As máscaras são formas inorgânicas que se impõem aos rostos, não para ocultá-los, mas para acrescentar-lhes um sentido profundo.
*
Georges Bataille, Le masque.

24 de agosto de 2007
Eu estou no alto de uma escadaria que termina no mar. O mar lá embaixo é de um azul muito, muito claro. Vejo boiarem vários animais que não sei se estão mortos ou se dormem. São todos animais brancos: cavalos, raposas ou grandes ratos brancos. É tudo muito calmo, muito silencioso. Eu começo a descer os degraus e noto ursos brancos que como os outros animais também estão imóveis. Eu vinha descendo lentamente os degraus mas eu percebo um urso que começa a se mover então eu recuo um pouco assustada. Nessa hora me dou conta da presença de outra mulher que também vinha descendo os degraus mas ela não recua. O urso então avança sobre ela e como se ele fosse uma língua peluda ele envolve o corpo da mulher e vai escorregando pelos degraus até o nível da água. Os outros animais despertam e avançam sobre ela também. Eles arrancam a sua cabeça. A última imagem é um busto nu, sem cabeça, o vermelho da carne exposta, boiando em direção ao fundo. Entendo que isso é um sinal. O corpo morto e o sentido das águas apontam uma direção. Lá está a resposta de um enigma.
O trecho acima é um fragmento da dramaturgia de Conversas com meu pai, espetáculo estreado em 2014 concebido por mim com dramaturgia de Alexandre Dal Farra, cujo processo havia se iniciado sete anos antes e trazia como mote o fantasma – entre o real e o imaginário – de uma relação incestuosa entre pai e filha. É também a anotação quase fiel de um sonho registrado nos diários que eu produzi ao longo de mais de 20 anos. Digo “quase fiel” porque, na versão original, logo que eu começo a descer a escadaria, registro: “e noto, pelos degraus, pessoas em posições sexuais”. Olhando com distância, acho curioso ter omitido justamente esse trecho na dramaturgia da peça. Mas hoje me chama a atenção também a decapitação e a figura da mulher sem cabeça e essa compreensão – que lembro de ter ainda durante o sonho, dormindo, como um sonhar consciente – de que se tratava de um “sinal”. E que se eu pudesse seguir aquela mulher sem cabeça, me deixando levar pelo sentido das águas, eu seria capaz de decifrar o enigma. O sonho ganhava a dimensão de um chamado.
***
Começo dizendo que nesses já mais de dez anos nos quais enveredei pela pesquisa sobre o documental e o autobiográfico no teatro, eu nunca quis fazer uma peça sobre a “minha vida”. O problema foi que, quando isso se deu, é que não havia como não fazer. São trabalhos que nascem da pressão das marcas, de sua violência, sua urgência, a necessidade de criar um novo corpo para responder a essas marcas, marcas que me obrigaram a pensar, parafraseando Suely Rolnik[1]. Fazer uma “peça de teatro” é, claro, sempre uma escolha. Mas lidar com os conteúdos psíquicos que se manifestaram nesses processos era uma exigência que, do contrário, seu recalque ou foraclusão só poderiam ter por consequência a expressão em sua via sintomática. Escolhi a expressão artística. O que se seguiu a partir do confronto com as marcas, do deixar-me estranhar por elas, foi uma afluência entre arte e vida, teoria e estética, indissociáveis.
