Antissemitismo e psicopatologia de massas

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[ Anti-semitism and mass psychopathology ]

por Ernst Simmel

Tradução | Gabriel K. Saito

SIMMEL, Ernst (1946) “Anti-semitism and mass psychopathology”. In: SIMMEL, Ernst (org.) Anti-semitism: a social disease. Nova York: International Universities Press, pp. 33-78.

I

A história tem provado que o antissemitismo — embora suas manifestações possam variar nas diferentes épocas — permanece, sobretudo, o mesmo através dos tempos, independentemente de mudanças estruturais da sociedade e das mudanças que os próprios judeus tenham sofrido. Este truísmo justifica ao que parece a visão do antissemitismo como um problema, ou melhor, como um subproduto da civilização. Pois é o processo civilizatório que, ao “passar por cima da humanidade” [passing over mankind], determina os valores éticos básicos e padrões sociais da comunidade humana.[1]

Surge a pergunta: é possível que a periódica expulsão dos judeus do mundo dos gentios seja um subproduto necessário da nossa civilização? A partir do estudo psicanalítico da formação do caráter, compreendemos que as ideias irracionais associadas aos impulsos de ação irracional atendem à necessidade do indivíduo de restaurar um equilíbrio psíquico patologicamente perturbado. Neste sentido, o caráter coletivo de uma comunidade, sua civilização, sofreria transtornos psicopatológicos, que geram o antissemitismo como um fenômeno de massa irracional? Para encontrar uma resposta para essa pergunta, devemos iniciar uma investigação da inter-relação entre antissemitismo e civilização.

Os grandes parlamentares que tiveram de lutar contra o antissemitismo como poder político sempre estiveram cientes de suas implicações mais profundas para a civilização. Em 1890, quando o antissemitismo alcançou representação oficial no Reichstag, Eugen Richter, um dos grandes parlamentares liberais alemães, disse: “Se permitirmos que esse movimento cresça, destruiremos os próprios pilares sobre os quais repousa nossa civilização”. Rathenau, ministro alemão de Relações Exteriores após a Primeira Guerra Mundial e descendente de judeus, assassinado por antissemitas, afirmou: “O antissemitismo é a invasão vertical da sociedade por bárbaros”.

Por preceito e exemplo, os alemães nos mostraram que o antissemitismo pode reverter o processo de civilização e reduzir a personalidade antissemita ao estágio original do canibalismo primitivo. Aplicando nosso método de pensamento psicanalítico-dialético, não devemos inferir que o antissemitismo aniquila as realizações da civilização, mas que o próprio processo civilizatório produz o antissemitismo, como uma formação patológica de um sintoma, que por sua vez tende a destruir o solo a partir do qual cresceu. O antissemitismo é um crescimento maligno no corpo da civilização.

O que é civilização? Freud nos mostrou que é um processo coletivo de desenvolvimento do caráter que, como ele o formulou, “passa pela humanidade” [passes over mankind], de maneira análoga ao desenvolvimento de caráter no indivíduo. Existe uma relação interna entre o desenvolvimento do caráter individual e o desenvolvimento do caráter coletivo. Antes que o indivíduo possa atingir o nível da sua própria civilização, ele deve primeiro repetir dentro de si mesmo, de maneira acelerada e abreviada, todas as fases históricas pelas quais sua cultura passou.

Portanto, se o antissemitismo é uma forma de regressão para um estágio anterior do desenvolvimento do caráter humano, pode significar uma entre três coisas: uma regressão aos estágios de desenvolvimento infantil do indivíduo antissemita; um desenvolvimento regressivo no processo coletivo de civilização; ou um distúrbio na interação entre o indivíduo e a civilização. Eu acredito que a terceira condição prevalece, como já indiquei acima. Considero o antissemitismo como um distúrbio psicopatológico da personalidade, que manifesta uma regressão ao estágio ontogenético e filogenético do desenvolvimento do eu quando o ódio, o antecessor da capacidade de amar, governava suas relações ambientais. É essa patologia do ódio da qual a raça humana sofre e que, assim como outras condições mórbidas, gera o antissemitismo.

Como psiquiatras clínicos, nosso primeiro esforço deve ser diagnosticar o transtorno psíquico [mental disturbance] do antissemitismo, estudando sua gênese e suas manifestações e, em segundo, direcionar nosso pensamento para ajudar o antissemita a se livrar de sua doença.

É claro que não existe tratamento psicanalítico individual para o antissemitismo; um antissemita nunca procurará ajuda psicanalítica por querer se livrar de seu antissemitismo. Acima de tudo, ele não tem conhecimento de sua doença e, portanto, não se considera doente. Pelo contrário, seu antissemitismo fornece a ele certos ganhos essenciais da doença. Isso lhe dá um sentimento de inflação do eu, de superioridade, pois ele pertence a uma comunidade com valores supostamente superiores, a comunidade dos não-judeus.

Somos capazes de tirar algumas conclusões sobre o antissemitismo pelo tratamento psicanalítico daqueles indivíduos que buscam nossa ajuda para doenças neuróticas graves e que também têm tendências antissemitas. A partir desses tratamentos individuais, chegamos a saber que, em certos casos, o complexo básico da ideia obsessiva individual presente no antissemitismo é o complexo homossexual latente, complexo que produz ódio como defesa contra os perigos do amor homossexual.

No entanto, seria um grave erro supor que um movimento de massa de apelo nacional e internacional como o antissemitismo possa ser criado pela cooperação de muitas mentes neuróticas. Diagnosticar o antissemitismo como uma neurose em massa não é completamente preciso. Indivíduos neuróticos nunca podem formar um grupo. A própria essência de uma neurose afeta o indivíduo com inibições e o torna antissocial, um estranho para o grupo. Certamente antissemitas não sofrem inibições. Por outro lado, é verdade que um indivíduo neurótico possa se apegar a um movimento de massa patológico existente e encontrar temporariamente uma pseudo-adaptação a uma realidade distorcida. Isso oferece a ele um canal para descarga parcial de energias pulsionais anteriormente interditas como tabu [tabooed]. Os neuróticos não podem criar nem sustentar o antissemitismo como um fenômeno psicopatológico das massas. Logo, o antissemitismo não é uma neurose em massa. Vamos investigar mais.

O indivíduo antissemita médio [average] parece ser uma pessoa relativamente normal e bem adaptada. Ele lida com seus negócios, cuida de sua família e assim por diante. Mas ele odeia os judeus e isso o faz se sentir bem ao saber que muitos de seus amigos compartilham seus sentimentos.

Ao tentar chegar a uma abordagem psicanalítica de uma compreensão do antissemitismo como um fenômeno de massa, desviaríamo-nos completamente se embarcássemos em uma investigação das várias acusações feitas contra o judeu [the Jew].

Podemos tomar como certo que muitos judeus têm características que muitos não-judeus não gostam; por exemplo, que os judeus tendem a usar seus potenciais intelectuais e não os físicos (pela simples razão de que seu intelecto é mais desenvolvido que o físico) e que, portanto, os judeus predominam em profissões nas quais as qualidades intelectuais são de importância decisiva. Estas características semelhantes podem explicar a causa original do antissemitismo? Certamente não.

Ao percorrermos a história, aprendemos que os traços de personalidade mencionados acima não são a causa, mas o resultado do antissemitismo. O povo judeu era combatente, agricultor e pensador, como membros de qualquer outro grupo nacional até a diáspora. Eles foram privados de utilizar suas energias físicas na luta pela autopreservação ao serem escravizados e encarcerados em guetos. Sem terra para cultivar, nem terra própria pela qual lutar, os judeus necessariamente desviaram suas energias normais e agressivas da pulsão para as descargas motoras externas ao seu intelecto — eu poderia dizer, à “motilidade interior” de suas mentes —, como a única arma que resta para enfrentar a vida.

Podemos ver que, quando os tabus são suspensos, a personalidade judaica não se desenvolve de maneira diferente de qualquer outro indivíduo. Nos jogos olímpicos de 1936, os competidores judeus venceram tantos eventos quanto os ingleses e, dos oito campeonatos mundiais de boxe, os judeus detêm cinco.

Em nossos tempos, é claro, estamos especialmente inclinados a pensar no antissemitismo como uma arma nas mãos dos políticos, como um estratagema na guerra política nacional e internacional, como um meio para um fim racional, ou seja, para enganar as massas sobre a origem de suas frustrações, desviar seu ódio reativo e agressões de seus governantes para os judeus como bodes expiatórios. O antissemitismo como força política não é tão antigo quanto pensamos; foi criado por volta de 1870. O antissemitismo como fator na política governamental e partidária iniciou-se na Alemanha e de lá se espalhou para outros países.

Nessa investigação, não podemos nos preocupar com o conteúdo das acusações políticas atuais contra os judeus, mesmo que essas falsas acusações tenham consequências fatais. O que nos interessa são as razões para a eficácia dessas acusações. O que torna essas acusações obviamente irracionais aceitáveis para a mente antissemita?

Do ponto de vista psiquiátrico, um fenômeno merece nossa atenção. Refiro-me ao fato de que, na Alemanha e na Áustria, pátria do antissemitismo político, as repercussões sobre os judeus tiveram, se assim posso dizer, um caráter relativamente civilizado, desde que a difamação dos judeus contivesse alguma referência a fatores reais, como por exemplo: os judeus não amavam seu país, ou que eles possuíam todo o dinheiro da terra, aspiravam a todas as posições de topo nas profissões eruditas, e coisas do gênero.

Nestas fases do movimento, o complexo antissemita aparentemente obteve satisfação adequada pelo fato dos judeus terem sido privados de certos empreendimentos realistas: foram-lhes negados cargos no governo e excluídos das carreiras universitárias; eles foram proibidos de se tornarem oficiais do exército e seus estabelecimentos comerciais foram boicotados. Em outras palavras, desde que o antissemitismo pudesse ser racionalizado em uma base político-econômica, os judeus não foram atacados fisicamente – eles não foram mortos. Somente quando essas racionalizações não eram mais sustentáveis, quando os sentimentos antissemitas se divorciaram dos conceitos da civilização atual, é que se seguiu a destruição física impiedosa e completa dos judeus.

