininos primitivos se tornam conscientes, a inclinação originalmente dirigida ao sexo oposto retorna[25]. Esta forma de ver as coisas parece casar-se muito bem com o fato de que, em geral, os homossexuais se sentem atraídos por meninos mais velhos ou por jovens sem barba. Dado a relação sexual direta com estas pessoas, podemos dizer que isso se deve simplesmente ao fato de que a semelhança com a mulher é ainda mais marcante em homens jovens que ainda não desenvolveram barba[26]. É porque eles são particularmente propensos à contaminação [Kontamination][27] por diferentes pessoas de ambos os sexos que os invertidos realmente as desejam.
Dois fatos foram estabelecidos até o momento. Em primeiro lugar, que, ao longo do seu desenvolvimento, os invertidos revelam de maneira regular uma inclinação pelo sexo oposto e que a sensibilidade sexual contrária constitui apenas um estágio posterior. Em segundo lugar, que os invertidos se servem das suas experiências com objetos sexuais femininos para criar um ideal homossexual. Neste sentido, eles continuam amando a mulher no homem, transcrevendo [transskribierten] a posteriori, por assim dizer, o amor pela mulher em um amor pelo homem. Esses dois fatos se complementam[28]. O que o invertido amava e desejava nas mulheres, agora ele ama e deseja nos homens[29].
Mas o que explicaria essa mudança tardia de orientação em relação às mulheres? Em que termos teria havido nestes casos uma repressão? A principal teoria existente a este respeito está baseada no inatismo. Como argumenta Moll: contrariamente ao impulso [Trieb] dirigido ao próprio sexo, a resposta heterossexual nestes casos é fraca ou completamente ausente em termos hereditários[30]. Ora, considerando aquilo que foi trazido mais acima, podemos dizer que esta teoria demonstrou ser, ao menos em parte, falsa. Não é de modo algum correto dizer que, naqueles casos, a sensibilidade para com o sexo oposto é fraca ou completamente ausente do ponto de vista hereditário. Na realidade, é o contrário que se revela verdadeiro, como pretendemos demonstrar de maneira detalhada na sequência.
E o que a psicanálise tem a dizer sobre tais questões? A maioria dos invertidos não se dá conta de sua sensibilidade sexual anormal antes da puberdade, que ocorre no mínimo aos 11 anos e, geralmente, entre os 14 e os 16 anos. Podemos facilmente explicar esse fenômeno lembrando que os anos de puberdade não constituem apenas o momento em que o desejo sexual é despertado, mas também o período em que ocorre a tão importante rejeição sexual [Sexualablehnung][31]. É neste momento que a repressão incide e que as grandes decisões são tomadas. Um jovem que até então parecia amar indistintamente – incluindo possivelmente aí, talvez, mesmo seus colegas da escola – a partir deste momento almejará [begehren] apenas a mulher, enquanto o homem lhe despertará frieza. Será durante esse mesmo período que o homossexual perceberá que sua pulsão genital [Geschlechtstrieb][32] se dirige ao homem e que para ele a mulher é insignificante. Sim, esse último não sente apenas frieza, mas, geralmente, um Horror feminae[33] do ponto de vista sexual, enquanto o homem normal sente apenas indiferença em relação às pessoas do mesmo sexo. Este é um ponto a se considerar. Nas análises de psiconeuroses, esse horror sempre levanta a suspeita de que seu oposto pode estar escondido por detrás dele. Por exemplo, uma histérica que persegue o pai com um ódio fervoroso – muitas vezes totalmente justificado – já o amara no passado com o mesmo fervor, tendo sido enganada por esse amor. Ora, e se por trás de uma acentuada inclinação dirigida ao próprio sexo houver um afastamento em relação ao outro e isso em razão de um amor traído, de uma esperança frustrada ou da queda de um ideal antes admirado? Então talvez se justifique a suposição de que o esgotamento [Uebersättigung] do feminino (apenas na fantasia, é claro) está na base da inversão. Não podemos ainda esquecer que a puberdade é um período especialmente marcado pela intransigência. Para o jovem, a mulher é tomada, sistematicamente, ou como divina [Göttin] ou como vadia [Dirne], isto é, um ideal nobre, adorável, ou um objeto repulsivo.