Em 2008 comecei, ainda sem saber para que fim, acumular os escritos que o meu pai deixava aqui e ali quando se comunicava já que, devido a uma traqueostomia, ele perdeu a capacidade da fala. Depois de uma ruptura na adolescência, retomei a relação com ele nesse contexto em que ele já não falava mais e eu, coincidentemente, passei por um processo de perda auditiva grave. No silêncio, passamos a “conversar”. O silêncio, o não dito, o tabu são os motes iniciais de um “work in process” de 7 anos de duração que culminou no espetáculo Conversas com meu pai. Em uma das cenas finais da peça, eu visto um terno, um chapéu e uma máscara branca, me coloco ao fundo do cenário – um monte de plantas e entulhos – e ao som de uma vitrola velha, me movo fantasmagoricamente pelo palco. Ao fim da música, tiro o chapéu e a máscara e digo:
A certa altura, Édipo embarca, em uma viagem sem volta, pelo caminho da decifração. Ele se pergunta sobre o seu passado. E o mais terrível possível lhe sucede, quando ele vai atrás de saber o que realmente aconteceu. O mais terrível ocorre: ele encontra as pistas, as provas cabais, e de forma trágica, a mais assustadora das tragédias humanas, ele realmente DESCOBRE o que aconteceu. Ele se encontra frente a frente com os seus atos terríveis, reais e concretos. Obviamente o maior transtorno possível é o fim da dúvida.[2]
No meu caso, a certeza da dúvida, digamos assim, sempre salvou esse processo de um fatalismo. A escolha e a criação também. Não à toa, o próximo mito que retomo na peça é o das filhas de Ló que, ao contrário de Édipo, escolhem o incesto como via de criação, como forma de dar continuidade a uma linhagem que seria extinta caso elas assim não o fizessem. As filhas de Ló embebedam e dormem com o pai, por escolha, por decisão, por desejo de continuar. Entre Édipo e as filhas de Ló, a conciliação possível ao fim do espetáculo para a questão do incesto.
Com sua estreia em 2014, o processo parecia ter chegado ao fim, mas o que eu não sabia ali é que em 2008 o que começava não era um processo de criação de espetáculo, mas a jornada de uma vida que chamo aqui de “trajetória de uma máscara”. Ali, eu não imaginava que aquela máscara branca, tosca, compradas na 25 de março por três reais, ainda sofreria muitas metamorfoses. E não à toa, o sonho que abre esse texto traz uma mulher sem cabeça, um vazio, deixando espaço para a polimorfia de faces que esse processo viria a revelar. Mas sim, em 2014, estreado o espetáculo, os movimentos turbulentos que moveram o processo de criação durante seus 7 anos pareciam ter cessado. A peça seguia seu curso como um espetáculo reconhecido na cidade, eu publicava o livro “Autoescrituras performativas: do diário à cena” organizando a interface teórica que este trabalho também movia a partir de questões relativas à memória e à autorrepresentação nas artes e a vida se organizava em torno de uma família, meu primeiro e depois, meu segundo filho. Tudo seguia meio que bem.
Um insight
Já em 2016, com meu segundo filho nascido, emendado quase com o primeiro, retomando, depois da breve pausa, a rotina das noites sem dormir, turbulências no casamento, vida sexual indo de mal a pior, em uma das centenas de madrugadas em claro, tive um insight e desenhei, com meu traço quase infantil, isso aqui:
Morro de vergonha desses feijõezinhos, mas foi dessa forma, traços toscos, palavras breves, que eu experimentava a sensação de colocar no papel um mapa. “Lá está a resposta de um enigma”, ele parecia dizer, mais uma vez. Certamente não à toa depois que me tornei mãe e me esforçava por reorganizar o meu feminino a partir dessa posição, me dava conta desse curioso ato falho: em uma peça que tratava justamente do tema do incesto – essa equação na qual há sempre três pessoas mas somente dois lugares -, a “mãe” não tinha lugar algum. Um apagamento total na trama do espetáculo que terminou por revelar também a sua posição inconsciente nesta tríade incestuosa. Entendi, nesse momento, que a “mãe” estava foracluída.