A irracionalidade no conceito nazista de antissemitismo se manifestou pela primeira vez nas acusações de que os judeus eram culpados de dois crimes mutuamente contraditórios: por um lado, os judeus formavam o próspero capitalista e o plutocrático internacional, destinado a roubar todos os povos do mundo; e, por outro, formavam o anticapitalista comunista, vermelho e internacional, a fim de tirar todo o dinheiro dos capitalistas do mundo. O conceito de judeu como inimigo perdeu todo significado realista. O presidente Roosevelt se tornou judeu e os líderes ingleses da guerra também se tornaram judeus; em outras palavras, o judeu era onipresente, oculto em todos os inimigos da Alemanha atual. O judeu se tornou o inimigo absoluto. O progresso do antissemitismo nazista em direção à irracionalidade completa se manifesta na declaração de Hitler: “A baixeza do judeu se torna tão gigantesca que ninguém precisa se perguntar se entre nosso povo a personificação do Diabo, como símbolo de todo mal, assume a aparência viva do judeu”. Ao sucumbir a tais slogans, que não fazem referência às realidades atuais, a personalidade antissemita renuncia completamente à sua lealdade aos padrões atuais da civilização. As barreiras da repressão são levantadas; as forças pulsionais do ódio e da destruição primitivas desencadeadas. Os massacres judeus resultantes de hoje são uma repetição dos que ocorreram durante a Idade Média. Hoje, milhares de judeus são eliminados pela química demonizada; há quinhentos anos, foram queimados na pira. A acusação ilusória irracional permanece essencialmente a mesma: os judeus da Idade Média foram eliminados como discípulos do diabo, como representantes do anticristo.

O objetivo do material apresentado até agora foi mostrar onde a manifestação representacional do complexo antissemita perde referência à realidade — sua transformação gradual de uma ilusão em delírio [delusion] — determina a eventual descarga de energias irrestritas e destrutivas da pulsão.

Essa síndrome clínica: destrutividade agressiva irrestrita sob o fascínio [spell] de um delírio, em completa negação da realidade, é bem conhecida por nós como uma psicose; é a forma paranóica da esquizofrenia. Assim, o antissemitismo como fenômeno de massa parece não ser uma neurose de massa, mas uma psicose de massa.

Pode parecer contraditório fazer tal afirmação, porque afirmei anteriormente que o indivíduo antissemita, partícipe do delírio antissemita é, em geral, uma pessoa relativamente normal e bem adaptada. No entanto, a investigação a seguir dissipará tal discrepância, demonstrando que o próprio processo de formação do grupo, quando ocorre em condições patológicas, pode causar um delírio em massa, que por sua vez desintegra temporariamente o sistema do eu dos indivíduos do grupo.

Para fundamentar o diagnóstico do antissemitismo como uma psicose em massa, devemos embarcar em um programa de diversas investigações; devemos primeiro definir a essência da psicose individual e comparar suas características com as de uma psicose em massa, como o antissemitismo. Devemos nos perguntar o que causa um transtorno delirante da mente das massas, mas deixa a mente individual ainda intacta. Qual é a relação de um delírio, de massa ou individual, com impulsos de ação [action impulses]? No que diz respeito ao delírio antissemita, devemos despojá-lo de todas as racionalizações e descobrir sua relação com um complexo antissemita latente específico. E, finalmente, devemos tentar entender os mecanismos psíquicos que permitem que o antissemitismo se espalhe como uma doença infecciosa. Devemos investigar a psicologia da difamação e calúnia.

Ao voltar minha atenção para a psicose individual, não pretendo pesquisar toda a patogênese da esquizofrenia; meu interesse é exclusivamente um estudo daquelas manifestações que a psicose individual parece ter em comum com a psicose coletiva. Refiro-me ao sintoma do delírio e ao fenômeno da descarga irrestrita de agressões destrutivas.

Ao estudar esse aspecto da esquizofrenia, a saber, o papel das energias destrutivas da pulsão em sua patogênese, devo basear meu argumento na opinião pessoal sobre o caráter da pulsão de destruição que, em certa medida, difere do ponto de vista geralmente aceito. Minha teoria relaciona a destruição a uma pulsão de autoconservação e foi publicada sob o título “Autoconservação e pulsão de morte” [2]. Essa teoria nos permite entender melhor uma série de fenômenos psicopatológicos, entre eles o transtorno psicótico, no qual estamos aqui focando nossa atenção.

Entrarei na minha teoria apenas no que diz respeito ao nosso tópico. Introduzi na teoria psicanalítica da pulsão a pulsão de devorar no homem. Resumidamente, afirma: duas pulsões governam nossas vidas, uma pulsão erótica de amor, com o objetivo final de preservar a raça, e uma pulsão destrutiva e devoradora de ódio, com o objetivo de preservar o eu. Nossos ancestrais primordiais não eram apenas canibais. Todos nós entramos na vida com o impulso do instinto de devorar: não apenas comida, mas também todos os objetos frustrantes. Antes que a criança adquira a capacidade de amar, ela é governada por uma relação primitiva de ódio com seu ambiente. Nesse estágio, a tendência de devorar o objeto serve não apenas ao princípio somático, mas também à autoconservação psíquica. A destruição agressiva é o antecessor primitivo do processo psíquico da repressão. Pois, no desejo de incorporar um objeto também há o desejo de fazer com que esse objeto desapareça da percepção externa consciente, mediante a assimilação pelo próprio eu.

Vamos considerar agora as características de uma psicose. Uma psicose é especificamente precipitada por uma ruptura do eu com a realidade. A vida se tornou insuportável, porque apresenta ao eu conflitos que ele é incapaz de resolver. Uma ruptura com a realidade significa que o indivíduo retira seus investimentos pulsionais dos objetos de seu mundo atual e permite que seu eu fuja da realidade, regredindo emocionalmente a uma fase anterior de sua infância, o estágio do amor narcísico. Assim, o psicótico deixa de amar o objeto e ama apenas a si mesmo. A libido objetal se transforma em libido do eu narcísico. Essa superabundância de amor próprio narcisista explica a atitude megalomaníaca do psicótico, pela qual ele é capaz de negar o fato de ter sido derrotado na luta com a realidade.

O eu pré-mórbido do psicótico, em sua tendência à regressão, não para nesta fase do narcisismo, que chamamos de narcisismo secundário. É impelido a regredir mais profundamente, ao estágio do narcisismo primário, no qual é governado por sua pulsão destrutiva de autoconservação.

O processo de regressão está associado ao levantamento das barreiras da repressão. Esta liberação/concessão [release] da repressão permite que o material inconsciente entre no eu consciente e, assim, o eu fica sujeito a impulsos e desejos do mundo psíquico irracional interno chamado “realidade psíquica interna”. A própria repressão se torna regressivamente substituída pela agressão destrutiva.

O fato de o eu pré-mórbido do psicótico, em seu caminho de fuga da realidade, não poder arcar com o gasto de energia psíquica necessária para sustentar o mecanismo de defesa da repressão, deve-se a uma falha específica de desenvolvimento em seu processo de amadurecimento. Um eu é maduro se tiver desenvolvido um forte [strong] e eficaz supereu como representante internalizado do poder parental externo. O supereu, por um lado, ajuda o eu a testar a realidade e, por outro, a agir de acordo com este teste e, ao mesmo tempo, a afirmar-se no embate entre as demandas da realidade externa e as reivindicações da pulsão interior. No processo de deterioração do sistema do eu psicótico, o supereu sucumbe gradualmente ao id. Isso explica o fato de o eu perder sua orientação para a realidade, bem como a capacidade de diferenciar entre a realidade do objeto externo e a realidade psíquica irracional interna.

O psicótico vê o mundo dos objetos nos termos das imagens [imagery] irracionais de seu inconsciente. Em minha opinião, todas essas imagens que compõem o mundo dos psicóticos são essencialmente representativas de apenas uma figura, a dos pais. Os pais eram os representantes originais da realidade; e foi no conflito com os pais ou com os substitutos imaginários posteriores que o eu se danificou. Ele se rompeu porque não conseguiu resolver seu conflito de ambivalência, de amar ou odiar os pais.

Minha hipótese é que o eu psicótico tenha regredido ou vise regressar àquele estágio infantil de desenvolvimento quando não havia supereu, quando o seu poder governante ainda era representado pelos pais. O psicótico re-externaliza [re-externalizes] o seu supereu. Em vez de se identificar psiquicamente com um objeto parental, ele tende a atacá-lo e a devorá-lo. Assim, o psicótico tende não apenas a reverter o processo psíquico da repressão, mas também reverter o ato psíquico da identificação ao seu precursor primitivo, da incorporação real pelo devorar.

O psicótico, quando adulto, não depende mais da única e fraca arma da criança, herdada dos ancestrais animais, ou seja, dos dentes. Ele pode incrementar o seu arsenal de agressões com as mãos e aumentar sua destrutividade com facas e armas de fogo, também com alguns dispositivos mais modernos, como, por exemplo, as bombas-robô. Se ilustrasse visualmente minha hipótese de que a regressão psicótica – na forma primordial de morder como agressão – é operativa, eu mostraria uma imagem de Hitler quando ele se sente frustrado por seu desejo de destruição introjetiva: deitado no chão, furioso como uma criança e mordendo um tapete, porque não há judeu disponível para cravar os dentes.

Vamos agora olhar para a história do antissemitismo e investigar em que aspectos essa suposta psicose de massa é semelhante ou de que maneira difere da psicose individual. A relativa incapacidade de se adaptar à realidade, que precipita todos os transtornos psíquicos, depende de uma “série complementar” de fatores causais. Para ser explícito: ou as condições externas da realidade sofrem mudanças tão catastróficas que até um eu relativamente normal se rompe, ou o eu é tão fraco – por disposição pré-mórbida – que até frustrações relativamente menores de objetos o levam a escapar pela via [avenue] da regressão infantil. A causa precipitante da psicose em massa do antissemitismo encontra-se no fim da realidade da série complementar.

O antissemitismo sempre foi flagrante quando a segurança do indivíduo ou da sociedade estava abalada por eventos catastróficos. O pânico decorrente da incapacidade das pessoas de dominar a realidade sempre foi a causa subjacente do refúgio em delírios antissemitas e do envolvimento em orgias de ódio e destruição.

O conteúdo manifesto das acusações antissemitas tem assumido várias formas, correspondendo aos conceitos atuais e ao estado de esclarecimento do público em geral. Nos tempos medievais, quando as nações eram dizimadas por pragas e nada sabiam sobre infecções bacterianas, os judeus eram acusados de envenenar os poços. Em nossos dias, quando as existências econômicas individuais estão desmoronando e as classes médias da Europa estão passando por um processo de proletarização, as pessoas, ignorantes das leis sociológicas que operam nesses processos econômicos, acreditam nas acusações de que os judeus estão roubando sua parte e estão acumulando todo o dinheiro do mundo. Assim, o antissemitismo, como a psicose individual, é precipitado por uma ruptura com a realidade.

Para reiterar, o indivíduo antissemita não é um psicótico – ele é normal. Somente quando ele se junta a um grupo, quando se torna membro de uma massa, ele perde certas qualidades que determinam a normalidade e, assim, torna-se fundamental para ajudar a produzir uma ilusão em massa, crença na qual é compartilhada por todos os outros membros do grupo. Portanto, nossa próxima pergunta deve ser: por que uma massa, como entidade, pode sentir e agir como um psicótico?

As respostas nos foram dadas por LeBon e por Freud. Eles nos ensinaram porque a submersão do eu individual no eu coletivo de um grupo é e sempre foi uma das vias mais diretas de fuga da tensão de uma realidade insuportável e incompreensível.