Mas o que de fato passa pela cabeça de um homossexual durante esse período de sua vida? Para responder essa pergunta, tomemos como exemplo paradigmático nosso paciente masoquista invertido. Em suas palavras, ele se tornou consciente de sua homossexualidade de maneira súbita, aos 15 anos, após ter imaginado uma cena de coito. Buscando ainda outros elementos no discurso do paciente, encontrei o seguinte: “Eu passei o Natal na casa dos meus pais. Minha mãe, a quem eu era tão apegado, estava completamente desfigurada por causa de uma hidropisia[34]. Ela, que era uma pessoa incrivelmente forte, teve que ser operada umas 5 ou 6 vezes. Ela ficou terrivelmente feia, o que acabou gerando em mim uma profunda decepção. Quando voltei para X. (local onde ele estava estudando) no dia de Ano Novo, fantasiei que estava sendo espancado e depois penetrado no ânus. De repente, ficou evidente para mim que eu estava pensando em um homem. Na época, acho que estava apaixonado por um colega que me lembrava a priminha bissexual”[35]. Encontramos aqui algo da correlação afirmada acima: afastamento da mãe desfigurada e aproximação de um homem que, por sua vez (ainda que de forma inconsciente), ocupa claramente o lugar de meninas ou mulheres com traços ou com características masculinos. Mas por que a hidropisia da mãe teria tido um efeito tão poderoso? Seria a simples queda de um ideal suficiente para produzir a inversão? Uma mãe gravemente doente não deveria antes despertar a atenção de seu filho do que afastá-lo permanentemente do sexo feminino? Esta reação desproporcional só pode ser entendida considerando alguns eventos anteriores. Como nosso paciente nos assegura, quando bebê [Säugling] e sobretudo nos primeiros anos de sua infância, ele já possuía um desejo erótico [erotisches Verlangen] por sua mãe. Entre os 3 e os 6 anos de idade, ele tem uma vaga lembrança de ter se tornado mais agressivo, atitude que seria objeto de severa repreensão por parte da mãe. Ele sempre tentou agarrar seu peito, sempre quis deitar-se na cama com ela e, certa vez, fez de tudo para acompanhá-la no banheiro, pois sabia que ela estava nua, sentada na banheira. Portanto, já naquela época, existiam fortes e prematuros impulsos libidinais dirigidos ao sexo oposto. Foi ainda durante esse mesmo período que ocorreu um outro incidente, semelhante àquele da hidropisia. Quando estava grávida de sua irmã, a mãe ficou com um ventre grande e desfigurado. E, chegando a hora do parto, o menino teve que sair de seu quarto, passando a dormir na mesma cama que o pai, o que se tornou fonte de várias fantasias homossexuais.
Mas esse episódio, que se enquadra no quarto ano de vida do paciente, mobilizou ainda uma série de outros elementos importantes. Sabemos por meio do trabalho analítico, assim como dos sonhos de pessoas saudáveis, que todo menino têm a fantasia de ocupar o lugar do pai e de ter um filho com sua mãe[36]. Desde a infância até bem recentemente, incluindo aí o período da análise, nosso paciente também teve fantasias sexuais nas quais via a mãe com uma barriga grande, pela qual ele teria sido o responsável[37]. Eis então que em seu quarto ano de vida a mãe fica com uma barriga grande e, logo depois, ele recebe uma irmã de seu mais perigoso rival, o próprio pai. Nestes termos, a barriga grande teria produzido nele uma decepção semelhante àquela que, mais tarde – aos 15, 16 anos – seria produzida por ocasião da hidropisia. Há ainda um segundo fator que desempenha um papel nisso, também ligado ao nascimento da irmã. Após o puerpério, a mãe desenvolveu um Fluor albus[38] que fazia o paciente – que era muito sensível a odores – recuar quando se aproximava dela com carícias, como fez mais tarde em relação à hidropisia. Uma vez ocorrido o afastamento da mãe, as razões para legitimá-lo serão naturalmente mobilizadas em diferentes frentes. Por exemplo, no caso de nosso paciente: “a mãe sempre foi muito rígida e rabugenta, me bateu demais e, finalmente, começou a cheirar mal”. Ainda por cima, mais tarde: “se eu me sentia eroticamente atraído pela minha irmã, minha mãe se colocava antes de tudo contra mim”. Finalmente, uma razão mobilizada durante a puberdade: ele soube que apesar de tê-lo inicialmente amamentado, acabou em um segundo momento solicitando uma ama de leite, pois ela mesma não aguentava mais amamentar. Em outra ocasião, sentindo-se doente e em sofrimento, acabou ainda responsabilizando sua mãe por fazê-lo adoecer.
Como podemos ver, a hidropisia só pôde ter um efeito tão duradouro porque se ligou a uma decepção amorosa infantil e à imagem do grande ventre atravessada por desejos sexuais [sexuelle Wünsche]. Assim, ao fazê-lo “cair na real” de maneira abrupta[39], sua mãe já o havia frustrado em seus sentimentos amorosos infantis. Teria sido essa a razão que o levou a se afastar de todas as mulheres ordinárias e ingratas e se voltar para o seu próprio sexo, onde já havia encontrado um grande amor na figura do pai e dos seus amigos e colegas da escola. Será desta forma que o afastamento da mulher vai ser psicologicamente representado pelo paciente.
Isso quer dizer que o problema da sua inversão, que levaria nosso paciente a romper completamente com a mãe e com as mulheres em geral, está resolvido? Acredito que não, e aqui permanece um grande mistério. Uma psicanálise pode no máximo revelar porque ocorreu a fixação no amor pelo masculino. Como bem vimos, ela resultou da repressão [Verdrängung] de sentimentos heterossexuais, assim como, inversamente, a supressão [Unterdrückung][40] da homossexualidade é uma condição para a sexualidade normal [Normalgeschlechtlichen]. Agora, se tal reorientação forçada [einseitiger Zwang] ocorre apenas por meio da repressão do objeto representado pelo outro sexo, isso não quer dizer que elementos acidentais ou fatores auxiliares estejam completamente ausentes. As razões últimas e decisivas do porquê a repressão ocorre em uma ou em outra direção são de natureza constitucional orgânica e, portanto, um completo mistério para nós. A psicanálise não estaria em condições de oferecer a mínima explicação sobre elas[41].