É assim que começa mais um processo, uma busca, que organiza seus contornos, suas errâncias, suas perguntas em um espetáculo chamado Stabat Mater, estreado em 2019, que faz das razões desse apagamento o mote de sua dramaturgia de forma a responder a esse lapso subjetivo a partir de uma história muito anterior à minha que encontra matriz nas representações do mito materno virginal de Maria. Stabat Mater, nome do espetáculo, é também nome do artigo da autora Julia Kristeva, principal interlocutora teórica do trabalho[3]. No artigo, Kristeva defende que o que se entende por feminino no Ocidente deriva diretamente do que se entende por maternal. Um corpo receptáculo, um corpo para o outro. O outro o filho, o outro o homem. A mãe abnegada, dessexualizada, se torna o modelo de um feminino ideal que cinde em seu interior a mulher entre a santa e a caída, a mãe e as “outras”. O espetáculo tenta suturar essa cisão aproximando maternidade e sexualidade não apenas nos seus temas e discurso, mas trazendo para o processo a minha mãe real e um ator pornô profissional. “Você aceitaria fazer uma cena de sexo comigo dirigido pela minha mãe?” era a pergunta lançada aos atores pornôs que participaram do processo de casting para o espetáculo. Foi a partir deste verdadeiro programa performativo[4] que eu e a equipe de criação que me acompanhava nos lançamos na experiência de realizar uma cena de sexo explícito com um profissional da pornografia a partir da presença profana da minha mãe real no processo. Seria a nossa maneira de questionar a ideia de um feminino passivo, abnegado, esse corpo para o outro, fecundado enquanto dorme, protótipo de um ideal feminino presente dos contos de fadas aos filmes de terror e também, é claro, na pornografia.
Mais um sonho
27 de dezembro de 2006. Eu me perdi voltando de uma festa no centro da cidade. Estou completamente sozinha numa rua escura, sem saber direito como sair dali. Eu vejo uma porta pequena, um letreiro em neon em cima, com duas palavras em latim para as quais eu não sei o significado. Passo pela porta, desço uma escadaria em espiral e me vejo em uma boate que parece estar vazia. O lugar é escuro, as paredes são pretas. Tem um show acontecendo. Percebo que é um show pornô. São todos homens nus manipulando bonecos de madeira com paus gigantes. Eu olho para trás e vejo meu pai. Ele está segurando um facão. Eu, preocupada, digo para ele largar o facão se não ele pode ser agredido. Ele mostra que é um facão de mentira. Ele se senta numa mesa, sozinho. Eu fico com pena dele porque eu sei que ele se sente só, muito só, e deve estar procurando uma puta para transar. Eu quero ir embora, mas alguém, um homem que eu não identifico e que em seguida desaparece, pede para que eu dance. Então eu subo no tablado onde antes acontecia o show pornô e, somente para o meu pai, eu danço.
O trecho acima é mais um registro dos sonhos que eu anotava nos diários que mantive entre 1991 e 2014. É também um dos documentos de processo (entre centenas de outros) de Conversas com meu pai que não integrou a dramaturgia da peça e que retorna com máxima força na criação de Stabat Mater se materializando em uma cena emblemática do espetáculo em que uma figura de peruca, máscara branca, com uma barriga de grávida, dança semi-nua em um pole dance diante de outra figura mascarada que, sentado, assiste tudo.
A mulher mascarada que se aproxima é a versão “feminina” da imagem que se movia entre plantas com um terno desengonçadamente grande no cenário de Conversas com meu pai e que prenuncia o tema do incesto. Retorna agora, em sua versão feminina e pornográfica, assumindo a dança incestuosa para o pai.
