Psicanálise e desconstrução: a clínica como o umbigo indesconstrutível da psicanálise

 

por Rodrigo AlencarWilson de Albuquerque Cavalcanti Franco

Introdução

Diversas afinidades e sintonias convidam a uma aproximação entre desconstrução e psicanálise, fazendo com que o cotejamento entre os dois dispositivos/discursividades seja um tema relativamente recorrente no contexto do pensamento em ciências humanas nas últimas décadas: quem estuda desconstrução eventualmente precisará estudar um pouco de psicanálise, e quem trabalha com psicanálise eventualmente precisará entender um pouco acerca da desconstrução. Isso indica, no mínimo, que os discursos se atravessam social e institucionalmente – essa relação nos parece óbvia. Não é só por esse âmbito, no entanto, que nos parece claro a existência de uma relação, não só possível como patente, entre a desconstrução e a psicanálise: existe relação histórica, concatenação conceitual interna, existem articulações institucionais e “parcerias” pessoais, toda uma gama de relações ricas e intensas, típicas de áreas de pensamento que se fertilizam reciprocamente no campo-jardim das ciências humanas.

A questão que pauta nossas considerações nesse texto, no entanto, passa por um outro vértice: o fato de que a psicanálise, além de ser uma experiência de pensamento inscrita no campo das ciências humanas, é também uma experiência clínica; essa característica fundamental da psicanálise se nos apresenta como um ponto a partir de onde emergem diferenças irreconciliáveis – há algo na psicanálise que não seria passível de desconstrução, não seria assimilável pela desconstrução, não é e não tem como ser desconstrução, e esse algo é a clínica.

Não há dúvida de que o problema abordado por esse texto convoca os autores a argumentos labirínticos que poderiam nos levar até mesmo a discussões sobre experiência e linguagem. Porém, é importante que possamos nos autorizar a declarar de qual lugar escrevemos, para que o leitor compreenda que há uma implicação com uma prática, para a qual nos favorecemos enormemente de produções teóricas como a desconstrução, mas para a qual não seria possível desocupar a especificidade de pensamento de quem tem a psicanálise clínica como ofício.

No próximo item apresentaremos de maneira sintética como essa particularidade se inscreve no horizonte do pensamento psicanalítico, para em seguida aprofundarmos as implicações dessa diferença do ponto de vista do lastreamento linguístico da experiência humana.

 

A implementação clínica do pensamento psicanalítico

 

Em setembro de 1918 Freud proferiu uma conferência em Steinbruch, na Hungria, intitulada “Wege der psychoanalytischen Therapie” (“Caminhos da terapia psicanalítica”, em tradução literal), publicada no ano seguinte [1]. Um dos pontos iniciais na argumentação de Freud é (como é habitual em sua retórica) a resposta a uma interpelação que ele presume razoável a partir de um interlocutor interessado; a questão que Freud levanta é: será que a psicanálise não deveria extrapolar o ofício estritamente analítico e proceder, quando pertinente, a uma síntese? Isso não tornaria o tratamento ainda mais efetivo?

É claro que a linha de fundo dessa provocação freudiana é a atividade do analista: o ponto onde o trabalho não é neutro e isento, convocando a uma participação ativa, tendo como objetivo o aumento da efetividade do tratamento. Esse ponto (da efetividade do tratamento) estava particularmente em voga na época, quando chegou-se inclusive a lançar um concurso na IPA para que psicanalistas fossem estimulados a escrever textos inéditos e inovadores no campo da técnica; impulsionavam esse movimento tanto as condições sociais amplas (as crises econômicas, sociais e de saúde pública derivadas da Guerra) quanto as condições do próprio movimento psicanalítico – particularmente o interesse de Freud e seus aliados próximos em consolidar a psicanálise enquanto movimento bem-sucedido e internamente consistente.