Desde o início, a libido [Libido] e a ternura [Zärtlichkeit][42] de cada um oscilam entre os dois sexos e a tia espirituosa que faz a famosa pergunta à criança – “Quem você prefere, papai ou mamãe?” – e que durante séculos recebeu uma resposta estereotipada – “Ambos!” – constrange a criança a admitir repetidamente sua bissexualidade. Por exemplo, perturbações ligadas à fixação em objetos sexuais do sexo oposto tendem a produzir de maneira excepcional uma fixação forçada no objeto homossexual, e vice-versa, claro. Além dos fatores constitucionais, que nos são completamente desconhecidos, e dos fatores específicos, que indiquei acima, há também fatores acidentais bastante decisivos que devem ser levados em conta[43], tais como, além daqueles que foram repetidamente citados, o caráter e o comportamento dos pais ou – o que eu gostaria de acrescentar agora como uma circunstância importante – a perda precoce de um dos pais[44], que perturba consideravelmente o equilíbrio. Demonstrei acima que o homossexual sofre das consequências da repressão de fortes impulsos libidinosos e precoces dirigidos à mulher, em geral a própria mãe, assim como o homem heterossexual que ama compulsivamente – o chamado servo da mulher [Weiberknecht] – se revela em análise como alguém que correu um forte risco de inversão nos tempos primordiais de sua vida, mas que acabou se desviando do homem. Isso está relacionado à flutuação da libido em torno de figuras masculinas e femininas, como ocorre com a inervação facial, que se baseia no equilíbrio de ambos os músculos inervados da face. A paralisia facial de um único lado, no entanto, não apenas causa a fraqueza da respectiva metade, mas também uma cãibra na outra metade. É a essa cãibra que podemos comparar a exigência implicada na escolha de um objeto sexual. ♦
* Isidor Sadger é Isidor Isaak Sadger, médico austríaco de origem judia, nascido em 1867 na cidade de Neuzandec, na Galícia, e morto em um campo de concentração nazista durante a segunda guerra mundial. Especialista em neuropatologia, se aproxima do movimento psicanalítico em 1906 e será o primeiro a descrever e definir, ainda em 1908, o conceito de narcisismo. Suas concepções sobre a homossexualidade serão amplamente repercutidas a partir de 1910, através da obra de autores como Havelock Ellis, Magnus Hirschfeld e Freud.
** Patricia Porchat é psicanalista e professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru). Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Saúde da População LGBT (NUDHES), do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, é autora do livro Freud e o teste de realidade (Casa do Psicólogo/Fapesp, 2005) e do livro Psicanálise e Transexualismo: Desconstruindo Gêneros e Patologias com Judith Butler (Editora Juruá, 2014). Coorganizou, também, o livro Psicanálise e Gênero: Narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina (Editora Calligraphie, 2018).
*** Flávia Ripoli Martins psicóloga. Graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestre em psicologia clínica pela mesma instituição, é autora da dissertação Lesbianidade e homossexualidade nas Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena: contribuições à historiografia da psicanálise (2020).
**** Caio Padovan é psicólogo, doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Atualmente é professor de Psicologia Clínica na Universidade de Montpellier 3 e pesquisador associado do Centre de recherche psychanalyse, médecine et société (CRPMS). Cofundador do Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP).
[1] No original: konträren Sexualempfindung, noção introduzida em 1869 pelo psiquiatra alemão Carl Westphal (1833-1890), em um artigo intitulado A sensibilidade sexual contrária: sintoma de um estado neuropático (psicopático). A este respeito, ver: WESTPHAL, Karl (1869). “Die conträre Sexualempfindung: Symptom eines neuropathitischen (psychopathitischen) Zustandes”, Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 2, pp.73-108. Optamos aqui por uma tradução mais literal com o objetivo de chamar a atenção para dois elementos particularmente importantes no contexto desse debate. O primeiro deles diz respeito ao sentido originalmente atribuído por Westphal ao adjetivo konträren (contrária), sugerindo uma oposição frente à sensibilidade sexual normal. O segundo, ao uso do substantivo Empfindung (sensação), indicando que se trata de um fenômeno de natureza sensorial, orgânica, e não necessariamente sentimental ou psicológica. Por essas razões, acabamos julgando outras traduções possíveis, como “inversão sexual” ou simplesmente “homossexualidade”, como menos pertinentes do ponto de vista conceitual. Uma discussão aprofundada sobre esse assunto será desenvolvida em um artigo que está sendo preparado nesse momento. (N. de T.)
[2] Termo latino difundido por um dos fundadores da Patologia sexual enquanto disciplina científica, o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing (1840-1902), notadamente a partir de sua obra homônima inicialmente publicada em 1886. A este respeito, ver: KRAFFT-EBING, Richard von (1886) Psychopathia sexualis. Eine klinisch-forensische Studie. Stuttgart: Ferdinand Enke. (N. de T.)
[3] Termo introduzido durante os anos 1860 por Karl Heinrich Ulrichs (1825-1895) em uma série de panfletos reunidos com o título Investigações sobre o enigma do amor masculino. A este respeito, ver reedição da obra em: ULRICHS, Karl Heinrich (1898) Forschungen über das Rätsel der mannmännlichen Liebe. New York: Arno Press, 1975. Diferentemente de outras categorias, como a de sensibilidade sexual contrária, o termo Uraniano não implica par de opostos, sendo utilizado por Ulrichs para se referir ao que ele considerava ser um terceiro-sexo de natureza fundamentalmente hermafrodita, representado pela imagem da alma de mulher presa em um corpo de homem e vice-versa. (N. de T.)