Sem dúvida, foi a imagem motriz do processo de Stabat Mater, uma das primeiras que me veio a mente ainda em um exercício apresentado dentro de um laboratório que conduzi em 2017 que chamei de “Feminino abjeto” composto por 29 performers. Ali, na posição de diretora, tive a necessidade de me colocar em cena e disse “Eu vou fazer o que o desconhecido pediu. Me despeço, acho, dançando para esse homem sentado, sozinho, que talvez seja o meu pai, que talvez seja cada homem que eu temi ou desejei. Ou, – e essa é talvez a melhor hipótese –, seja eu mesma, já que, dizem, nos sonhos todas as figuras são sempre desdobramentos de nós mesmos”. Não foi uma despedida, mas, ao contrário, um reencontro com essa imagem. Era o início da criação propriamente do que viria a ser Stabat Mater. E novamente, desenrolado quase dois anos até a estreia, parecia ser o ponto culminante de uma pesquisa profundamente autobiográfica e verticalmente estética sobre os limites da teatralidade na qual, de um lado, eu visitava meu próprio referencial feminino a partir da figura da minha mãe derivado por sua vez do modelo cristão, tocava o tema da violência contra a mulher numa perspectiva histórica, mas também biográfica através de uma família disfuncional e da situação de estupro que eu sofri aos 15 anos de idade, de outro, esteticamente, eu e minhas parceiras de criação nos propúnhamos a explorar os limites entre representação e acontecimento ao nos colocarmos em um set pornô para a gravação de uma cena de sexo explícito com um dos principais atores pornôs do Brasil. Era, pensava eu, a minha maneira de embrincar arte e vida, profanar esse materno virginal, problematizar os mecanismos opressores da própria pornografia “rejogando” o jogo, como propõe Agambem[5], desativando-o, ao me colocar, ativamente, conscientemente, nesse território. Era também um reposicionar de peças do meu próprio “romance familiar” e do jogo teatral movendo-as de suas posições originais: a filha dirige a mãe na peça, a mãe dirige a filha no set, o ator pornô mascarado assume todas as posições masculinas em cena, do slasher terrível e sedutor dos filmes de terror ao pai na boate vendo a filha dançar, é também o profissional diante da aspirante à atriz pornô e é amador diante da atriz de teatro profissional. Ludicamente, teatro e vida, viam suas posições remexidas, renovadas. Só que não.
O que eu não contava é que essa experiência teria muito mais a dizer sobre os meus limites, sobre sexualidade e gênero sim, mas sobre a minha sexualidade e a minha imagem de feminino que exigiriam ainda um intenso trabalho de elaboração que a peça Stabat Mater não daria conta de realizar.
Na cena final do espetáculo, logo após exibir as imagens explícitas em que duas figuras de máscara, eu e o ator pornô selecionado no processo de casting, fazemos a cena de sexo proposta, eu volto à cena e comento com a plateia sobre o visível estranhamento das imagens em que se percebe uma certa mecanicidade e mesmo uma forte tensão no ambiente. Divido com a plateia de forma titubeante palavras breves sobre os bastidores da gravação, um certo desencontro e de forma bastante lacunar apenas digo que “foi muito diferente do que eu tinha imaginado”. Mas hoje entendo que essa hesitação também tinha a ver com o fato de não conseguir elaborar completamente o que tinha se dado ali. Um certo encontro idílico que talvez eu tivesse projetado ingenuamente entre as figuras simbólicas de homem e mulher, subvertendo a lógica da passividade e objetificação – mote da dramaturgia do espetáculo – simplesmente não aconteceu e deixava em suspenso os meus próprios fantasmas sobre a arquitetura e o arranjo psíquico do desejo sobretudo no que concerne à matriz heterossexual na cultura ocidental como propõe Despentes: o estupro[6].
O espetáculo estreou em junho de 2019 e conta hoje com mais de 60 apresentações, foi eleito melhor espetáculo de 2019 pelo jornais Folha de São Paulo e Estado, venceu o prêmio Shell de melhor dramaturgia e vem suscitando debates sobre gênero e teatro em diversos contextos como, por exemplo, a Mostra internacional de Teatro de São Paulo na qual foi objeto de debate em um eixo que promoveu uma série de ações em torno do espetáculo.
Mas… Stabat Mater deixava em suspenso, assim como já havia se dado em Conversas com meu pai, sua contra-cena, sua ob-scena. Se eu pretendia ali uma saída lúdica, de criação, para toda a dramaturgia de ab-uso (no sentido etimológico que remonta à destruição), o que se deu de fato foi algo mais próximo da repetição.