LeBon foi o primeiro a descobrir que nos tempos modernos “o homem da multidão está em marcha“. Ele afirma isso com medo e desprezo, porque não conhecia as causas mais profundas desse fenômeno, que foram posteriormente esclarecidas por Freud. A vida do homem em nossa civilização é extremamente difícil de suportar, porque o indivíduo deve viver “além de seus meios psíquicos”, ou seja, por um lado, não possui gratificações e sublimações suficientes para o desejo de amar e, por outro, ele não tem meios suficientes para descarregar as tendências destrutivas, precipitadas por suas frustrações.

LeBon ressalta que o indivíduo moderno, em grau crescente, tem a tendência de desistir da vida como indivíduo e de submergir seu eu em uma multidão. Ele não menciona o antissemitismo, mas expressa o medo de que o espírito de multidão do homem moderno traga a destruição da civilização

Strecker, um psiquiatra moderno, investiga a predisposição atual a essa mentalidade de multidão e descobre que nossa adaptação à realidade de hoje é apenas frouxa e é principalmente uma pseudo-adaptação, mantida por uma série de mecanismos de fuga, que permitem uma negação da realidade. O título de seu livro, Além das fronteiras clínicas [Beyond the Clinical Frontiers], implica que há muita insanidade fora de nossas salas de tratamento e hospitais. Isto indica que o chamado indivíduo normal, que deseja desistir de seu eu individual, realmente não tem muito mais realidade para se apegar do que o psicótico, porque seu trabalho não lhe dá oportunidade de sublimação. Ele diz mais:

É interessante especular sobre o que o paciente psiquiátrico [mental patient] pode dizer em sua própria defesa, se ele tiver um dia no Tribunal de Higiene Mental[3]. Caso um paciente esquizofrênico discuta a questão da realidade versus a irrealidade […] ele pode trazer algumas questões embaraçosas. Não seria possível que na individualidade do paciente psiquiátrico […] haja um protesto inconsciente e nesse protesto uma lição? Talvez um segmento desse protesto seja contra um esquema da civilização industrial padronizada, tão eficientemente padronizada que dezenas de milhares de seres humanos são enumeradas entre os afortunados, porque têm a oportunidade de empurrar um pedaço de lata sob uma máquina que fará alguns furos nela, ou talvez a chance de anexar uma pequena parte a algo destinado a se tornar um automóvel, quando passa diante deles em uma correia giratória. [4]

Na estrutura de nossa “civilização industrial padronizada”, o trabalho em si está perdendo seu objetivo principal de manter o contato do indivíduo com a realidade. Em vez disso, tende a diminuir seu contato com a realidade e torná-lo uma presa mais fácil da “alma da multidão[5]” [crowd-mind].

Como LeBon explica a alma de multidão das pessoas? Permitam-me citar algumas passagens:

O homem como indivíduo é impotente. Dentro da massa, ele se torna poderoso. Por este sentimento de poder avassalador, o membro do grupo não consegue imaginar obstáculos no caminho de seus impulsos de ação. Ele sente que — o que quer que faça — a impunidade lhe está assegurada. Assim, a massa vagueia pela fronteira do inconsciente, porque é governada por impulsos instintivos de destruição e selvageria, que dormem em cada um de nós.

Vamos traduzir a linguagem de LeBon para a nossa terminologia psicanalítica. Ao se tornar um membro da massa, o indivíduo “joga fora toda a sua responsabilidade interior”; isso implica que o homem da multidão larga mão da aliança com seu supereu individual. Ele se torna o filho daquele período em que o único medo que tinha era o do poder externo de seus pais. Esse pai [parent] externo não pode mais puni-lo porque, junto com a massa, aquele se tornou tão poderoso quanto o pai.

“A massa que vagueia pela fronteira do inconsciente, governada apenas por impulsos instintivos de destruição” conota: o membro individual da multidão não precisa mais reprimir suas pulsões destrutivas infantis e primordiais, pois se sente seguro da punição. Ele pode se entregar à gratificação da pulsão, em vez de fazer renúncias pulsionais.

Assim, ao se identificar com a massa, o indivíduo em sua retirada da realidade emprega o mesmo mecanismo de fuga que o psicótico, isto é, a regressão àquele nível infantil de desenvolvimento do eu quando o supereu ainda era representado pelo poder parental externo.

No entanto, por meio dessa regressão temporária, ele obtém uma vantagem que o indivíduo psicótico não possui. A submersão de seu eu no grupo permite que ele supere sua impotência infantil em relação à realidade; ele alcança a liberdade pulsional com o poder de um adulto. Essa circunstância lhe permite, por meio de uma psicose de massa, retornar à realidade, da qual o psicótico individual deve fugir.

LeBon, sem saber o que é o inconsciente, viu e descreveu corretamente sua manifestação na condição psíquica da massa. Ele afirma:

A massa se encontra na situação de alguém adormecido, cuja capacidade de pensar está suspensa para que em sua mente apareçam imagens de grande intensidade. Na massa, não é o que é real que conta. Somente o irreal importa. A multidão é incapaz de distinguir subjetividade de objetividade. A multidão pode pensar apenas em imagens e uma imagem precipita uma série de outras imagens sem conexão lógica. A multidão é incapaz de adiar impulsos de ação, porque é incapaz de pensar entre impulso e ação.

O que LeBon descreve nada mais é que o homem da multidão pensa e age completamente sob o feitiço [spell] dos processos primários do inconsciente, ao invés de responder às categorias de lógica, ética e estética que governam nossa mente consciente. A mente consciente de cada membro da multidão está sob o domínio dos processos de condensação e deslocamento, que operam na formação de imagens visuais percebidas normalmente em sonhos e patologicamente em alucinações.

LeBon não conseguiu responder às perguntas: Quais são realmente os laços psicológicos entre os membros individuais da massa, por que eles sentem que todos pensam e querem a mesma coisa? Sua sugestão para uma “infecciosidade” especial de insanidade não nos diz muita coisa, e estamos ainda menos inclinados a seguir seu argumento quando ele considera como prova de sua suposição do caráter contagioso da psicose, que as pessoas que lidam profissionalmente com psicóticos se tornam loucas ou, como ele disse, que encontramos tanta insanidade “entre os psiquiatras”.

À Freud devemos nossa compreensão do processo psicológico que resulta na unificação do grupo, manifestando-se na fusão de ideias e impulsos de ação. É um processo de identificação que cresce a partir de laços homossexuais mútuos e latentes entre os membros individuais do grupo.

LeBon não percebeu que estava descrevendo o fenômeno da formação de um grupo patológico. Eu chamaria de grupo de formação normal, se o objetivo por trás da tendência de formar um eu coletivo poderoso, substituindo a fraqueza do eu individual, fosse sublimar energias pulsionais agressivas para um objetivo consciente e construtivo comum; e chamaria de formação de grupo patológico quando surgir da necessidade de dotar o indivíduo impotente da capacidade de descarregar energias pulsionais, destrutivas, irrestritas e não sublimadas com um objetivo em si mesmo, uma necessidade resultante de uma ameaça à pulsão de autoconservação do eu.

A “alma das multidões” que LeBon descreve não é a manifestação de uma formação de grupo normal, mas sim patológica. Com essa restrição em mente, concordo plenamente com ele quando afirma: “Uma massa, sob a condição de ações encurraladas, encontra-se à beira da ira [rage]”.

Com Freud, aprendemos que existe um segundo fator que consolida os egos individuais dos membros do grupo em um eu coletivo. Esse fator é a existência do líder do grupo e a aceitação desse líder pelos egos dos membros do grupo, como seu representante parental externo, substituindo seu supereu interno individual. Em sua capacidade de supereu coletivo, o líder é capaz de fundir a massa em um eu de grupo que desencadeia ou restringe descargas afetivas da pulsão, em conformidade com sua vontade. O líder assegura a lealdade de seus seguidores, fornecendo-lhes um objetivo externo para a agressão reprimida.

Resumindo os paralelismos entre uma psicose coletiva e uma psicose individual, podemos dizer: a massa e o psicótico pensam e agem irracionalmente, devido aos sistemas do eu regressivamente desintegrados. Na mente psicótica individual, o processo de regressão é de natureza primária e é constante. Na mente psicótica coletiva, a regressão é secundária e ocorre apenas temporariamente. A razão para isso é que, no psicótico individual, o eu rompe com a realidade por causa de sua fraqueza patológica, enquanto que, no indivíduo da massa, a realidade rompe primeiro com o eu. Submergindo em uma massa patológica, este eu se salva da regressão individual regredindo coletivamente. A fuga para uma psicose em massa é, portanto, uma fuga não apenas da realidade, mas também da insanidade individual.

Esse insight nos dá a resposta à enigmática pergunta: por qual motivo indivíduos aparentemente normais podem reagir como psicóticos sob o fascínio da formação de massa? O eu deles é imaturo por resultado da fraqueza do supereu. O indivíduo imaturo que, sob o estresse das circunstâncias ambientais, está prestes a perder o contato com a realidade, pode encontrar seu caminho de volta quando seu eu, carregado pelo espírito do grupo, encontra oportunidade para a descarga de energias pulsionais, agressivas e reprimidas no mundo objetivo.

O homem da multidão antissemita, pela primeira vez em sua vida, consegue encontrar uma solução temporária de seu conflito de ambivalência latente com os pais. Por meio da participação no eu coletivo da multidão, ele pode dividir em dois o poder dos pais (re)externalizados: no líder a quem ama e no judeu a quem odeia.

Freud demonstrou que as energias psíquicas das quais construímos o poder intrapsíquico de nosso supereu derivam principalmente da introversão de energias agressivas reprimidas, especificamente aquelas que fomos forçados a desviar [deflect] de nossos pais. O eu permite que essas agressões introvertidas “sejam transferidas para o supereu”; ao se submeter a esse pai interior, percebe suas agressões como “dores [pangs] de consciência”, como sentimentos de culpa. No processo de re-extrojeção do seu supereu, o antissemita tem a oportunidade de redistribuir suas energias agressivas da pulsão. A dedução lógica e psicológica dessas premissas é, portanto que, ao escolher o judeu como objeto de seu ódio, seu eu assume o privilégio de atacar esse supereu, para puni-lo, em vez de ser punido por ele. Portanto, não provocará surpresa se afirmarmos que o judeu, como objeto do antissemitismo, representa a má consciência da civilização cristã.

Essa interpretação oferece uma abordagem para a compreensão da psicologia da falsa acusação. Acusar alguém em vez de a nós mesmos alivia-nos do sentimento de culpa subjetiva e é um mecanismo de defesa psíquico contra o reconhecimento de nossa própria culpa. Isso é típico do processo de projeção, o mecanismo de defesa tão essencial ao psicótico, em seu esforço para negar a realidade. Discutir em detalhes a importância do meu conceito de re-extrojeção [re-extroversion] do supereu no processo de defesa da projeção estaria além do escopo deste artigo. Basta afirmar que o processo psíquico específico que acabamos de descrever traz uma redistribuição de energias agressivas. Desse modo, o antissemita projeta no judeu as agressões desviadas de seu próprio eu, poupando-se assim da percepção de culpa.