O ponto que nos interessa aqui, no entanto, é a forma como Freud encaminha essa provocação retórica: a questão sobre a pertinência de uma psico-síntese seria improcedente, porque na prática clínica o avanço da análise leva inevitavelmente a novas organizações (sínteses) psíquicas. Afinal, o dinamismo psíquico do paciente não ficaria “aguardando“ enquanto a análise progride: os acontecimentos clínicos promovem quebras e rupturas, mas estas imediatamente se manifestam enquanto reorganizações e transformações, sendo disso (e não de análise no sentido literal e restritivo) que se trata no fim das contas. Análise e síntese, portanto, não seriam separáveis como seria pressuposto pelo interlocutor imaginário que interroga Freud – toda análise é, enquanto análise, ocasião para sínteses que são parte do que ela é.

É curioso notar que Derrida afirma algo muito semelhante ao tratar das especificidades da desconstrução. Numa carta a Toshihiko Izutsu, tradutor de Gramatologia para o japonês, ele afirma que “a desconstrução não é uma análise nem uma crítica. Não é uma análise particularmente porque o desmantelamento de uma estrutura não é uma regressão em direção a um elemento simples, em direção a uma origem indecomponível. Esses valores, como aqueles da análise, são filosofemas sujeitos à desconstrução”[2].

Apesar da semelhança no movimento geral, os posicionamentos dos autores são diferentes: Freud afirma que a psicanálise é uma análise, ainda que a análise e a síntese não sejam separáveis como se imaginaria numa primeira vista; já Derrida afirma que, por não se poder proceder à regressão em direção a um elemento simples, não se pode considerar a desconstrução uma forma de análise. Um dos pontos sensíveis desse esforço de diferenciação feito por Derrida merece uma breve consideração de nossa parte: Freud certamente esperava encontrar cenas fundamentais, estruturantes da fantasia neurótica que seriam rememoradas durante o trabalho de análise; nesse sentido, podemos dizer que Freud esperava chegar em um “elemento simples”. Porém, ao longo do desenvolvimento da teoria, Freud vai desconstruindo e reconstruindo seus esquemas e alcança a constatação de que as rememorações são combinações produzidas no cerne da vida psíquica do indivíduo.

Podemos dizer que tais constatações ocorrem em dois tempos. O primeiro, no início de sua obra, quando afirma que suas pacientes histéricas mentem. Já o segundo marco da derrisão dessa convicção se dá no atendimento de seu paciente russo Sergei Pankejeff, notabilizado como o “Homem dos lobos”[3]. Após determinado tempo de análise, o paciente passa a relatar uma das primeiras memórias que consegue alcançar de sua infância – uma cena em que seu pai pratica um coito a tergo com sua mãe (ou seja: a penetra por trás). Freud interpreta essa cena como basilar na constituição de seus sonhos e associações com lobos. O ponto de interesse é que Freud se questiona se a memória seria uma criação do paciente ou uma lembrança realmente vista pelo mesmo quando criança[4]. No entanto, Freud pede que o leitor não descarte a cena, e passe a trabalhar tendo-a como uma informação da qual é possível assimilar consequências que ajudam a compreender o caso. É nesse sentido que podemos dizer que a chamada cena fundamental pode até ser desconstruída fora do espaço clínico, mas no contexto do trabalho, é uma construção fundamental, elaborada e fornecida pelo paciente em colaboração com o analista.

Aqui encontramos uma torção que parece ter saída de um quadro feito por Escher: O elemento simples do qual Derrida diz ser indecomponível é, para a prática analítica, uma construção realizada no cerne de sua experiência e que, por ser articulada ponto a ponto à trama associativa do complexo trabalho clínico da dupla, pouco tem de redutível.

A diferença entre as abordagens, portanto, é simples: Derrida atribui a inanalisabilidade ao fato de não se poder chegar ao indecomponível, ao elemento simples – é uma questão, digamos, a priori, ligada ao que são as estruturas submetidas a análise; já Freud atribui a impossibilidade de uma análise pura ao caráter dinâmico da análise e da síntese que a acompanha ao dinamismo psíquico – uma interpretação analítica pode suscitar uma abertura de sentido, mas essa abertura será prontamente habitada por sentidos que se formarão na “clareira” que ali se produziu (de forma que, na prática, não se produziu “clareira” alguma). O sujeito em análise interage com as intervenções analíticas, fazendo com que a análise nunca acesse “fim” algum porque a atividade analítica é regulada pela dinâmica que acolhe a dupla trabalhando clinicamente.