[4] Sadger discute este argumento mais detalhadamente em dois artigos publicados no ano de 1913. Ver: SADGER, Isidor (1913a). “Über den Wert der Autobiographien sexuell Perverser”, Fortschritte der Medizin, 31, pp. 705 – 714, 735 – 749, 772 – 779; SADGER, Isidor (1913b) “Welcher Wert kommt den Erzählungen und Autobiographien der Homosexuellen zu?“, Archiv für Kriminal-Anthopologie und Kriminalistik, 53 (1/2), pp. 179 – 187. No primeiro capítulo da terceira edição de sua influente obra sobre a chamada Inversão sexual, publicada em 1915, o médico inglês Henry Havelock Ellis (1859-1939) debate as considerações de Sadger sobre as autobiografias dos pacientes homossexuais. A este respeito, ver capítulo III, The sexual inversion in men, em: ELLIS, H. (1915) Studies in the psychology of sex, vol. 2, 3a ed. Philadelphia: F. A. Davis Company, pp. 89-91. (N. de T.)
[5] Como descreve em Fragmento da psicanálise de um homossexual, o interesse de Sadger pelo tema da homossexualidade foi despertado pela prática psicanalítica com a histeria e a neurose obsessiva. Ao trabalhar com o método freudiano, o autor teria encontrado dificuldades em eliminar os sintomas de seus pacientes a partir da elucidação da gênese heterossexual da sintomatologia histérica e obsessiva, passando a se dedicar – por sugestão de Freud – ao estudo dos desejos e fantasias homossexuais inconscientes desses pacientes e, consequentemente, também à investigação teórico-clínica sobre a homossexualidade. A este respeito, ver: SADGER, Isidor (1908a) “Fragment der Psychoanalyse eines Homosexuellen”, Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen, 9, pp. 339-424. (N. de T.)
[6] Encontramos aqui uma clara referência à noção de “equação etiológica” [ätiologische Gleichung], proposta por Freud em 1895, em artigo intitulado Sobre a crítica da neurose de angústia. Neste trabalho, o autor propõe quatro categorias etiológicas distintas para compor essa equação, cada uma delas investida de um fator ou valência quantitativa específica. A primeira destas categorias é a de “condição” [Bedingung], descrita como um fator de predisposição inato, de natureza hereditária ou constitucional, e definida em termos etiológicos como uma causa necessária, mas não suficiente. A segunda, é a categoria de “causa específica” [spezifische Ursache], descrita como um fator de predisposição adquirido, dependente da interação entre organismo e ambiente, e definida igualmente em termos etiológicos como uma causa necessária, mas não suficiente. Segundo Freud, a associação destes dois fatores poderá, por razões quantitativas, produzir um estado psicopatológico. Por fim, as duas últimas categorias, de “causa concorrente” [konkurrierende Ursache] e de “causa desencadeante ou precipitante” [veranlassung oder auslösende Ursache], não serão entendidas nem como necessários, nem como suficientes, mas poderão participar elevando o grau de intensidade necessário do ponto de vista quantitativo para desencadear um conjunto bem definido de sintomas. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1895) “Zur Kritik der „Angstneurose“”, Wiener klinische Rundschau, 9(27), pp. 417-9, (28), pp. 435-7, (29), pp. 451-2. (N. de T.)
[7] A hipótese em torno da natureza bissexual dos seres humanos já havia sido sustentada por Freud em 1905, no primeiro dos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em uma seção inteiramente dedicada ao tema. Como demonstra o autor, trata-se de um assunto que vinha sendo discutido por diferentes pesquisadores pelo menos desde os anos 1880. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke. Em um texto posterior, publicado em 1908 com o título Fantasias histéricas e suas relações com a bissexualidade, Freud afirmará de maneira mais categórica a existência de uma “predisposição bissexual” [bisexuelle Anlage] nos seres humanos. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1908) “Hysterische Phantasien und ihre Beziehung zur Bisexualität”, Zeitschrift für Sexualwissenschaft, 1(1), pp. 27-34, p. 33. (N. de T.)
[8] Na citada terceira edição da obra Inversão sexual, Havelock Ellis discute em detalhe estas duas hipóteses, referentes à origem inata ou adquirida da homossexualidade. Em um capítulo especialmente dedicado às diferentes teorias da inversão sexual, Ellis afirma que a hipótese da origem inata era na época considerada como dominante. Ao discutir a teoria psicanalítica da inversão, e em particular o artigo de Sadger aqui traduzido, o médico inglês irá tomá-la como uma das representantes da hipótese alternativa, quer dizer, da origem adquirida, ainda que reconheça o fato de os “freudianos” não ignorarem a importância dos ditos fatores hereditários. A este respeito, ver capítulo VI, The theory of sexual inversion, em: ELLIS, H. (1915) Studies in the psychology of sex, vol. 2, 3a ed. Philadelphia: F. A. Davis Company. (N. de T.)
[9] É interessante notar que, do ponto de vista argumentativo, o autor prepara o terreno aqui com o objetivo de introduzir mais adiante suas hipóteses sobre o lugar ocupado pela sexualidade infantil na origem da sensibilidade sexual contrária. (N. de T.)