Os massacres dos judeus sempre foram precedidos por um período de incitação de turba [rabble-rousing period] durante o qual o judeu é acusado dos mesmos crimes que o antissemita está prestes a cometer. Antes que o homem da multidão se submeta a roubar os judeus, destruindo seus símbolos religiosos, mutilando seus corpos e estuprando suas mulheres, ele os acusa dessas atrocidades.

Podemos chamar acusações falsas de “racionalizações” de impulsos instintivos agressivos. Mas qual é o processo psicológico por trás de tais racionalizações? O período de acusação, isto é, de difamação e calúnia, é a primeira fase do ciclo que se completa com a liberação de agressões corrosivas [biting aggressions] e a destruição devoradora. Destruir a reputação de nossos companheiros-colegas, difamando-os como indignos de participar de nossa cultura, é o substituto refinado na rotina urbana para devorá-los, de fato. Não considero mera coincidência que o veículo da fala, empregado para difamar uma pessoa, seja o mesmo órgão usado para comer. Nos dois casos, os executores musculares que participam do ato de agressão são a boca e os dentes. No vernáculo alemão, dizemos que uma pessoa que difama outra pessoa “rasga-a com os dentes”[6]. Em inglês coloquial, uma expressão para difamar é “backbiting[7].

Portanto, não surpreende que o indivíduo antissemita se preocupe pouco com o conteúdo de suas acusações e calúnias, desde que atendam à sua necessidade de descarregar as suas agressões. Além disso, o antissemita acredita em suas falsas acusações contra os judeus não a despeito dessas, mas por causa de sua irracionalidade. Pois o conteúdo representacional dessas acusações é um produto do processo primário em seu próprio inconsciente e é transmitido a sua mente consciente através da mediação das sugestões do líder de massa. Como indiquei, o líder de massa representa o pai amado, em quem a criança precisa acreditar para sua própria segurança.

Como se estivesse antecipando a Hitler, LeBon descreve o líder da seguinte maneira: “O halo [nimbus] do líder é sustentado apenas se o que ele diz é irreal, incompreensível, para além de discussões. A massa pode acreditar somente no que ele diz quando seu discurso apela meramente a crenças, e não à aprovação por argumentação”.

Aceitar a difamação de alguém e transmiti-la a outros significa participação em um pogrom verbal. A circunstância que transforma um pogrom de palavras em um pogrom de ação depende da razão da potência real [actual power ratio]. Nas situações em que o antissemita está na multidão, ele sempre mudará de agressões representacionais para agressões físicas, porque em cooperação ativa com a massa, a maioria, ele alcança um poder muscular braçal [brachial] superior sobre o judeu como minoria. Assim, o antissemita se torna o pai, e o judeu, o filho, sobre quem ele pode desafogar as agressões originalmente destinadas a seus pais.

O conteúdo representacional de uma acusação irracional é o que chamamos de delírio de perseguição. Neste artigo, devo me abster da discussão detalhada sobre a gênese e a função econômica psíquica de um delírio e me restringir a algumas declarações breves. A contraparte normal de um delírio é a alucinação ilusória de nossa vida onírica. Freud supunha que a hiperatividade de nossa vida de fantasia irracional nos sonhos é precipitada pelo bloqueio biológico de descargas motoras externas, decorrentes da condição fisiológica do sono. Uma vez que nos sentimos seguros de representar nossos impulsos proibidos, entregamo-nos a sonhá-los como se fossem reais. No delírio do psicótico, o sistema psíquico parece modificar esse processo. A fantasia superestimulada libera o bloqueio dos centros motores externos e a má interpretação ilusória [misinterpretation delusional] da realidade fornece um meio de descarregar energias pulsionais, anteriormente inibidas no mundo exterior. Como já foi indicado, o psicótico individual e o psicótico de massa retornam ao mundo externo dos objetos com a ajuda de seu delírio.

Aprendemos com Freud que, no mundo imaginário dos psicóticos, o delírio é encontrado como um remendo “naquele local onde originalmente havia uma ferida [tear] na relação entre o eu e sua realidade externa”. Minha teoria complementa essa formulação assumindo que esta ferida tem um princípio duplo: uma ruptura concreta com a presente realidade e uma ruptura primária no passado, quando a “realidade” era concebida somente por intermédio dos pais. Naquele momento, a criança falhou, por um lado, em internalizar psiquicamente o poder dos pais e, por outro, sentiu-se impelida a retirar seu investimento pulsional do objeto dos pais, devido à perigosa natureza agressiva-destrutiva deste investimento.

O delírio paranóico específico da perseguição reflete claramente a mudança de um conflito eu-supereu interno para um conflito eu-objeto externo. A atitude do paranóico em relação ao perseguidor vacila entre medo e fuga, por um lado, e rebelião e ataque, por outro. Seu medo do perseguidor repõe [replaces] o seu antigo sentimento de culpa e substitui a agressão pela culpa. Esta é a situação delirante do antissemita que deve perseguir o judeu, porque ele se imagina perseguido pelo judeu.

Sem dúvida, surgirá uma objeção de que existem muitos indivíduos que acreditam numa perversidade dos judeus, sem aderir ao movimento de massas antissemita. Minha resposta é que esses indivíduos estão engajados intelectualmente no antissemitismo como um movimento de massa. A ideia antissemita é substituta ao líder. As declarações do líder [spoken word] são substituídas pela propaganda, veiculada nos jornais e folhetos. Essa propaganda é fundamental para colocar o eu consciente do antissemita, sob a influência de seu inconsciente irracional. É característico desses antissemitas intelectuais que seu delírio é efetivo apenas como delírio de massa e não pode ser sustentado individualmente sob o teste da realidade. É por esse motivo que o antissemita intelectual mais apaixonado pode sinceramente garantir que, apesar de odiar os judeus coletivamente, “alguns de seus melhores amigos são judeus”.

Uma afirmação feita por Freud é um tanto embaraçosa; a saber, sua afirmação de que a crença firme do psicótico em seu delírio é identificável, em certa medida, pelo fato de que essencialmente ela deve repousar em alguma verdade psicológica. Pode ser basicamente verdade que os judeus, sem saber, são os personagens perversos que o antissemita acredita que sejam? Qual é a verdade psicológica?

A resposta a essa pergunta desconcertante deve ser buscada em uma investigação do desenvolvimento histórico do complexo antissemita. Se a verdade psicológica do delírio antissemita não puder ser encontrada nas condições atuais, podemos encontrar a pista estudando o antissemitismo como um movimento histórico que “passou sobre a humanidade” [passed over mankind] junto com o processo da civilização. A abordagem psicológica para esse problema seria retirar as acusações antissemitas de suas racionalizações temporárias e investigar o que é específico e atemporal nelas.

Ao longo dos séculos, certas acusações específicas persistiram: primeiro, a acusação de que os judeus mataram Cristo; e segundo, os chamados libelos ou acusações de sangue. Por esses supostos crimes, os judeus morreram aos milhares. A segunda categoria inclui o crime de perfurar as hóstias sagradas nas igrejas para que elas sangrem; e o crime do ritual de assassinato na Páscoa [Easter], no qual os judeus roubam crianças cristãs e as matam para usar seu sangue em suas festas cerimoniais[8].

Que essas acusações são irracionais está fora de discussão. Se aceitarmos como fato histórico que alguns judeus mataram Cristo no início da era cristã, ainda é irracional desejar punir os judeus contemporâneos por um crime cometido por outros judeus há dois mil anos. Procurando a verdade psicológica nessa acusação, nós, como psicanalistas, devemos inferir que ela, assim como as outras acusações, tem um significado simbólico, ou seja, representa outra coisa.

Vamos tentar formular uma interpretação psicanalítica da atitude irracional do antissemita que acredita que o judeu de hoje deve ser punido com a morte pela crucificação de Cristo. A implicação é que os judeus de hoje cometeram um crime idêntico. Qual é o crime idêntico? É a negação de Cristo. Cheguei a essa conclusão pelo fato de que na Idade Média um judeu que foi condenado a ser queimado na fogueira poderia salvar sua vida confessando: “eu aceito Cristo”. A negação de Cristo deve ter sido concebida como uma repetição de seu assassinato, equivalente a uma negação de sua ressurreição.

Lembrando nossa interpretação anterior de acusação como uma projeção da culpa, suspeitamos que os cristãos que odeiam judeus acusaram estes de um crime que eles mesmos haviam cometido. Ao acusar o judeu de perfurar a hóstia sagrada e fazê-la sangrar, os cristãos antissemitas simplesmente demonstram que para eles a hóstia significa o corpo real de Cristo. O fato de poder sangrar quando um judeu a perfura prova que, para o antissemita, a hóstia sagrada não se tornou um símbolo alegórico, mas permaneceu um símbolo de que Cristo ainda vive. Assim, o antissemita acusa o judeu de repetir o crime primordial do parricídio diante de seus olhos: ele acusa o judeu do crime que ele próprio inconscientemente comete quando come a hóstia sagrada. É um ato de incorporação que lhe proporciona uma descarga de sua tendência devoradora de ódio e, posteriormente, permite que ele se identifique psiquicamente com Cristo no amor.

Por trás da cerimônia da sagrada comunhão, o antissemita luta para manter reprimidas suas reais tendências devoradoras. No entanto, o próprio fato da existência do judeu impede que ele o faça. A crença no sangramento da hóstia sagrada expressa seu próprio desejo inconsciente de profanação e sinaliza o retorno do recalcado. Aqui reside a explicação de porque o judeu deve morrer: através dos mecanismos de deslocamento e projeção, a culpa do antissemita é transferida para o judeu.

Mas onde encontramos a verdade psicológica na acusação antissemita de que os judeus matam a Cristo uma e outra vez? Para descobrir essa verdade, devemos investigar a terceira acusação, a do assassinato ritual: os judeus roubam pequenas crianças gentias na Pessach [Passover[9]] e as matam, porque a religião judaica prescreve o consumo de sangue cristão nas refeições rituais da Pessach.

A essência da acusação é que os judeus incorporam sangue cristão de acordo com o ritual na celebração da Pessach. Ficamos imediatamente impressionados com a semelhança desse suposto crime judaico com o ritual cristão da sagrada comunhão. O antissemita novamente acusa o judeu de realmente fazer o que ele próprio faz simbolicamente. Contudo, para chegar à verdade psicológica nessa acusação específica, precisamos primeiro esclarecer por que os corpos de crianças cristãs, supostamente usadas para a refeição ritual dos judeus, representam o próprio Cristo no inconsciente do antissemita. Obviamente, não é por acaso que os judeus são acusados desse “crime” em conexão com a celebração da Pessach que, como é sabido, ocorre ao mesmo tempo em que os cristãos celebram a Páscoa, a ressurreição de Cristo.