Um dos pontos onde essa particularidade da análise psicanalítica fica clara é na indicação por Freud de que a interpretação de sonhos teria um ponto-limite, o “umbigo do sonho”[5]: apesar da nomenclatura, o “umbigo” não é o ponto radical do sonho ou sua origem primeira, mas sim o ponto em que a resistência do sujeito ao procedimento analítico supera a capacidade analítica composta pelo investimento do sujeito na transferência e no desejo de cura. O “umbigo do sonho” não é uma característica do sonho, mas consequência do fato de que a interpretação do sonho é mobilizada pela dupla analítica em uma ocasião afetivamente investida, acolhida pela dinâmica e determinada pela economia psíquica.

Outro ponto onde Freud trata dessa particularidade é em um texto relativamente tardio chamado “Construções em análise”[6]. Nesse texto Freud responde à crítica segundo a qual o psicanalista sempre teria razão ao formular uma interpretação, já que a anuência do paciente indicaria que ele está correto e a discordância indicaria que ele está resistindo – o famoso “heads I win, tails you lose”[7]. Pois bem, a resposta de Freud (porque de novo se trata de uma resposta a um questionamento de um “interlocutor imaginário” retoricamente mobilizado no texto), a resposta de Freud a isso é simples: a correção da interpretação não se deve à anuência ou a discordância, porque nenhum dos dois indica por si só que a interpretação procede; a interpretação é considerada bem-sucedida quando ela promove efeitos no processo associativo do paciente, quando o paciente interage com a interpretação produzindo transformações em seu fluxo associativo e em sua composição sintomática (no contexto da compreensão psicanalítica acerca do que é um sintoma, evidentemente)[8].

O argumento de Freud, no entanto, vai além disso: ele indicará que a superação do recalque e do esquecimento, considerados um dos pontos principais do tratamento psicanalítico, só pode ser um trabalho do paciente; o analista não esqueceu, portanto não tem como recordar – mas então o que é que ele, o analista, faz? Para Freud, o trabalho do analista envolve “adivinhar, ou melhor, construir o que foi esquecido com base nos indícios deixados”[9]. A ideia não seria, obviamente, a de “adivinhar” um passado que substitua aquele que foi recalcado, mas sim suscitar atividade psíquica marcada pelos indicadores clínicos que habitam a trama associativa ligada ao campo sintomático, “forçando”, por assim dizer, a desconstrução do recalque em seu poder eficiente.

Ora, se a clínica psicanalítica “força” a desconstrução do recalque, ela não seria uma desconstrução? Um comentador conceituado da desconstrução, John Caputo, afirma em seu “Deconstruction in a nutshell” que “Onde quer que ela [a desconstrução] encontre um limite, ela pressiona contra ele. Onde quer que ela encontre um ‘núcleo’ – um axioma estável ou uma máxima retumbante – sua ideia básica será abrir esse núcleo e perturbar sua tranquila estabilidade. Essa, por sinal, seria uma boa regra básica para reconhecer a desconstrução”[10][11]. Se pensarmos no recalque como um limite e nas defesas como “nutshells”, a aproximação parece pertinente. Por que, então, não dizer que a psicanálise é uma desconstrução, e que a desconstrução é uma psicanálise?

A resposta é simples: porque a relação da psicanálise com o recalque é decisivamente mediada pelo encontro clínico – a “pressão” do psicanalista pela superação do recalque não diz respeito às construções e interpretações que ele formula, àquilo que ele pensa; como diz Freud, pouco importa se as interpretações são consideradas corretas ou incorretas pelo paciente, ou se elas são consideradas elegantes ou deselegantes por parte do analista quando ele as formula. A função da interpretação e da construção é fundamental e decisivamente submetida ao encontro clínico, e à forma como o enunciado operará na dinâmica do tratamento. A diferença entre o procedimento desconstrutivo e o procedimento psicanalítico, portanto, é que no registro do labor psicanalítico o umbigo que condiciona, acolhe e limita o trabalho pulsa, e é a partir dele que a atividade interpretante-construtiva-desconstrutiva modula. Essa pulsação no contexto do trabalho psicanalítico diz respeito à transferência, e é a transferência, como veremos, que marca o ponto irredutível separando a psicanálise da desconstrução.