Hoje, revendo as imagens, as figuras ali, eu só consigo pensar ‘que máscaras feias’!
Je m’avance masqué
Essa jornada começa com um chamado para um enigma de dimensão oracular e, aos poucos, em diálogo com a principal interlocução teórica nesse tempo, a psicanálise, sem perder seu estatuto de chamado, ganha contornos psicanalíticos ao pensar o “enigma da sexualidade” nos termos que definiu Laplanche sobre essa sexualidade que não é inata, que vem do outro, já no início emanando do adulto através de “mensagens enigmáticas” enviadas de forma consciente e inconsciente à criança. Esses “significantes” – sinais, palavras, gestos, códigos, estados corpóreos, psíquicos – não são traduzidos e vão constituir esse primeiro núcleo da sexualidade infantil.[7]
Outra ideia fundamental também da psicanálise ajudou a tornar os sonhos menos literais e agregou a eles o seu “umbigo”, sua dimensão insondável, o ponto no qual o sonho “mergulha no desconhecido”[8].
Sabendo em aberto a experiência turbulenta no encontro com a pornografia e a atualização sombria do meu próprio romance familiar naquele que foi pensado para ser um ato psicomágico[9] de renovação, talvez agora de forma menos ingênua em relação a respostas, mas confiando na força dos chamados, no dia 6 de maio de 2020, entro em um site de sexo virtual pago e crio o perfil que começa com a seguinte apresentação: “Eu sou uma mulher digamos… normal. Eu poderia ser sua vizinha, sua colega de trabalho, sua professora no curso de idiomas. Mas aí eu descobri essa máscara. Nada a ver com ocultar, mas com revelar um sentido profundo”. Não me bastava mais o que eu sabia sobre a pornografia (que ela é machista, falocentrada, um desserviço para a sexualidade das mulheres – dos homens também- , etc, etc), mas o que eu “não sabia”. O que eu não sabia da minha própria relação com a pornografia, com a minha sexualidade, o que eu não sabia sobre a relação dos homens com a pornografia, sobre a maneira como o desejo deles se projeta nela e se desdobra nos encontros com as mulheres reais, sobre o que ela diz sobre o erotismo de forma mais ampla.
Eu queria aprender sobre pornografia, experimentar a pornografia fora do teatro, do ambiente protegido do teatro. Em Stabat Mater, eu trouxe a pornografia para dentro da cena e agora eu queria levar a minha “cena” para dentro da pornografia. E levei, literalmente, a figura mascarada de Stabat Mater , aquela que dançava semi nua para o pai, a que fez a cena de sexo explícito ao fim da peça, para realizar alguns experimentos pornográficos, bastante incipientes, mas que abririam caminho para o experimento mais vertical dessa proposta que é ter exercido trabalho sexual virtual durante 101 noites no contexto de pandemia que encerrou milhões de pessoas em seus lares, contando apenas com a janela da virtualidade para manter trabalhos e relações afetivas. Eu também, isolada em meu apartamento em São Paulo, parafraseando a frase de Bataille que figura como epígrafe nesse texto, criei um perfil em um site de trabalho sexual para encontros exclusivamente online. Depois, é claro, de uma série de procedimentos burocráticos que um site como esse pressupõe, coloquei a máscara e a peruca, uma roupa que eu imaginava “sensual” dentro dos meus próprios estereótipos de um universo como este e apertei o botão verde “ficar online”. O que se seguiria, eu não poderia imaginar. Foram quase três meses e meio, quase 400 horas online, centenas de clientes que eu identificava por curiosos nicknames como “observador feio”, “sr elegante” “noivo longe”, “truffador”, “casadotesudo”, “gatoseu”, “moneyman”. Relações pontuais e relações regulares que atravessaram toda essa experiência que, psiquicamente, antropologicamente foi das mais complexas que já pude viver até hoje. Um ponto de vista absolutamente singular, privilegiado desse confessionário da masculinidade. E uma oportunidade radical de vivenciar a minha própria sexualidade em jogo, em performance, entre a encenação – ou o “show”, como se diz nesses ambientes – e o que transbordava do meu próprio desejo, das minhas próprias estratégias de cativar, de seduzir, visto que se trata – daí a escolha das “101 noites” –, de construir uma chave de sedução que sustente a relação, como uma Sherazade, pelo máximo de tempo possível, afinal, o cliente paga por minuto.