Há alguma justificativa para a interpretação do antissemita da cerimônia de Pessach judaica como um assassinato ritual prescrito? Uma compreensão psicanalítica da verdade psicológica pode ser alcançada empregando o método de Freud de examinar a história de um mito, isto é, estudando as mudanças e distorções às quais esse produto da fantasia humana foi submetido ao longo do tempo.

No festival da Pessach, os judeus comemoram seu resgate da escravidão no Egito; especificamente, eles renovam a memória da maneira como foram resgatados. A palavra hebraica “Pessach” está traduzida corretamente “Passover” [em inglês] e refere-se à visita do Anjo da Morte, que deveria pular ou “passar sobre” [pass over] as casas dos judeus. Enviado por Deus para matar todos os recém-nascidos dos egípcios, esse anjo não viria a matar nenhum judeu. Como ele poderia evitar cometer um erro matando bebês judeus, tal como bebês egípcios?

Antecipando essa possibilidade, o Senhor ordenou aos judeus que abatessem cordeiros e, com o sangue do cordeiro, fizessem sinais vermelhos nas ombreiras das portas. O anjo respeitou esses sinais e “passou sobre” as casas judaicas. Dessa maneira, os judeus salvaram a vida de seus filhos, ou seja, da geração seguinte e preservaram os judeus de todos os tempos. Em outras palavras, o que os judeus celebram na Pessach é a sua sobrevivência através do sacrifício, isto é, o “pogrom” de cordeiros inocentes.

Pertence à refeição ritual exibir em um prato vários elementos, para que sirvam de lembrete das dores que os judeus sofreram quando foram expulsos do Egito. Neste prato está um osso de cordeiro assado, um lembrete vestigial dos cordeiros sacrificados para a sobrevivência dos judeus, e que foi prescrito como a carne essencial a ser consumida em Canaã para celebrar sua sobrevivência. Histórica e psicologicamente, é correto interpretar o ritual de comer cordeiro como uma repetição do massacre generalizado desses animais no Egito. Assim, os judeus devoram “filhos” durante a refeição ritual da Pessach, mas são os filhos dos animais que eles comem. E hoje eles ainda aderem a esse “crime” de maneira simbólica. Aqui temos em parte a verdade psicológica da acusação do antissemita[10].

A verdade psicológica estaria completa se pudéssemos equiparar o cordeiro do Pessach a Cristo. Informações significativas sobre esse ponto podem ser encontradas nos volumes publicados em 1748 por Bodenschatz, um professor deveras acadêmico da teologia cristã, que fez ao longo da vida um estudo dos ritos religiosos judaicos. Dois fatos que esse biblicista descreve são de importância psicanalítica. Primeiro, os judeus celebraram o Pessach pela primeira vez no Egito, imediatamente antes de migrarem; segundo, depois de concluir com êxito sua migração pelo deserto, eles observaram o costume pagão de sacrificar animais em sua celebração da Pessach.

Quando os judeus celebraram sua primeira Pessach no Egito, despertaram notável animosidade dos egípcios, porque cometeram um crime religioso nacional pelo massacre em massa de cordeiros. O cordeiro era o filhote do carneiro, sagrado para os egípcios, pertencente à família de seus animais totens. A quintessência do festival da Pessach, após a migração segura pelo deserto, consistiu em um abate coletivo e o consumo em massa de cordeiros. O sangue e as entranhas dessas centenas de cordeiros foram coletados pelos sacerdotes e derramados sobre o altar, para serem queimados em honra a Deus. De acordo com o comando divino, nada deveria restar dos corpos desses cordeiros. Além do sangue e das entranhas dos cordeiros, outros animais deveriam ser inteiramente queimados; entre eles havia sempre um carneiro, como uma lembrança aos judeus que eles estavam comendo o totem animal dos egípcios. Os judeus devoraram o estranho “deus” para agradar aos seus. A maneira original de conduzir a cerimônia não deixa dúvidas sobre o significado da destruição coletiva de cordeiros por meio de incorporação, como pré-requisito para a completa submissão ao Deus Hebraico.

Durante esse massivo derramamento de sangue, os judeus foram instruídos a cantar a grande Aleluia (Salmos 115-128), que contém uma solene confissão de Deus como o poder onipotente, que controla e direciona seus pensamentos e ações. A cerimônia é ao mesmo tempo uma expressão de gratidão a Deus; nas palavras do Salmo de Davi (124): Ele resgatou os judeus “dos dentes do inimigo”, pois de outra forma, em seu ódio, eles teriam “devorado os judeus vivos”

Vamos examinar o significado do cordeiro abatido e comido coletivamente pelos judeus em Canaã e simbolicamente consumido por eles na atualidade para celebrar a Pessach. Jesus Cristo também é representado simbolicamente pelo cordeiro, o cordeiro da inocência, portador da culpa universal da humanidade. Bodenschatz não deixa dúvidas de que o cordeiro que os judeus comem solenemente na Pessach é idêntico ao cordeiro que simboliza Jesus Cristo. Ele chegou a essa conclusão como resultado de uma investigação científica e teológica aprofundada do mandamento específico de Deus de que os judeus não deveriam ferver o cordeiro, e sim assá-lo para a refeição cerimonial. Depois de examinar toda a literatura sobre o assunto, ele rejeitou as várias racionalizações como justificativas e resumiu suas conclusões: Deus “viu neste cordeiro Jesus Cristo”; por esta razão “os judeus deverão assar o cordeiro”[11]. Em Sua onisciência, Ele antecipou que Cristo seria “assado na cruz pelo fogo da ira do Pai celestial e por Seu fogo de amor por toda a raça humana”. Vemos que Bodenschatz identifica a crucificação de Cristo com a assadura do cordeiro. Ninguém poderia interpretar mais adequadamente o ato de devorar coletivo como uma tentativa da humanidade de resolver seu conflito de ambivalência, de amalgamar suas paixões ardentes de “ira” [wrath] e amor – isto é, de ódio e amor.

A verdade psicológica está completa. Ao comer cordeiro na Pessach, os judeus repetiam o crime primário de consumir o deus totem animal do país em que haviam vivido. Originalmente, o cordeiro fazia parte do grupo de animais sagrado para os egípcios; depois se tornou o símbolo de Cristo. O inconsciente do antissemita transformou o ritual de comer cordeiro na Pessach em seu equivalente simbólico: o de devorar o “cordeiro Jesus”, o filho de Deus. Quando o antissemita acusa os judeus de consumir o sangue de crianças cristãs na Páscoa, ele inconscientemente identifica essas crianças com o Cristo ressuscitado.

O antissemita acusa o judeu de incorporar o Cristo fisicamente, para evitar sentir culpa pela prática desse mesmo pecado. A civilização moderna, o caráter coletivo, exige que o caráter individual dissolva o ódio, bem como outras tendências destrutivas e devoradoras no ato psíquico de identificação.

Como agentes do processo civilizador que “passa sobre a humanidade”, todas as religiões tentaram cumprir sua função, fornecendo gratificação simbólica pelo instinto humano de devorar. Aparentemente, essa saída substituta permitiu à humanidade se submeter a um agente intrapsíquico de controle da pulsão.

A específica contribuição que a religião judaica deu ao processo de civilização da humanidade parece ter causado um trauma psíquico coletivo específico. Ao abolir os sacrifícios de animais, a religião judaica abandonou os últimos remanescentes das festas totêmicas dos primitivos, privando assim os judeus (e eventualmente a humanidade) de canais periódicos para extravasar suas energias destrutivas reprimidas. Os judeus se concederam um período de transição em seus sacrifícios e em seu enredo do bode expiatório (e seu substituto, o cordeiro), mas acabaram exigindo submissão não a um Deus em particular, mas à lei de Deus. Como Freud colocou, os judeus, declarando Deus invisível, deram o estímulo inicial à espiritualidade na religião. Em outras palavras, diríamos: ao tornar-se invisível, Deus foi transformado de uma imagem parental material para um supereu espiritual coletivo. Esta foi a grande contribuição dos judeus para a humanidade no limiar da civilização; também um crime, pois exigiam maior sacrifício psíquico do que a raça humana pode se permitir.

O cristianismo reintroduziu, por assim dizer, as festas primitivas do totem de maneira simbólica. O judeu não participou dessas festas coletivas; ele expressou desaprovação à pulsão devoradora, colocando o tabu de “unkoscher” [impuro] na comida cristã.

O cristão médio dos tempos modernos alcançou sua própria espiritualidade, participando da sagrada comunhão como um ato de apreço puramente alegórico — uma internalização simbólica do mandamento de Cristo, representando a voz interior da consciência, a qual ele deve obedecer a fim de permanecer aceitável para a civilização.

O cristão antissemita ainda precisa reencarnar o animal totêmico primitivo. Ele deve encontrá-lo na terra para desafogar suas agressões destrutivas reprimidas. Por causa disso, ele criou o judeu na forma do diabo, o deus do ódio coexistente com o deus do amor. O judeu deve assumir o papel do cordeiro inocente, carregando o ódio acumulado que até agora não foi absorvido no percurso da civilização cristã. O antissemita que tortura e mata o judeu reencena de fato a crucificação de seu Salvador.

O antissemitismo é uma indicação de que nosso desenvolvimento de caráter coletivo e individual não conseguiu civilizar totalmente a humanidade. O homem é civilizado apenas se tiver alcançado a identificação psíquica baseada na formação do supereu, através da introversão de energias agressivas da pulsão devoradora.

Após essa longa excursão à psicogênese histórica do delírio antissemita, alguns comentários devem ser feitos sobre a “verdade psicológica”[12] por trás do delírio antissemita atual. Essa ilusão, incorporada em Hitler, não passa de uma variação moderna da acusação de sangue. Hitler repetidamente exortou seus seguidores a preservar a pureza do sangue ariano e protegê-lo do judeu que tenta degenerá-lo engravidando meninas arianas. Ele se expressou ainda: “O povo ariano, ligado pelo sangue e pela cultura, que até então se despedaçara em pedaços, deve entender que é o judeu o inimigo da humanidade e o verdadeiro causador de todo sofrimento”.

A verdade psicológica da crença de Hitler em uma raça ariana, unida pelo sangue, reflete sua percepção inconsciente de que é o indomado ódio humano primário que leva as pessoas a se devorarem e, assim, a se unir “no sangue” pela incorporação. Mas o ódio deve ser direcionado a um objeto coletivo fora da “raça”, a fim de dar às pessoas a oportunidade de se unirem no amor, para que permaneçam vivas apesar da unificação. Por esse motivo, sua mensagem foi um alívio para a pulsão humana de destruição, quando ele reinstituiu o animal totem, designando o judeu como “o inimigo da humanidade”. As acusações de sangue de Hitler contra o judeu – de que este quer contaminar o sangue ariano penetrando-o – não passam de uma projeção bem conhecida: de negar as próprias tendências devoradoras acusando o judeu. De forma diferente, é uma repetição da acusação de profanação da hóstia sagrada: o judeu causa o sangramento da hóstia que, para o antissemita, significa o corpo real de Cristo.