 

O umbigo e a transferência

 

No texto estabelecido por Platão denominado “O banquete”[12], os convivas versam sobre a origem de Eros; dentre as elucubrações mais contundentes há o discurso de Aristófanes. O mito narrado por Aristófanes remete à trágica cena na qual os andróginos, como punição por terem desafiado os deuses, são cortados ao meio por Apolo; no entanto, em consideração à necessidade de que o corpo não se espalhe em órgãos sem cobertura, Apolo repuxa toda a pele da área do corte e dá um ponto de costura na região – que hoje é conhecida como umbigo.

Todo o poder da imagem do texto platônico ressoa numa construção originária da marca que todo ser humano carrega por um dia ter sido ligado de maneira vital a outro corpo. O deslocamento entre amor originário, materno, e amor sexual, relançado a partir da maturidade, compõe um dos cernes do argumento psicanalítico e remete a essa mesma marca de corte.

É a partir do reconhecimento da força erótica como elo de ligação mais substancial entre os corpos que a metáfora do umbigo ganha força, remetendo a uma falta ou ausência constitutiva: ausência do meio corpo suplementar, no mito de Aristófanes; ausência de sentido final e pleno, na teoria freudiana dos sonhos.

Se pensamos no umbigo como o ponto de costura e sustentação de um corpo, podemos por extensão remeter a transferência – esse ponto de costura que sustenta a relação, sua efetividade e destinação na prática psicanalítica – como sendo o umbigo do encontro psicanalítico, “remédio” impossível para a unidade perdida e a cesura incontornável entre paciente e analista.

A transferência é o que torna uma análise possível, e é também principal responsável pelas ocasiões em que uma análise se torna inviável[13]. Na verdade, a transferência opera de forma ainda mais minuciosa que isso: no contexto de uma análise, a escuta da transferência modula a emergência da interpretação por parte do analista e determina a ocasião de sua enunciação na sessão – cada interpretação, cada gesto analítico é remissível ao estofo transferencial. A construção de uma interpretação analítica depende, pois, de uma escuta que opera na relação analítica sempre a partir desse umbigo – o que quer dizer: a partir de uma disposição subjetiva que relança o diálogo em função de um sempre renovado questionamento/corte e da derrisão de sentidos determinados, sempre desarticulando no passado rememorado o ímpeto de determinação do futuro fantasiado.

No texto Construções em análise, Freud afirma:

“Nossa experiência demonstrou que a relação de transferência que se estabelece com o analista é especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais. É dessa matéria-prima – se assim podemos descrevê-la – que temos de reunir aquilo de que estamos à procura.” (1937/1996, p.276)

Vemos aí como o encontro analítico será vivido como destino de um ponto de estofo emocional já articulado – o encontro já é, de partida, uma repetição. E a posição de Freud não passa, evidentemente, por uma fuga ou evitação, mas sim pelo avanço do analista em direção a esse estofo, tomado então como matéria-prima para o trabalho analítico. Assim, o trabalho transferencial exige que se maneje aquilo que aponta para um passado já vivido, (re)construindo-se o passado fantasiado de modo a desconstruir um destino vivido desde já como tragédia.

Contudo, ainda que a transferência seja condição e fulcro do trabalho clínico, ela não garante por sua própria existência o sucesso nas intervenções. Isso porque o manejo da transferência, mesmo quando amparado em uma escuta precisa e em uma articulação adequada da trama significante em causa, exige a assunção de riscos, riscos que podem inclusive levar à interrupção e ao fracasso do trabalho analítico. A razão para isso é que – retomando a mitologia de Aristófanes – a depender da forma como a separação é trazida à cena, a pele que sustenta a ordenação dos conteúdos em jogo pode esgarçar, a cena pode ser tomada pela dor da carne viva, tripas à mostra, e nesse ponto o trabalho analítico perdeu o estofo, do umbigo fez-se a tragédia. A qualidade do vínculo entre analista e analisando é o ponto decisivo aqui, na busca por condições de trabalho que atualizem o drama que costura o umbigo sem reforçar o artifício do corte pleno e sem estripar a carne viva do desamparo arremessado ao não-sentido[14].