[10] Como exemplo do manejo clínico de Sadger, ver SADGER, Isidor (1908a) “Fragment der Psychoanalyse eines Homosexuellen”, Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen, 9, pp. 339-424. Neste texto, o autor valeu-se de notas tomadas durante a análise de um jovem homossexual para tentar reproduzir palavra por palavra as treze sessões que compuseram o tratamento deste paciente. Com as devidas ressalvas ao procedimento de transcrever uma análise – dado o fato de que um relato clínico em muito difere da experiência analítica atravessada pela transferência – o artigo traz um excelente exemplo da maneira como Sadger aplicava as hipóteses teóricas desenvolvidas por ele nessa época. (N. de T.)
[11] No original: familiär stark belastet. Eufemismo para se referir à pesada carga hereditária à qual o paciente estava sujeito, capaz de predispô-lo à manifestação de perturbações de natureza sexual. (N. de T.)
[12] Considerando que, na época, a realização de sessões diárias não era incomum durante um processo de análise, “seis meses de pesquisa conjunta” poderia representar muita coisa em termos de tempo. (N. de T.)
[13] Noção empregada por Freud em 1904, no quarto capítulo da obra Psicopatologia da vida cotidiana, dedicado aos “Lapsos da fala” (capítulo 5 a partir da segunda edição da obra, datada de 1907). Ao mobilizar a categoria de “contaminação”, Freud se refere às formações de compromisso que incluem, justamente, a agregação de diferentes elementos em uma mesma ação ou objeto. Tal noção havia sido inicialmente proposta por dois filólogos de língua alemã, Rudolf Meringer e Carl Mayer, com o objetivo de apreender um certo número de fenômenos linguísticos. A este respeito, ver o capítulo Das versprechen (p. 18), em: FREUD, Sigmund (1904) Zur Psychopathologie des Alltagslebens. Berlin: S. Karger. Do ponto de vista metapsicológico, podemos aproximar a ideia de contaminação à noção de condensação, desenvolvida por Freud, ainda que em termos mais restritos, alguns anos antes, na obra A interpretação dos sonhos. (N. de T.)
[14] Entendemos que, nesta passagem, um tanto obscura, Sadger se refere ao fato de que se o paciente encontrasse um par amoroso correspondente ao seu ideal, esse homem o excitaria muito pouco no futuro, quando deixasse de ser jovem e crescesse a sua barba, ou nos termos que Sadger discutirá adiante no texto, quando sua semelhança com figuras femininas deixasse de ser tão marcada e evidente. (N. de T.)
[15] As relações entre a escolha de objeto e a ternura ou severidade dos genitores de um indivíduo – aqui mencionada pelo paciente – foram debatidas em três reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, ocorridas em 26 de janeiro, 23 de fevereiro e 11 de maio de 1910 (atas 95, 98, 107). Sobre as reuniões, ver NUNBERG, Herman; FEDERN, Ernest (1978). Les premiers psychanalystes: Minutes de la Société psychanalytique de Vienne. Trad. N. Schwab-Bakman. Paris: Gallimard, v. 2. (N. de T.)
[16] A categoria de “invertido anfígeno” [amphigen invertiert], ou hermafroditismo psicossexual, será discutida por Freud em 1905 como um caso particular de inversão sexual. Em oposição aos casos de inversão “absoluta”, quando a escolha por objetos do mesmo sexo é exclusiva, e aos casos de inversão “ocasional”, quando a escolha é meramente contingencial, a inversão anfígena será caracterizada pela existência de uma inclinação para ambos os sexos. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, p. 2. Trata-se, portanto, de uma categoria análoga àquela de bissexualidade. (N. de T.)
[17] Referência ao “clister”, termo médico utilizado como sinônimo de enema, quer dizer, instilação, pelo ânus, de água ou líquido medicamentoso nos intestinos, por meio de seringa, irrigador etc. (N. de T.)
[18] Referência implícita ao artigo recém-publicado de Freud com o título Caráter e erotismo anal, onde o autor discutirá a relação entre fixações na fase anal do desenvolvimento psicossexual e certos traços de personalidade. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1908). “Charakter und Analerotik”, Psychiatrische-Neurologische Wochenschrift, 9(52), pp. 465-7. (N. de T.)
[19] Termo utilizado de maneira corrente na época para designar prática sexual homossexual envolvendo penetração anal. A este respeito, ver o capítulo IV, Sexuelles Leben der Homosexuellen, em: MOLL, Albert (1899) Die konträre Sexualempfindung. Berlin: Fischer’s Medicin. (N. de T.)
[20] Referência implícita à noção psicanalítica de “apoio” [Anlehnung], proposta por Freud em 1905, nos Três ensaios, com o objetivo de descrever a relação de dependência das pulsões sexuais em relação às pulsões de autoconservação ao longo do desenvolvimento psicossexual da criança. Mais tarde, em 1912, no segundo artigo de Freud sobre a psicologia da vida amorosa, esta mesma noção será abordada nos seguintes termos: “as pulsões sexuais encontram seus primeiros objetos apoiando-se nas exigências das pulsões do eu, tal como as primeiras satisfações sexuais são experimentadas apoiando-se nas funções do corpo necessárias à conservação da vida” (p. 41-2). A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1912) “Beiträge zur Psychologie des Liebenslebens II. Über die allgemeinste Erniedrigung des Liebeslebens”, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung, 4(1), pp. 40-50. Dito isso, podemos entender a passagem de Sadger considerando que “as frequentes irritações causadas pelo clister” fariam as vezes do suporte orgânico sobre o qual se apoiaria a pulsão sexual do pederasta. (N. de T.)