Porém, paradoxalmente, os arianos também devem se defender da consequência psicológica de devorar o judeu, isto é, de se tornar uno com o judeu. Se eles tivessem sucesso completo, não haveria mais judeus como objetos de agressões devoradoras, e então o povo ariano teria que voltar a se destruir – um ao outro.

Hitler, com a percepção sensível de um esquizofrênico para seu próprio inconsciente, bem como para o inconsciente de seus seguidores, percebeu a progressiva assimilação dos judeus em suas respectivas nações como um perigo para a paz pulsional do mundo. A assimilação dos judeus, idêntica a devorá-los totalmente, teria o mesmo efeito e privaria o antissemita de seu objeto, do qual ele tanto precisa. É por esse motivo apenas psicológico que Hitler classifique como judeu qualquer oponente a quem ele deseja que seus seguidores destruam. Somente assim ele pode explorar a fonte do ódio primitivo e usar o ódio ao judeu como munição contra os ingleses, os russos e os americanos.

A futura aplicação política moderna do antissemitismo é inerente a essa possibilidade de deslocar o significado do judeu para o significado do inimigo absoluto, e na possibilidade de condensar no judeu a imagem do estrangeiro, bem como do inimigo intranacional. O complexo antissemita no homem pode ser usado repetidamente pelos engenheiros da mente (propagandistas) dos regimes ditatoriais, para servir a dois fins ao mesmo tempo: primeiro, manipular a “alma da multidão” dentro de seu país para estimular o ódio nacional coletivo; e segundo, desintegrar o espírito coletivo da nação inimiga. O crescimento do antissemitismo que observamos hoje em todos os países deve-se certamente à necessidade das nações de um novo canal para a descarga coletiva do ódio, agora que é verificável uma diminuição do “ódio nacional” – que até o momento incitava nação contra nação. O mundo de hoje exige um inimigo de escape, que sirva como inimigo de toda a humanidade, um inimigo “extra” nacional.

Os métodos modernos de comunicação fizeram o mundo encolher. O rádio e o avião mantêm os povos do mundo em estreito contato. As fronteiras nacionais perdem seu significado espiritual, porque as nações se tornam genuinamente familiares umas com as outras. A atual onda de hipernacionalismo e hiper-racismo é o último surto do delírio que o homem da multidão precisa. Ele está em pânico porque sente que, com a crescente industrialização de nossa civilização, seu eu está fadado a perecer. Ele precisa de uma entidade coletiva mais poderosa do que o seu eu individual, pois através dessa identificação ele consegue experimentar o renascimento do seu eu, pode novamente se tornar poderoso e capaz de descarregar o ódio, destruindo grupos mais fracos, raças mais fracas ou nações mais fracas.

Este artigo tentou lançar alguma luz sobre o antissemitismo como um fenômeno da psicopatologia de massa decorrente do ódio humano. A concepção de que a tendência devoradora no homem é a fonte pulsional do ódio oferece uma abordagem para a melhor compreensão da patologia do ódio humano como um subproduto da civilização. O antissemitismo é uma manifestação dessa pulsão devoradora humana.

Quem duvida que essa pulsão devoradora se manifeste no antissemitismo pode dissipar essa dúvida simplesmente ouvindo nossa linguagem cotidiana. A linguagem comunica não apenas nossos pensamentos conscientes, mas também revela ideias latentes. A expressão coloquial alemã para o antissemitismo é “Juden-fresser”; em inglês, é ”Jew-baiter“. De acordo com Webster, “baiting” é definido: ”incitar (por exemplo, um cachorro ou alguém) e afligir-lhe a morder ou rasgar”[13]. O eminente historiador Graetz declara, em seus três volumes de estudo do povo judeu: “A história dos judeus é a história de sua perseguição”. E ele conclui: “Se estamos inclinados a acreditar nas acusações dos Jew-baiters, teríamos de assumir que os judeus representam um poder universal que ameaça devorar o cristianismo – pele, cabelos e tudo”.

II

Toda investigação teórica do antissemitismo contém um desafio inerente: a premissa teórica específica contribui com alguma coisa para a solução prática do problema? No que diz respeito à minha contribuição, isso implica: podemos ajudar a combater o antissemitismo vendo-o como um problema da psicopatologia de massa? Pensando nesses termos, estou ciente de que os mecanismos psíquicos operativos não são específicos apenas para o antissemitismo. Os mesmos mecanismos podem ser encontrados em qualquer formação patológica de grupo, precipitada pela necessidade de os indivíduos se associarem com o duplo objetivo: de encontrar uma fuga comum da realidade e de atingir uma descarga coletiva de energias agressivas. Refiro-me às formações patológicas de grupos responsáveis por motins racistas [race riot] ou linchamentos. O antissemitismo difere dessas manifestações temporárias da “alma da multidão” de duas maneiras: primeiro, em seu caráter crônico, o resultado de sua relação recíproca com o processo da civilização, e segundo, em seus delírios específicos.

A suposição é, portanto, justificada de que os meios empregados para combater o antissemitismo podem nos permitir contestar a mente da multidão em geral. O objetivo de todas essas medidas é influenciar a formação do caráter individual, bem como a formação do caráter coletivo (civilização), a fim de imunizar contra as regressões aos estágios de desenvolvimento infantil e pré-histórico. Ao abordar essa tarefa gigantesca, o psiquiatra só pode oferecer sugestões. Resta aos sociólogos e, mais particularmente, aos estadistas incluírem conceitos da psicologia psicanalítica dinâmica de grupo em suas deliberações sobre a reconstrução do mundo do pós-guerra.

Estou plenamente ciente das limitações de uma mera abordagem psicológica do problema do combate ao antissemitismo. O sentimento de pânico que transforma adultos em crianças indefesas e os leva a se refugiar na existência em massa é muitas vezes causado por crises econômicas com o consequente desemprego em massa e a pauperização em massa. Não podemos esperar impedir crises econômicas através da psicologia. No entanto, podemos ser capazes de combater o pânico – a reação emocional às crises – influenciando a formação de caráter do homem comum, para que ele adquira um supereu adequadamente equipado para testar a realidade. Essa capacidade ajudaria o indivíduo a permanecer maduro, mesmo sob o estresse das crises econômicas.

Tal perspectiva exige um programa duplo: um de grande alcance para influenciar os processos educacionais do indivíduo e da sociedade; e um programa de curto prazo para combater o atual aumento alarmante do antissemitismo.

O principal objetivo do programa de grande alcance para combater a mente das multidões deve ser ajudar nossos filhos a adquirir um supereu duradouro, confiável e forte. O aluno de hoje não deve apenas aprender história e ciências naturais, matemática, química, fisiologia; ele também deveria ser esclarecido sobre a mente humana — sobre o processo de amadurecimento de si mesmo, tanto psicológico quanto fisiológico. Os cursos de vida social devem ser ministrados aos alunos do ensino médio, onde aprenderiam os fatos psicológicos da vida, que tanto o ódio quanto o amor são emoções normais; e esse ódio é o poder pulsional que cria a necessidade de destruição. Eles devem ser orientados a redirecionar tendências destrutivas para vias construtivas. Essa tarefa educacional deve eventualmente ser incorporada à escola primária, à creche e à família – com ênfase particular na influência da mãe, uma vez que a preparação básica para o desenvolvimento do supereu ocorre durante os primeiros cinco anos de vida.

E ainda, como as nações podem esperar que seus cidadãos se tornem maduros e se mantenham maduros se as próprias nações não estabelecerem padrões de maturidade para o comportamento coletivo? Os padrões do caráter coletivo da civilização precisam ser elevados ao nível do caráter do indivíduo. As nações “civilizadas” ainda sancionam a guerra e outras regressões coletivas de caráter, mas proíbem saídas semelhantes ao caráter individual. Com a cessação da guerra, o “supereu coletivo” age hipocritamente como se nada tivesse acontecido e abandona os superegos individuais a lutar, muitas vezes em vão, contra impulsos instintivos infantis reativados.

Sabemos que a paz não pode ser estabelecida nem mantida apenas pela psicologia. Interesses econômicos conflitantes provocam mudanças na estrutura sociológica, nacional e internacional, e precipitam explosões de violência entre nações concorrentes. Mas a munição emocional com a qual as guerras são travadas é obtida pelo arsenal de energias destrutivas reprimidas dos cidadãos de todo país, que se apodera de qualquer racionalização para irromper contra outro grupo – outra nação.

Portanto, uma das principais tarefas do nosso programa de longo alcance é diminuir a quantidade de energias destrutivas reprimidas nas mentes dos indivíduos de uma nação. Se pudermos avançar nessa direção, seremos capazes de descartar o arsenal emocional subjacente ao ódio do grupo e suas tendências de destruição. O esforço para abolir o antissemitismo deve ter como meta a raiz de todas as explosões agressivas do grupo, com o objetivo final de eliminar a “mentalidade da multidão” e desenvolver a consciência de grupo.

Como esse princípio se aplica a esse grupo que é essencial para a sociedade, tanto na paz quanto na guerra – a indústria armamentista? A importância social original do trabalho, a de fornecer ao indivíduo um meio de sublimar esforços antissociais, empregando energias destrutivas para fins construtivos, desapareceu com o predomínio da máquina. Esse significado deve ser revivido, para que o trabalhador possa encontrar uma liberação de tensão pulsional em sua atividade vocacional e possa respeitar a meta do processo de trabalho. Para alcançar esse objetivo, ele deve não apenas gozar de um retorno material adequado, mas deve experimentar um retorno espiritual ideológico adequado no produto acabado. O artesão, empregado como marceneiro, sabia o que estava criando. Na indústria moderna, a simplificação dos processos afastou tanto o trabalhador do produto final que ele não conhece, nem se importa com o valor social de sua realização. A mais completa alienação de um homem em sua produção é, obviamente, o trabalho na linha de montagem.

A guerra e particularmente as indústrias que executam seus produtos de fato tiveram algum progresso em estimular o sentimento do trabalhador em relação ao seu trabalho. A função social final do produto foi demonstrada, verbal e pictoricamente, ao trabalhador da guerra. Recursos semelhantes deveriam ser utilizados em tempos de paz, quando o objetivo da produção não é a destruição, mas a construção de bens materiais para todos. Todo trabalhador deve ter a oportunidade de desenvolver habilidades especiais, para que não seja condenado por toda a vida a executar uma operação mecânica minuciosa, sendo um mero apêndice de sua máquina.