No início da experiência eu achava que, do ponto de vista da linguagem, a experiência era sobre imagens obscenas, explícitas, era sobre o que se via. Ao longo dos dias, contudo, descobri que o jogo mais interessante não era somente o imagético mas o imaginário. A máscara me oferecia uma liberdade brutal. Eu, que venho trabalhando há anos com autobiografia, curiosamente, descubro, nesse espaço que traz o real da sexualidade de forma tão escancarada, as possibilidades da personagem, da ficção, da máscara como dispositivo não de ocultação mas de revelação, como propõe Bataille.
Se no início, ainda colada às motivações que me fizeram estar ali, curiosa e inquieta sobre meu próprio desejo, julgando e me julgando, uma hiper vigilância fazia da experiência ainda algo bastante psicológico, aos poucos, o anonimato, o recurso da máscara e a vivência nessa zona franca das fantasias se tornaram um convite ao jogo. Não poderia prever o quanto a máscara, essa máscara ainda estranha e sombria no início, mas que provocava “medo e tesão”, como já me disse um dos clientes, foi cada vez mais ganhando uma leveza lúdica, se tornando o portal para um descolamento, despossessão temporária, em que me permiti transitar por tantas faces, minhas e dos outros.
Na tese que acabo de defender na Escola de Comunicação e Artes da USP sob o nome de “Ensaios sobre o feminino e a abjeção na ob-scena contemporânea”, um dos temas que desenvolvo é, justamente, a questão da mascarada feminina retomando o clássico de Joan Riviere para quem não há diferença entre “feminilidade genuína” e a máscara[10]. Na tese, caminho para o conceito de “semblant” de Lacan mas aqui, queria citar brevemente aquele que foi referência para o psicanalista francês urdir o seu conceito pensando o gênero mais como um parecer do que um ser: Roger Caillois no seu “Méduse et Cie”. No livro, o autor visita o tema do mascaramento na natureza através de estratégias como “travestismo”, “ocultação” e “intimidação”. O autor aponta que é fato que toda a humanidade usa ou já usou máscara. Mais difundida que utensílios práticos como a roda ou o arpão, a máscara, mais do que qualquer outro elemento, faz a unidade da humanidade: “je m’avance masqué” (“eu avanço mascarado”), diz Caillois, reforçando esse traço comum ao humano que atravessa eras e culturas.
Há um mistério da máscara: as razões que por toda a parte têm sido capazes de levar o homem a cobrir o seu rosto com um segundo rosto, instrumento de metamorfose e êxtase, de possessão pelos Deuses; também um instrumento de intimidação e poder político. Toda a etnografia está repleta de máscaras e vertigens, transes, hipnose, pânicos que são a consequência quase inevitável.[11]
Para ele, as estratégias no mascaramento revelam traços que fundem cultura e psiquismo: passar por um outro, tendência a imitar uma aparência exterior reconhecível, tentar não ser notado, desparecer, amedrontar, passar por mais forte do que se é. Caillois reivindica, de um lado, a gratuidade lúdica do mascaramento entre as espécies, ao mesmo tempo em que depreende dessa plasticidade e estratégias, conexões que atravessam todas as culturas e mitologias: mitos de metamorfose e o fantasiar-se no travestimento, as lendas de invisibilidade a partir da camuflagem e os jogos infantis que brincam com a imobilidade, as crenças no poder de hipnotizar, siderar, assim como as estratégias de fazer-se mais “perigoso” com pinturas, tatuagens, máscaras com chifres e carrancas, e também armaduras.