[21] Termo de origem grega, παθικός, que qualifica aquele que assume a posição passiva frente a uma situação. No contexto da sexologia do final do século XIX, o “pathicus” será concebido como aquele que assume uma posição passiva durante uma relação homossexual anal, mas também, de maneira mais geral, como sinônimo de “afeminado” ou “emasculado”. A este respeito, ver o capítulo IV, Sexuelles Leben der Homosexuellen, em: MOLL, Albert (1899) Die konträre Sexualempfindung. Berlin: Fischer’s Medicin, p. 239. Ver também a seção Die homosexuale Empfindung als angeborene krankhafte Erscheinung, em: KRAFFT-EBING, Richard von (1898). Psychopathia sexualis. Sttutgart: Ferdinand Enke, 10.ed., p. 219. (N. de T.)
[22] Expressão de origem latina geralmente empregada pela literatura especializada a partir da variação immissio membri in anum. Nos dois casos, o sentido permanece o mesmo: “penetrar os membros no ânus”. (N. de T.)
[23] Referência implícita à hipótese introduzida por Freud na reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena de 6 de novembro de 1907 (ata 28). Durante a discussão da primeira comunicação sobre a recém-iniciada análise de Ernst Lanzer (1878-1914), que daria origem ao caso clínico O homem dos ratos, Freud afirmou que “as análises de três homossexuais declarados, passíveis de punição na esfera penal, revelaram a existência de uma relação muito precoce com a mulher, que mais tarde foi reprimida” (p. 352). Esta tese foi retomada na reunião de 15 de janeiro de 1908 (ata 36) e complexificada no encontro de 27 de maio de 1908 (ata 52), ocasião em que Freud “relata o fato (extraído da análise de um homossexual latente) de que a homossexualidade só surge após um certo tempo e a libido é então transposta da mulher ao homem” (p. 576), articulando esta hipótese ao ciúmes e ao ódio, conforme será desenvolvido em Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade, publicado em 1922. Na reunião de 12 de maio de 1909 (ata 79), Freud retoma essa teoria, reafirmando ter podido observá-la em alguns casos. A este respeito, ver: CHECCHIA, Marcelo Amorim; TORRES, Ronaldo; HOFFMANN, Waldo (Org.) (2015) Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906 – 1908. Trad. M. M. M. Silva. São Paulo: Scriptorium, pp. 352, 576; NUNBERG, Herman; FEDERN, Ernest (1978) Les premiers psychanalystes: Minutes de la Société psychanalytique de Vienne. Trad. N. Schwab-Bakman. Paris: Gallimard, v. 2. No que se refere ao texto de Freud, ver: FREUD, Sigmund (1922). “Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht, Paranoia und Homosexualität”, Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, 8 (3), pp. 249 – 258. (N. de T.)
[24] Ao longo de todo o texto, evitamos traduzir o termo alemão Geschlecht por “gênero”, entendendo que esta noção é posterior ao período em que foi publicado o artigo de Sadger. Considerando que Geschlecht, no sentido utilizado pelo autor, inclui a dimensão biológica da sexualidade, entendemos que, neste caso, “sexo” seria uma melhor tradução. Esta opção repetiu-se no que se refere às expressões Konträrgeschlechtlichen e Normalgeschlechtlichen, respectivamente traduzidas por “sexualidade contrária” e “sexualidade normal”. (N. de T.)
[25] Hipótese desenvolvida por Sadger em 1908 no artigo intitulado A sensibilidade sexual contrária é curável?, onde o autor discute a cura da homossexualidade, defendendo que esta ocorreria na medida em que os conteúdos inconscientes e recalcados ligados à pulsão heterossexual se tornariam conscientes por meio da recordação dos antigos objetos sexuais femininos que teriam despertado a libido do sujeito, processo que, de maneira correlata, provocaria o recalcamento das pulsões homossexuais. A este respeito, ver: SADGER, Isidor (1908b). “Ist die konträre Sexualempfindung heilbar?”. Zeitschrift für sexualwissenschaf, Leipizig, 1 (12), pp. 712 – 720. O artigo de Sadger foi resenhado em: ELLIS, Havelock (1909) “Is sexual inversion curable?. Journal of Mental Science”, Londres, 55 (230), p. 567. (N. de T.)
[26] O radical παῖς em Päderastie não se refere ao menino, mas aos jovens entre o início da puberdade e o desenvolvimento da barba, aproximadamente dos 15 aos 18 anos, a melhor época para o amor do menino (Moll, “Die konträre Sexualempfindung”). [Referência não literal a uma passagem de Moll que se encontra no sexto capítulo da terceira edição da obra citada, A sensibilidade sexual contrária. A este respeito, ver: MOLL, Albert (1899) Die konträre Sexualempfindung. Berlin: Fischer’s Medicin, p. 216 (N. de T.)].
[27] Ver nota acima sobre a noção de “contaminação”. (N. de T.)