Contudo, não o trabalho solitário, mas as atividades de lazer devem oferecer oportunidades para sublimar agressões. Nos tempos pré-históricos, os homens, mais próximos de suas necessidades pulsionais, sentiam que tinham que se livrar de sua destrutividade para poderem viver pacificamente juntos. Eles realizavam festins totêmicos em intervalos regulares, quando podiam coletivamente devorar o animal tabu. Ao fazer isso, dominavam sua ambivalência, não apenas em relação ao pai pré-histórico e aos pais vivos, mas também em relação ao outro. Esse dispositivo para a higiene mental pública não está mais disponível para nós.

Ao longo dos séculos, perdemos um importante instrumento de higiene mental, derivado da instituição da festa totêmica. Refiro-me à arte, particularmente ao teatro, a arte da tragédia. A tragédia grega mostrava claramente a sua descendência [descent from] das festas pré-históricas dos totens. A comunidade se identificava com o herói trágico, que cometia o crime primordial e acabava sucumbindo às consequências de sua culpa. Essa identificação do público com o trágico destino de tal herói dava às massas a oportunidade de descarregar suas agressões, redimir seus pecados, sendo punidas – pelo menos em fantasia – e, assim, subsequentemente se sentirem unidas no amor por seus semelhantes. A fascinante influência que a tragédia shakespeariana exerceu sobre a humanidade surgiu, em grande parte, da necessidade pulsional do homem de odiar, ser agressivo e sofrer punição por meio da identificação com a fantasia.

O grande drama dá às pessoas de uma nação ou do mundo a oportunidade de compartilhar a popular fantasia do destino trágico do herói. Toda a comunidade participa dos atos do herói; de seu crime, de sua ascensão e de sua queda – sua morte trágica. Ao assistir a encenação de um drama, e através da identificação com o herói em seu sentimento de culpa, o público é habilitado a re-introverter [re-introvert] as energias da pulsão agressivo-destrutivo e consequentemente aumentar a força do supereu, a consciência.

O teatro moderno perdeu o significado de ser um expurgo emocional para as massas. Algumas mentes criativas estavam cientes dessa perda e tentaram restabelecer um teatro para as pessoas. Max Reinhardt transformou um circo em teatro e estabeleceu um “teatro para os milhares”. Para ser eficaz em termos artísticos e funcionar a serviço da higiene mental, o teatro atual deve ser um “teatro para milhões” – ainda mais, deve ser um “teatro para todos”.

Na verdade, temos esse “teatro para todos” -— no cinema e no rádio. Mas esse “teatro para todos” não está ciente de sua função original. A grande tragédia, que ocupa a programação de uma noite inteira, ainda não chegou ao cinema. A intenção do produtor de filmes é oferecer às pessoas o que elas gostam, sem levar em consideração o que elas precisam. O público gosta de “entretenimento” e finais felizes, como um meio emocional de escapar da realidade, mas as pessoas precisam do final trágico, como uma experiência sentimental para trazê-los de volta à realidade.

A menção ao drama grego remete ao renascimento nos tempos modernos de uma instituição grega antiga: os Jogos Olímpicos. O renascimento dos Jogos Olímpicos certamente pretendia transformar a competição entre nações de empreendimentos militares para jogos atléticos pacíficos. Esta tentativa falhou por dois motivos. O primeiro e mais importante, é claro, que as razões econômicas da guerra não podem ser afastadas por uma série de competições atléticas. A outra razão é que os jogos olímpicos dos tempos modernos perderam seu significado como um modo de sublimar a agressão destrutiva. Aqueles que instituíram este avivamento esqueceram que os jogos olímpicos originais eram precedidos de sacrifícios de animais e seguidos de grandes festivais espirituais, nos quais eram cantadas canções de poetas famosos, havia palestras e recitação de poesia. Olympia era uma cidade sagrada em Elis, erguida no local onde outra cidade havia sido destruída pela guerra. Ninguém era autorizado a portar armas dentro de seus limites, pois os gregos haviam declarado um estado de armistício eterno na região. Em suma, os gregos tinham o conceito de começar seus jogos com uma descarga coletiva de energias destrutivas, e terminá-los em sublimação espiritual.

Sou da opinião de que não apenas nossos modernos Jogos Olímpicos internacionais, mas também nossos eventos esportivos nacionais devem seguir o exemplo dos antigos Jogos Olímpicos. Não posso deixar de pensar que todo o entusiasmo e sacrifício emocionais tão visíveis nos jogos de futebol, beisebol, luta livre e similares trazem um retorno inadequado, do ponto de vista da educação pública e da higiene mental. Considero uma pena que o conteúdo representacional de todo esse entusiasmo emocional seja apenas o fato de uma equipe da universidade ser mais forte que a outra. Os eventos espirituais que se seguem aos jogos devem capturar esse entusiasmo do grupo e utilizá-lo para transpor a mente das pessoas do espírito de competição para o espírito de cooperação. Na conclusão de tais jogos atléticos modernos, o vasto grupo deveria ter a oportunidade de se unir em um plano psíquico após ter descarregado suas agressões. Discursos, músicas e apresentações teatrais deveriam ocorrer na abertura, sendo o ponto culminante de tais festivais. Isso oferece uma situação em que o antissemitismo poderia ser combatido positivamente, estabelecendo um armistício eterno entre todos os credos para fechamento dos jogos olímpicos modernos.

Agora, vamos considerar o programa de curto prazo para a defesa contra o antissemitismo hoje, com o objetivo imediato de tornar o público imune à propaganda antissemita. Como a propaganda antissemita é mais eficaz se for irracional, apelando ao inconsciente das massas, devemos considerar qualquer lugar ou situação em que as pessoas sejam atraídas para grupos como os pontos estratégicos de uma propaganda preventiva [counter-active].

Do ponto de vista da psicopatologia, os nazistas nos forneceram dois ensinamentos importantes. Primeiro, eles nos mostraram o rosto desmascarado dos impulsos destrutivos da pulsão humana, que, como LeBon disse, “dormem em cada um de nós “. Foi nosso grande erro chamar esses instintos humanos de pulsões desumanas [these human instinct drives inhuman]. Infelizmente, eles são todos demasiado humanos. Foi esse isolacionismo psicológico que pegou nossa civilização de surpresa quando os nazistas revelaram sua brutalidade bárbara primária [basic] em uma guerra que não começou com a invasão da Tchecoslováquia, mas com o massacre de judeus na Alemanha.

O segundo ensinamento nazista significativo para nós foi que os princípios fundamentais estabelecidos por homens como Freud e LeBon poderiam, por aplicação hábil e incorreta, ser usados, contrariamente à intenção de seus descobridores, para criar ódio e destruição. Quem estuda o livro, German Psychological Warfare [Guerra psicológica alemã], ficará surpreso com a erudição e a atenção aos mínimos detalhes com os quais o conhecimento da psicologia dinâmica é empregado na organização da destruição, na obnubilação e desintegração da mente humana coletiva e individual. Para esse fim, os nazistas fizeram estudos intensivos sobre o caráter nacional de seus inimigos. Havia departamentos para investigadores e instigadores de perturbações [trouble-seekers and trouble-makers]; eles tinham dezessete escritórios para encontrar fatos nos quais pudessem basear sua guerra psicológica. Para esse fim, o antissemitismo se tornou sua arma mais útil e terrível. O antissemitismo é a bomba-robô psicológica dos nazistas. Eles dispararam essas bombas efetivamente muito antes do início da guerra[14].

Os antissemitas nos Estados Unidos são a sexta coluna de Hitler – mesmo após sua morte – direcionando bombas-robô invisíveis para as posições estratégicas onde elas são mais eficazes, ou seja, onde podem afetar grupos. Há evidências suficientes de que slogans antissemitas são intencionalmente distribuídos entre os membros das formações de grupos permanentes e temporárias. Esses slogans instituem o judeu como o inimigo absoluto – a pulsão humana de destruição agressiva o coloca como alvo intra e internacional.

Como exemplo da operação de slogans em um grupo permanente, considere o seguinte incidente: um oficial, conversando efusivamente com seus homens e enfatizando seus deveres militares, afirmou que eles devem estar sempre em alerta, particularmente contra “um inimigo que está presente em todos os lugares e que fará qualquer coisa por um dólar”. Por sua alusão a um inimigo anônimo, misterioso e ganancioso que está em todo lugar, todos os soldados sabiam que ele se referia ao judeu. Os ouvintes não puderam contradizê-lo através de um argumento intelectual, pois o judeu não foi mencionado explicitamente. E agora, um exemplo do slogan em ação em um grupo temporário: em um ônibus lotado, alguém olhou para um jornal e de repente exclamou: “Charlie Chaplin absolvido. Esses judeus subornam a torto e a direito [right and left], e se safam de tudo”. Os outros passageiros se uniram prontamente em acusações contra os judeus e seu poder financeiro supostamente formidável.

Um problema específico diz respeito ao soldado regressante [do campo de batalha] como um grupo psicológico per se. O veterano que regressou corre particularmente o risco de ser contaminado pelo antissemitismo. Por quê? Sob a disciplina militar, o soldado aprendeu a renunciar, temporariamente, ao poder de seu supereu interno e a investi-lo em seus superiores, a deixá-los decidir por ele como pensar, como se comportar e, em particular, como e quando liberar suas agressões contra um inimigo específico. O eu que foi assim modificado, sob disciplina militar em tempos de guerra, chamei de “eu militar”. O soldado, voltando para casa, tem que realizar a difícil tarefa de transformar este “eu militar” em um eu civil, ou seja, novamente assumir a responsabilidade total por seus sentimentos e ações, suprimir e reprimir suas tendências agressivas e destrutivas. Ele não tem mais a oportunidade de liberar suas agressões; ele deve sublimá-las. Sob o estresse de tal situação psicológica, o soldado muitas vezes sente a necessidade de transformar a sua existência de grupo militar em outra existência de grupo, que não exija responsabilidade interna, repressões ou sublimação de agressão. A ideologia e a propaganda antissemitas oferecem essa oportunidade e, portanto, devem ter um apelo especial ao soldado que retornou. Portanto, há uma necessidade urgente de combater o antissemitismo na posição psicológica estratégica dos grupos de veteranos. Na prática, isso significa que as organizações que demitem os soldados e as que recebem os ex-soldados devem desenvolver um programa definido para combater a propaganda antissemita entre os veteranos que retornaram da guerra.

No entanto, um mero apelo à razão e o apontamento das falsidades inerentes à difamação antissemita não podem efetivamente neutralizar qualquer campanha antissemita. É de maior importância conscientizar indivíduos e grupos sobre seu estado psíquico específico, bem como sobre a exploração da vulnerabilidade de sua condição psíquica pela propaganda. Representantes de todas as organizações cujos membros são responsáveis pelo bem-estar e educação de indivíduos – representantes de escolas, universidades, igrejas, forças armadas e organizações de veteranos – devem assentar em elaborar um programa definido de esclarecimento planejado para seus grupos.