Supomos, então, que o manejo da transferência impõe uma particularidade ao ofício psicanalítico que o diferencia inequivocamente da desconstrução. Claro que se poderia supor, ainda, que isso não impede uma aproximação: a aproximação poderia ser sustentada nesses termos se considerássemos que a trajetória analítica é uma desconstrução da transferência. E nesse ponto, uma vez mais, acreditamos que não: essa aproximação/assimilação não é possível – e a razão passa pela relação entre linguagem e afeto na situação analítica. Um ponto estratégico de articulação para explicitar essa relação é a noção de “queda sob a transferência”. Essa ideia se baseia na compreensão de que o que sustenta uma transferência é a tomada do outro (no caso o analista) como objeto amoroso.

A queda indica aqui a existência de um limite, limite que só é conhecido quando já foi alcançado, sendo a partir dali que se estrutura, se estabelece e se impõe a(s) diferença(s). A queda do objeto amoroso no fim de um modo relacional que obtura a diferença, da mesma forma que a incidência do trabalho analítico sobre a  transferência, visa incidir um corte que restitui a diferença, destituindo com isso o regime de compulsão à repetição do comando do regime temporal – criando condições para que se abandone (na medida do possível) a busca de uma atualização recorrente do objeto/desejo perdido.

É claro que as intervenções em análise podem eventualmente operar por meio de efeitos desconstrutores – como exemplo podemos mencionar questões que antes tinham muita importância e posteriormente, a partir de uma enunciação interpretativa/construtiva, deixam de ocupar um lugar de destaque para o analisando. Mas isso não significa que o manejo da neurose de transferência e sua eventual dissolução são, em si, uma desconstrução – o fazer psicanalítico, o efeito de uma análise depende da e reside na relação entre linguagem e afeto, de modo que o que sustenta uma transferência se atualiza pela língua, mas se afirma pelo afeto (a relação entre os dois determinantes sendo, para todos efeitos clínicos, intrínseca e incontornável). Assim, uma vez mais, retomamos nosso ponto: a incidência clínica da psicanálise, sua habitação da trama afetiva que acolhe o trabalho da dupla analítica, essa condição de habitação é irredutível às aproximações e comparações entre psicanálise e desconstrução.

Para que essa particularidade do ofício psicanalítico fique claro, passamos a considerações exemplares acerca da habitação psicanalítica, de corte clínico, acerca de uma formulação significante – esperando que esse exercício lance luz sobre a peculiaridade do ofício psicanalítico.

 

Entre falsas desconstruções e o afeto como baliza da intervenção

 

Suponhamos um leitor que acredita na aproximação identificatória entre psicanálise e desconstrução. Esse leitor, incomodado com nossa argumentação, pensa “mas que filhos da puta!”. Pega-se, no entanto, suspeitando de si mesmo: ele não recrimina ou desvaloriza as profissionais do sexo – então, por que uma designação como essa seria ofensiva ou indicativa de sua irritação conosco? Por que seria depositária de seu desejo de nos ofender, diminuir, agredir?

Não propomos esse exercício imaginativo apenas como “associação livre”, mas como exemplar de uma noção central no pensamento psicanalítico: o recalque. A proposição que assalta os pensamentos do leitor imaginado não são articuláveis a uma rede de pensamentos e raciocínios, mas sim a uma rede significante articulando composições afetivas marcadas pela interdição, pela sexualidade infantil, pelo narcisismo, pela atemporalidade do inconsciente e outros tantos marcadores de uma linguagem que torce os regimes de língua, fala e linguagem em seus supostos “domínios” (sem falar, claro, no uso social difundido).

Uma desconstrução nesse contexto poderia se valer de uma construção preliminar: as putas podem ser muito mais merecedoras de respeito do que boa parte de outras categorias profissionais; no entanto, dado a partilha de um repertório que imbui palavras de afetos poucos adestrados por racionalizações, chamar alguém de “puta” ou de “filho da puta” ainda serve como ofensa, independente das concepções racionais do falante acerca dessas profissionais e do valor de seu ofício.