[28] Encontramos aqui sumarizadas duas teses que fundamentam a teoria de Sadger sobre a etiologia da homossexualidade, as quais serão posteriormente articuladas às noções de narcisismo e identificação, conforme demonstrado em: PADOVAN, Caio (2017) As origens médico-psiquiátricas do conceito psicanalítico de narcisismo. Ágora (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, pp. 634 – 644. Esta articulação foi discutida nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena de 03 e 10 de novembro de 1909 e 05 de janeiro de 1910 (atas 85, 86 e 92) e também no encontro de 1 de dezembro de 1909 (ata 89), ocasião em que Freud cita as contribuições de Sadger ao discutir uma fantasia de Leonardo da Vinci, conferência que seria posteriormente expandida no texto Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, publicado em 1910. A respeito das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena, ver: NUNBERG, Herman; FEDERN, Ernest (1978) Les premiers psychanalystes: Minutes de la Société psychanalytique de Vienne. Trad. N. Schwab-Bakman. Paris: Gallimard, v. 2. (N. de T.)
[29] O mesmo, é claro, também se aplica a uraniana [Urnide]. Por uma questão de simplicidade me refiro ao homem uraniano aqui e na sequência [N.T. Referência à categoria introduzida por Karl Heinrich Ulrichs, mencionada em nota mais acima. A questão da lesbianidade (homossexualidade feminina), abordada nesta nota de rodapé do texto, será brevemente discutida por Sadger em: SADGER, Isidor (1910). “Ein Fall von multipler Perversion mit hysterischen Absenzen“, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen, 2, pp. 59–133. No ano de 1911, Otto Rank também trabalhará essa questão no artigo Uma contribuição sobre o narcisismo, onde o autor discute a aplicação das hipóteses sadgerianas ao caso das mulheres. A este respeito ver: RANK, Otto (1911). Uma contribuição sobre o narcisismo [Trad. C. Padovan; N. Müller]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 2, 2016. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-02/> (N. de T.)].
[30] Referência não literal e condensada de uma longa passagem de Moll, presente no capítulo IX da terceira edição da obra A sensibilidade sexual contrária, onde o autor apresenta suas próprias hipóteses sobre o assunto. A este respeito, ver: MOLL, Albert (1899) Die konträre Sexualempfindung. Berlin: Fischer’s Medicin, p. 409. (N. de T.)
[31] Noção introduzida por Freud em 1905, nos Três ensaios. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, pp. 24, 67. (N. de T.)
[32] Optamos por traduzir excepcionalmente aqui a expressão Geschlechtstrieb por “pulsão genital”, entendendo o termo Geschlecht como “genital”. Consideramos que esta opção foi a maneira mais adequada de evitar a assimilação entre as noções de Geschlechtstrieb e Sexualtrieb, empregadas por Freud em contextos diferentes nos Três ensaios. Nesta obra, a noção de Geschlechtstrieb contempla uma dimensão biológica do comportamento humano, sendo utilizada para se referir às concepções da literatura psiquiátrica e à sexualidade genital adulta. Por sua vez, o termo Sexualtrieb – traduzido por “pulsão sexual” – é utilizado quando Freud trata da concepção psicanalítica de sexualidade, enquanto universal, pulsional e perverso-polimorfa. A este respeito, ver quarto e último capítulo do primeiro ensaio em: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, p. 22. (N. de T.)
[33] [N.T. Expressão de origem latina e de uso corrente na literatura especializada que pode ser traduzido por “horror à mulher”. Encontramos referências a ela nas obras de Krafft-Ebing, Moll e Ellis sobre o assunto. Mais adiante, Sadger fará uma leitura psicanalítica desta ideia, afirmando que por detrás do horror pode se esconder um forte amor reprimido. Para tal, o autor mobiliza um mecanismo metapsicológico discutido por Freud alguns anos antes, nos Três ensaios, a saber, a “formação reativa” [Reaktionsbildung]. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, pp. 76-7].
[34] Termo médico sinônimo de “edema”, retenção anormal de líquido nos tecidos do corpo. (N. de T.)
[35] Referência implícita à prima descrita mais acima como “invertida anfígena”. (N. de T.)
[36] Encontramos referências de Freud sobre o assunto já na primeira edição de A interpretação dos sonhos, mais precisamente no capítulo 5, onde o autor argumenta que, de acordo com sua extensa experiência, “os pais desempenham um papel preponderante na vida mental das crianças em geral” e que “apaixonar-se um dos pais e odiar o outro compõe o acervo básico dos impulsos psíquico que se formam durante esse período”. Na sequência, Freud evocará o “mito de Édipo”, a célebre tragédia de Sófocles que dramatiza a história de um filho que, por força do destino, se casa com a mãe – tendo com ela dois filhos e duas filhas – após ter assassinado o próprio pai. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1900). Die Traumdeutung. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, pp. 180-1. A título informativo, lembramos que, enquanto operador teórico, o chamado Complexo de Édipo seria formalizado por Freud apenas dez anos mais tarde, no artigo Um tipo de escolha objetal feita por homens. A respeito dessa passagem, ver: FREUD, Sigmund (1910) “Beiträge zur Psychologie des Liebenslebens I. Über einen besonderen Typus der Objektwahl beim Manne”, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung, 2(2), pp. 389-397, p. 394. Nesse mesmo ano, com a publicação de suas lições de psicanálise proferidas nos Estados Unidos, Freud dirá que o complexo de Édipo constitui o “complexo nuclear de toda neurose” [Kernkomplex einer jeden Neurose]. Cf. FREUD, Sigmund (1910) Über Psychoanalyse. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, p. 52. (N. de T.)