Além disso, é necessário trabalhar não apenas por meio de canais educacionais formais, mas também onde e quando os párias da sociedade se encontram. Portanto, refiro-me aos locais baratos onde alcoólicos crônicos, viciados e criminosos psicopatas se reúnem. Estas são as zonas empobrecidas [slums] psicológicas que geram ódio e destruição. Essas “zonas empobrecidas” são definitivamente usadas como posições estratégicas para espalhar o antissemitismo; elas precisam de saneamento psíquico, assim como a tuberculose e a malária devem ser combatidas destruindo alojamentos sem higiene e eliminando pântanos. Existem muitas evidências de que, em bares tão pouco iluminados, os slogans antissemitas encontram uma recepção bem-vinda em mentes deterioradas, que anseiam por um propósito em relação ao qual possam dirigir suas agressões e emoções mórbidas.

O pensamento dominante da contrapropaganda ao antissemitismo deve ser o de que ela é uma medida empreendida não tanto para o benefício do judeu, mas para a proteção da democracia – a expressão moderna organizada da civilização. A democracia protege a existência física e espiritual de cada indivíduo. A democracia como formação normal de grupo permite que o eu individual mantenha sua estrutura e integração, apesar de pertencer a um grupo. Pois o próprio grupo democrático, como eu coletivo, mantém todas as características do eu individual. Aqui não há líder irresponsável que mantenha a multidão em obediência infantil por meio do terror. O grupo democrático funciona como qualquer eu individual normal, no qual os impulsos são separados da ação pelo processo de pensamento, a “maneira experimental de agir”. O sistema parlamentar reflete os desejos do grupo, bem como o ato interpolado de pensar ou falar. O presidente, como principal executivo de uma nação democrática, não representa um supereu coletivo dos membros do grupo, mas faz parte do eu deles. Ele não detém o poder de punição. Essa autoridade é investida nos tribunais de justiça. Em uma democracia, a justiça representa a segurança coletiva; tem o direito de punir qualquer um que invadir os direitos de seu companheiro, mas ele próprio é passível de punição pelos membros do grupo, caso não cumpra suas próprias regras.

Portanto, o membro de um grupo democrático não precisa abandonar sua lealdade interior ao seu supereu individual, sua consciência, porque ele é sempre impelido a defrontá-lo com as exigências do eu e supereu coletivo do grupo ao qual pertence.

Se considerarmos a organização internacional de paz como um instrumento para reconstruir não apenas os valores materiais, mas também os valores psíquicos e espirituais que foram destruídos por esta guerra, então devemos fazer uma exigência. Pressupondo que esta organização internacional de paz tenha o poder de punir a nação agressora cujos atos possam lançar o mundo em outra guerra, e então realmente salvaguardar a civilização em geral, a definição de nação agressora deve ter uma implicação mais ampla. Uma nação deve ser definida como uma agressora não apenas se empregar violência contra nações mais fracas, mas também se praticar injustiça e violência contra minorias mais fracas dentro de suas próprias fronteiras. Se a conferência internacional de paz aceita essa definição e está disposta e capaz de agir de acordo, então ela realmente pode estabelecer os elementos de um supereu mundial, uma consciência mundial.

Gostaria de concluir com uma sugestão muito prática para combater o antissemitismo dentro de nossas fronteiras nacionais, uma sugestão aparentemente banal, mas possível de ser deduzida diretamente de minhas premissas teóricas. Demonstrei que o principal incentivo para o fraco indivíduo infantil se esgueirar para a existência em massa é que, ao agir com o grupo, ele se torna poderoso, poderoso o suficiente para descarregar suas agressões reprimidas contra um grupo minoritário mais fraco. O indivíduo fraco e infantil tende a submergir em um grupo, principalmente porque “a impunidade lhe é garantida” quando ele libera suas agressões por meio do grupo. Uma maneira muito simples de privar a massa dessa atração é evitar a existência de um grupo judeu – ou qualquer grupo – como minoria. Isso implica que o governo empreste seu poder aos grupos minoritários em nossa nação, tornando-os tão poderosos quanto seus oponentes. Praticamente, o governo promulgaria legislação, punindo quaisquer manifestações diretas de ódio das minorias, como o antissemitismo. Quando a impunidade não é mais garantida ao indivíduo emocionalmente imaturo, ele se sentirá menos tentado a se tornar um “alma da multidão”, a fim de aliviar-se de sua agressão destrutiva.

Em conclusão, posso dizer que o processo da civilização ainda “passa sobre a humanidade”. Isso implica que ainda nos submetemos a esse processo e a todas as suas vicissitudes passivamente. Já é tempo de usar ativamente nosso moderno conhecimento psicanalítico, para influenciar o processo da civilização, da formação coletiva do caráter, em um programa planejado de higiene mental internacional: só então podemos esperar domesticar a pulsão humana de destruição, e não apenas tornar o mundo seguro para a democracia, mas tornar a democracia segura para o mundo. A profundidade com que embarcamos em um plano de combate ao antissemitismo pode ser considerada um meio sincero de avaliar nosso empreendimento.

REFERÊNCIAS

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STRECKER, Edward A. (1940) Beyond the Clinical Frontiers. New York, W. W. Norton.

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Ernst Simmel era psicanalista e neurologista. De origem judaica, aproximou-se do movimento psicanalítico durante a Primeira Guerra Mundial, ao transpor a metodologia de tratamento freudiano da histeria para as neuroses de guerra. Junto com Abraham e Max Eitington, ajudou a estabelecer o Instituto Psicanalítico de Berlim em 1920. Foi presidente da Sociedade Psicanalítica de Berlim de 1926 a 1930; fundou e serviu como médico-chefe do sanatório Schloss Tegel, em 1927. O sanatório inovou ao propor tratamentos segundo princípios psicanalíticos, porém faliu e fechou em 1931. Também participou da fundação da Sociedade dos Médicos Socialistas, atuando como presidente de 1924 a 1933, quando entrou em conflito com as autoridades nazistas, logo após Hitler chegar ao poder em 1933. Exilou-se nos Estados Unidos em 1934.


** Gabriel Katsumi Saito é psicólogo pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar do Desenvolvimento Humano (IP-USP). Pesquisador no Laboratório dos Estudos do Preconceito (LaEP- IPUSP). Também é psicanalista e participa do grupo de discussão clínica do Laboratório de Pesquisa e Intervenções Psicanalíticas (PsiA-IPUSP).



[1] Traduzido de SIMMEL, Ernst (1946) Chapter three: Anti-semitism and Mass Psychopathology. In Simmel, E. (ed) Anti-Semitism, a social disease. International Universities Press, New York. Esta publicação em livro é resultado do Psychiatric Symposium on AntiSemitism, realizado em junho de 1944. O simpósio contou com comunicações de Max Horkheimer, Theodor Adorno, Nevitt Sanford, Else Frenkel-Brunswik, outros ensaios do livro são assinados por Otto Fenichel, Douglas W. Orr, Bernhard Berlinner, com prefácio de Gordon Allport. Apresento os créditos e a permissão de publicação sem fins comerciais ao New Center for Psychoanalysis de Los Angeles (NCP-LA), ao Arquivo online, à Direção e ao Comitê Histórico desta instituição. Os arquivos podem ser encontrados no endereço <www.n-c-p.org/Archival_Collections.html>. Agradeço especialmente ao Dr. V. Melamed pelo apoio e mediação com o NCP-LA. Agradeço a revisão cuidadosa de Letícia Neumann.

[2] SIMMEL, Ernst (1944) “Self Preservation and the Death Instinct”. Psychoanalytic Quarterly, 13, pp. 160-185.

[3] Simmel e Strecker irão se referir a “Mental Hygiene”, que podemos traduzir de forma mais literal, incluindo-o no movimento de higiene mental (presente também no Brasil, de forma eugênica). Mas também o termo é relativo às tendências de ampliação da saúde pública e saúde mental de sua época. (N. de T.)

[4] Apesar de o texto original indicar a bibliografia utilizar, não faz referência à pagína em nenhuma das citações apresentadas. (N. de E.)

[5] A tradução brasileira de LeBon geralmente opta por alma coletiva, do povo, da multidão. (N. de T.)

[6] Em alemão: Jemanden durch die Zaehne ziehen.

[7] Literalmente “morder por trás, as costas”. Em português, algumas expressões podem se assemelhar a esta como “morder a língua” ou “veneno escorrendo pela boca” também usadas para situações de difamação. (N. de T.)

[8] Considero essas acusações contra os judeus como manifestações específicas do complexo antissemita inconsciente por quatro razões:

  1. As três manifestam a relação direta entre o ódio ao judeu e o credo cristão.
  2. Elas não manifestam referência a qualquer situação contemporânea realista.
  3. Elas refletem claramente o delírio do judeu como perseguidor.
  4. Essas acusações sempre foram de tal natureza que são capazes de desencadear a violência da multidão.

[9] Passover é o termo em inglês para se referir ao Pessach ou a Páscoa Judaica. (N. de T.)

[10] Anton Lourié (Los Angeles), que leu meu artigo, comentou que o ritual do osso de cordeiro na refeição da Pessach apoia minha teoria, mas ao mesmo tempo significa uma tentativa de manter reprimidas as antigas tendências agressivas e destruidoras.

[11] Bodenschatz cita, por exemplo, um autor afirmando que “algumas vezes os judeus empurravam verticalmente uma lança de madeira através do corpo do cordeiro e outra através de seus ombros. No último, amarravam as duas patas dianteiras do cordeiro. Por assim dizer, o cordeiro era crucificado quando, através de um buraco no forno, era abaixado para ser assado em uma camada de brasas.” – Fiquei convencido de que o comando divino de que o cordeiro seja assado para ser comido e “não cozido em água” demonstra a continuidade psicológica do sacrifício animal na refeição da Pessach. Em sacrifícios de animais, a oferenda/oferta era queimada em uma fogueira.

[12] (cf. Brunswik-Sanford, p. 121f). Veremos que uma verdade psicológica pode ser idêntica a uma verdade sociológica. Brunswik-Sanford descobriu que “o antissemitismo ajuda os indivíduos a manter sua identificação com a classe média e, assim, a afastar a ansiedade” – devido à insegurança. A afirmação de Hitler de que o judeu tem o caráter duplo e contraditório de capitalista e comunista pode ser aceita psicologicamente pelo indivíduo da classe média, porque sociologicamente sua classe é ameaçada simultaneamente pelo capitalismo e pelo comunismo.

[13] No dicionário Webster online, há também o significado para “baiting”: “assediar (um animal acorrentado, como um urso) com cães geralmente por esporte”. Cf. <www.merriam-webster.com> (N. de T.)

[14] Valentin, em seu livro publicado antes da guerra, afirmou: “Existe uma máquina de propaganda antissemita – na Romênia e nos Estados Unidos, organizada e paga pelos nazistas”.




COMO CITAR ESTE ARTIGO | SIMMEL, Ernst (1946) Antissemitismo e psicopatologia de massas [Trad. Gabriel K. Saito]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -10, p. 5, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2020/12/05/n-10-5/>.