O que o exemplo nos traz é: ainda que, segundo a premissa da desconstrução, “tudo é texto”, nem tudo é passível de desconstrução a partir da habitação textual de sua composição enunciativa. O fato de que “sentido é uso”[15]

não significa que haja sentido puro, mas sim que sem uso não há sentido e, agora com a psicanálise, os sentidos podem ser falsas premissas de alguma verdade que se faz entender através dos mal-entendidos.

A clínica requer um corpo de palavras, e esse corpo é “construído”; no entanto, seria um equívoco pensar o corpo que habita a clínica sendo construído segundo alguma vontade totalizável, assim como o ponto feito por Apolo deixa metade do corpo original perdido por aí, no mundo; o corpo de palavras que condiciona a clínica é marcado a partir de um umbigo que a cada momento morde, belisca e arranha o corpo de sentido que se articula a seu redor e a propósito de si; é esse corpo (monstruoso) que habita a clínica. Em alguma medida, por isso, a articulação do regime significante que é o corpo da prática será marcada por saltos e rupturas decisivos, alheios e irredutíveis à análise lógica e/ou à desconstrução.

Retomemos, então, o exemplo do filho da puta. O sujeito pode ser um “filho da puta”, no sentido literal de ser efetivamente filho de uma trabalhadora do sexo; isso institui uma relação particular com a ofensa, e, por que não? com a língua. A chance de um filho da puta relativizar essa ofensa é quase nula na clínica, posto que a palavra o marca desde a cisão de campo de sentido definindo os polos agressividade versus ideal materno. O curto circuito entre o carinho maternal doméstico que marcaria os primeiros anos de vida e o regime social de uso dessa que é a ofensa predileta dos indignados nos estádios de futebol, pode recobrir a sexualidade materna de espinhos, fazendo do estereótipo o contra-senso e, por derivação, fonte de angústia e gozo. (Se ele não tiver tido carinho maternal doméstico consistente a cisão, ainda que incidindo de forma ligeiramente distinta, segue intensamente operante, e a angústia derivada pode ser ainda maior).

Pois bem: em termos de circulação social e caráter, o filho da puta tem grandes chances de ser menos merecedor da ofensa do que tantos outros sujeitos que não são concretamente filhos de uma profissional do sexo. Isso seria inclusive provável, se considerarmos que, atravessado por essa vinculação intensa à circunstância profissional de sua mãe, ele pode ser menos alienado ao recalque sexual avassalador sob o qual tantos homens evitam o sexo como traço pertencente ao corpo da mulher[16].

Temos claro que a construção do corpo clínico não se torna possível sobre a carne tenra e macia das ideias bem elaboradas, mas sim das cicatrizes e abcessos do corpo que se perde em sua performance para ser encontrado em uma construção “analítica”. Desta forma, pode-se dizer que os analistas vivem à caça da percepção de uma différance que torne a clínica basteadora de uma língua habitada e encarnada do afeto que a causa e condiciona. Ou seja, que o dizer ao outro seja encarnado de suas contradições, sem a precipitação em subsumi-las.

 

Considerações finais

 

Temos claro que há diversos ângulos a partir dos quais se pode propor uma aproximação entre desconstrução e psicanálise[17]. Muitos deles são certamente férteis e potentes. Nosso ponto não é desqualificar toda e qualquer aproximação entre desconstrução e psicanálise; é, na verdade, algo bem mais restrito e simples: há um campo onde psicanálise é certamente psicanálise, e certamente não é desconstrução – esse campo é a clínica. Mesmo aí, é certo que a desconstrução pode contribuir de forma indireta; mas não acreditamos que alguém possa com um mínimo de razoabilidade pretender ser um “clínico desconstrutor” ou qualquer coisa que o valha.

A razão principal para esse limite, em nosso entendimento, diz respeito às relações entre a linguagem e o afeto, no regime peculiar do encontro clínico e na forma como ele mobiliza o corpo presente dos membros da dupla analítica. O elemento articulador nesse regime é a transferência – é a partir de uma escuta da transferência que se pode habitar de forma produtiva o regime significante que acolhe a associação livre e a atenção flutuante, é a partir dela que se pode compreender e manejar o caso etc.; é a transferência, em resumo, que acolhe o trabalho psicanalítico.