[37] Um detalhe revelador: “Quando eu tinha 8 ou 9 anos, sempre desenhava na lousa da escola primária uma mulher deitada com uma barriga enorme (minha mãe grávida, é claro), para a grande diversão de meus colegas, que entendiam isso muito bem, enquanto eu mesmo ainda não tinha recebido qualquer educação sexual naquela época”.
[38] Expressão latina empregada no contexto médico como sinônimo de “Leucorreia” ou “corrimento vaginal”, fenômeno comum durante e após o período de gestação, em função de mudanças hormonais. (N. de T.)
[39] Traduzimos aqui por “cair na real” a expressão alemã aus allen Himmeln fallen que, literalmente, quer dizer “cair de todos os céus” e que designa, metaforicamente, “ser surpreendido negativamente” ou ser exposto a um estado de “profunda decepção e desilusão”. Em seu texto, Sadger reproduz uma variação desta mesma expressão, substituindo o verbo fallen pelo verbo werfen, tornando a situação ainda mais drástica e sugerindo que o paciente não teria simplesmente caído, mas sim sido “jogado” de todos os céus. Podemos articular essa ideia àquela que será veiculada mais tarde por Freud, em seu artigo sobre o narcisismo de 1914, onde o psicanalista afirma que durante a primeira infância a criança vive uma experiência de completude que tenderá a ser frustrada em função das exigências do mundo externo. (N. de T.)
[40] Não fica claro nessa passagem se Sadger faz ou não um uso diferencial das noções de Verdrängung, aplicada aqui aos sentimentos heterossexuais, e Unterdrückung, aplicada por sua vez à homossexualidade. Mais acima, o autor já havia empregado Unterdrückung para se referir à supressão do elemento heterossexual, o que pode nos indicar que ambos os mecanismos serão entendidos ao longo do texto como análogos. Uma outra interpretação possível, que contempla o uso distinto dos termos, seria tomar a Unterdrückung como a supressão de um afeto, que seria inibido na fonte e então transformado, não sendo transposto para o inconsciente, enquanto a Verdrändung remeteria a repressão de uma representação, transposta para o inconsciente. A respeito desta segunda interpretação, consultar o verbete correspondente em: LAPLANCHE, Jean, PONTALIS, Jean-Bertrand, LAGACHE, Daniel (2007) Vocabulaire de la psychanalyse, 5 ed. Paris: PUF. Lembramos que, em 1900, no sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos, Freud contempla essa mesma diferenciação ao afirmar: “se associo à palavra ‘suprimido’ um sentido diferente daquele que associo à palavra ‘reprimido’, é preciso apenas que fique claro que a última acentua com mais força do que a primeira o pertencimento ao inconsciente”. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1900). Die Traumdeutung. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, p. 361. Ora, partindo dessas considerações, podemos entender que Sadger associa a repressão da heterossexualidade a um mecanismo psíquico de defesa, sendo a supressão da homossexualidade quem sabe um processo de outra natureza. Esta hipótese é corroborada pelo entendimento de Sadger sobre cura da homossexualidade, mencionado em nota mais acima. (N. de T.)
[41] Considerando a tipologia das causas proposta por Freud e assimilada por Sadger, aquilo que será entendido aqui como as “razões últimas” de “natureza constitucional orgânica” se articula com as chamadas “condições” [Bedingung]. (N. de T.)
[42] A distinção e as relações entre “libido” e “ternura” foram trabalhadas por Freud em 1905, na primeira edição dos Três ensaios, mais precisamente na terceira parte, no capítulo O encontro com o objeto. A este respeito, ver: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, pp. 64-5. (N. de T.)
[43] Na reunião de 10 de novembro de 1909 (ata 86), Sadger menciona quatro fatores acidentais que devem ser considerados, sendo estes: a morte da mãe, a doença capaz de desfigurá-la, uma catástrofe capaz de retirar temporariamente o amor materno e o comportamento inapropriado da mãe com relação à masturbação. Cf. NUNBERG, Herman; FEDERN, Ernest (1978) Les premiers psychanalystes: Minutes de la Société psychanalytique de Vienne. Trad. N. Schwab-Bakman. Paris: Gallimard, v. 2, p. 301. (N. de T.)
[44] A hipótese de que a perda precoce de um dos pais teria relação com a homossexualidade é mencionada por Freud na seção Prevenção da inversão, que se encontra no capítulo O encontro com o objeto dos Três ensaios, em: FREUD, Sigmund (1905) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, p. 69. Em 1909, Sadger desenvolverá esta hipótese a partir da patografia do poeta, dramaturgo e romancista alemão Heinrich von Kleist (1777-1811). A este respeito, ver: SADGER, Isidor (1910) Heinrich von Kleist. Eine pathographisch-psychologische Studie. Wiesbaden: Bergmann. (N. de T.)
COMO CITAR ESTE ARTIGO | SADGER, Isidor (1909) Sobre a etiologia da sensibilidade sexual contrária [Trad. F. R. Martins; C. Padovan]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -10, p. 12, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2020/12/08/n-10-12/>.