O feminino, para Caillois, estaria ligado sobretudo às estratégias da imitação, se fazer passar por, reproduzir uma certa sígnia próxima a um déguisement: ser mulher é sempre um fantasiar-se de mulher. Se liga também às estratégias do desaparecimento, fundir-se com o meio a ponto de desaparecer, ou imobilizar-se, manter-se impassível para não atrair o inimigo. Da última categoria, a “intimidação”, ele retira o feminino.
Mas a figura mascarada que escolhi como avatar rapidamente revela seu poder hipnótico entre a atração e a intimidação. Atraio um sem número de fetichistas, muitos “submissos” como eles se auto denominam e descubro na prática o quanto ser atriz me seria útil.
– “Você tem bota?”, ele pergunta.
– “Sim”, e exibo um cano longo em couro acima dos joelhos.
-“Você poderia ser a minha mãe enquanto exibe a bota pro seu filhinho?”
– “Sim”.
Começo, mas “erro” o tom. Ao que ele corrige:
– “Não precisa ser uma mãe brava. Pode ser apenas uma mãe satisfeita em mostrar a bota para o filho?”
– “Claro, filhinho, claro”. Sim, sim, sim.[12]
Depois de uma descida ameaçadora ao porão escuro do inconsciente no qual uma dança erótica para a figura do pai fusionada em violadores e slashers de toda sorte habitou durante muito tempo meus pesadelos mais sombrios, as surpresas ao me propor, ao longo dessas 101 noites trabalhando com sexo explícito – um último “programa”? –, levar essa imagem às últimas consequências. Assumir o perigo dessa dança pornográfica para o pai metamorfoseado em centenas de olhos masculinos, ao mesmo tempo, ir ao encontro do que residia sombriamente do meu próprio desejo nessa imagem. E quem diria, encontrar tanta mobilidade e plasticidade nessa máscara tosca da 25 de março que já carrego comigo há quase 13 anos. Menos grudada à cara, intuo que ela se tornou mais sobre o outro, ou sobre o que acontece no entre.
A moça sem cabeça segue o curso das águas, “Lá está a resposta…etc, etc, etc.”, eu sigo atrás, toda vida como se diz, mas… para além dos monólogos, tenho, atualmente, escrito diálogos. ♦
REFERÊNCIAS
AGAMBEM, Giorgio. Profanações. (2005) Trad. S. J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
BATAILLE, Georges. “Le masque” in: Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1970; tomo II, p. 403-406.
CAILLOIS, Roger. Méduse et cie. (1960) Paris: Librairie Gallimard.
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. (2006) Trad. M. Bechara. São Paulo: n-1 edições, 2016.
FABIÃO, Eleonora. (2013) “Programa performativo: O corpo-em-experiência”. Revista do Lume, n.4, dez/2013.
FREUD, Sigmund. (1900) “A interpretação dos sonhos”, in ESB, v. IV/V. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
KRISTEVA, Julia. Stabat Mater (1976). Histórias de amor. Trad. L. T. da Motta. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
LEITE, Janaina. (2020) Conversas com meu pai (Alexandre Dal Farra) + Stabat Mater: uma trajetória de Janaina Leite. Belo Horizonte: Editora Javali.
LAPLANCHE, Jean. (1986) “A pulsão de morte na teoria da pulsão sexual”, in GREEN. A. et al. A Pulsão de morte. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Editora Escuta, 1988.
RIVIERE, Joan. (1929) “A feminilidade como mascarada”, Psyquê, São Paulo: Ano IX, n° 16, jul./dez. 2005, pp. 13-24.