Por fim, e para que nosso ponto fique o mais claro possível: sabemos que é possível tentar compreender o ofício do desconstrutor como sendo pautado pela transferência, caso se queira – hipotetizando uma “habitação do texto” ou uma “relação afetiva” do leitor com a leitura; na aplicação do arcabouço desconstrutivo ao campo da teoria literária, por exemplo, esse tipo de movimento é relativamente comum. Mas – e aqui retomamos e insistimos em nosso ponto – não faz sentido algum inverter a proposição e supor que a habitação da transferência na clínica psicanalítica seja um exercício desconstrutivo.

REFERÊNCIAS

 

CAPUTO, John (1997) Deconstruction in a nutshell: a conversation with Jacques Derrida. New York: Fordham University Press.

DERRIDA, Jacques (2008) Letter to a Japanese friend. In: Derrida, J.: Psyche: inventions of the other, volume 2. Stanford: Stanford University Press.

FRANCO, Wilson (2018) Os lugares da psicanálise: a inscrição clínica e cultural do pensamento psicanalítico. 2018. 231f. Tese (Doutorado em Psicologia) — Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

FREUD, Sigmund (1895/2016) Estudos sobre a histeria. São Paulo: Ed.Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund (1900/2006) Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Editora Imago.

FREUD, Sigmund (1911/2010) Análise de uma neurose infantil. São Paulo: Ed.Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund (1918/2010) Caminhos da terapia psicanalítica. São Paulo: Ed.Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund (1937/2018) Construções em análise. Rio de Janeiro: Editora Imago.

PLATÃO(2010). O Banquete. Porto Alegre: L&PM Pocket.

WITTGENSTEIN, Ludwig (1921/1968) Tractatus Logico-philosophicus. São Paulo, Companhia Editora Nacional.


 

 

* Rodrigo Alencar é psicanalista, doutor em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo, professor no curso de Sociopsicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

** Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco é psicólogo e psicanalista, doutor em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo, professor no curso de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



[1] Freud, 1919/1996

[2]Derrida, 2008, p.4

[2]Freud questiona se uma criança de um ano e meio, assimilaria em sua percepção uma imagem a princípio tão pouco óbvia, e também se isso ficaria marcado na memória de maneira tão nítida quanto o paciente relatava.

[3]Freud, 1918/1996

[4]1937/1996

[5] 1937/1996, pg. 330

[6]Freud, 1900/1996

[7]pág. 328 “cara eu ganho, coroa você perde”

[8]Como nos casos de Anna O. e Dora, por exemplo.

[3] A tese de um dos autores deste texto, inclusive (Franco, 2018), pode perfeitamente bem ser compreendida como uma habitação desconstrutiva da psicanálise, nos campos de sua inscrição cultural, institucional e no contexto da teoria da clínica.

[9] Caputo, 1996, ps. 31–32

[10] 1937/1996

[11]É certo que uma análise trabalha com um não-sentido, ou não-senso, mas esse trabalho requer bordas que sejam construídas artesanalmente, ou seja, na transferência com cada paciente, a abertura precisa ser feita com a precisão de um bisturi, não de um cutelo.

[12] 2010

[13]No original em inglês: “Whenever [deconstruction] runs up against a limit, [it] presses against it. Whenever deconstruction finds a nutshell—a secure axiom or a pithy maxim—the very idea is to crack it open and disturb this tranquility. Indeed, that is a good rule of thumb in deconstruction”.

[14] É claro que poderia se dar justamente o oposto, num caso em que o filho da puta recalcaria e sobreinvestiria a formação reativa, sendo nesta medida mais hipócrita que a média nesse campo; para os fins de nossa argumentação aqui, no entanto, essa possibilidade clínica não parece minar o argumento.

[15] 1932

[16] Wittgenstein, 1921/1968

[17] A tese de um dos autores deste texto, inclusive (Franco, 2018), pode perfeitamente bem ser compreendida como uma habitação desconstrutiva da psicanálise, nos campos de sua inscrição cultural, institucional e no contexto da teoria da clínica.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | ALENCAR, Rodrigo; FRANCO, Wilson de Albuquerque Cavalcanti (2020) Psicanálise e desconstrução: a clínica como o umbigo indesconstrutível da psicanálise. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -10, p. 14, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2020/12/09/n-10-14/>.