ROLNIK, Sueli. (1933) “Pensamento, corpo e devir”. Palestra proferida no concurso para o cargo de Professor Titular da PUC/SP, realizado em 23/06/93, publicada no Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica, PUC/SP. São Paulo, set./fev. 1993.
Janaina Leite é atriz, diretora, dramaturgista e doutora pela Escola de Comunicação e Artes da USP. É uma das fundadoras do premiado Grupo XIX de Teatro de São Paulo. Em 2008 deu início a sua pesquisa sobre o documentário e o uso de material autobiográfico em cena, resultando em diversos espetáculos e no livro “Autoescrituras performativas: do diário à cena”, publicado pela Editora Perspectiva. Em 2019, estreou o espetáculo “Stabat Mater”, contemplado pelo Edital de Dramaturgia para Pequenos Formatos do Centro Cultural São Paulo e ganhador do prêmio SHELL de melhor dramaturgia. Trabalha com orientação de cursos, palestras e curadoria no Brasil e em países como França e Portugal. Atualmente, desenvolve seu novo trabalho “Ensaios Escopofílicos para uma História do Olho”, tensionando teatro, experiência e pornografia sob a perspectiva de um real obsceno.
[1] ROLNIK, Sueli. (1993) “Pensamento, corpo e devir”. Palestra proferida no concurso para o cargo de Professor Titular da PUC/SP, realizado em 23/06/93, publicada no Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica, PUC/SP. São Paulo, set./fev. 1993.
[2] LEITE, Janaina. (2020) Conversas com meu pai (Alexandre Dal Farra) + Stabat Mater: uma trajetória de Janaina Leite. Belo Horizonte: Editora Javali.
[3] KRISTEVA, Julia. Stabat Mater (1976). Histórias de amor. Trad: Leda Tenório da Motta. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
[4] Conceito amplamente discutido pela pesquisadora e performer Eleonora Fabião no texto “Programa performativo: O corpo-em-experiência”. Revista do Lume, n.4, dez /2013. O programa performativo, em breves palavras, é um “motor de experimentação”. Um enunciado que propõe uma prática, um ato, um acontecimento de modo a mover um certo campo de questões, temas, relações, organizações, afetos.
[5] AGAMBEM, Giorgio. (2007) Profanações. Trad. S. J. Assmann. São Paulo: Boitempo
[6] No livro Teoria King Kong, Despentes fala do estupro como um dispositivo cultural onipresente e preciso que, de um lado, forma o caráter viril enquanto “associal, pulsional, brutal” (2016, p. 42), e de outro, “predestina a sexualidade das mulheres a gozar de sua própria impotência, quer dizer, da superioridade do outro” (idem, p. 43). DESPENTES, Virginie (2006). Teoria King Kong. Trad. M. Bechara. São Paulo: n-1 edições, 2016.
[7] Nas palavras de Laplanche, a “sedução originária” não se refere a uma “manobra sexual particular por parte do adulto”, mas ao fato de que “a criança imatura é confrontada com mensagens carregadas de sentido e desejo, mas cuja chave não possui (“significantes enigmáticos”). O esforço para ligar o trauma que acompanha a sedução originária resulta no recalque destes primeiros significantes ou de seus derivados metonímicos. Estes objetos inconscientes ou representações de coisas inconscientes constituem a fonte da pulsão (objetos-fonte).” LAPLANCHE, Jean. “A pulsão de morte na teoria da pulsão sexual”, in GREEN. A. et al. A Pulsão de morte. Trad. C. Berliner. São Paulo: Editora Escuta, 1988, p.18.
[8] “(…) é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio.” FREUD, Sigmund. (1900) “A interpretação dos sonhos”, in ESB, v. IV/V. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 482.
[9] O conceito é de Alejandro Jodorowski que a partir sua longa trajetória no teatro, no happening nos anos 1970 e nas práticas místicas e curativas, desenvolve os “atos psicomágicos”, que ele passa a prescrever para seus pacientes em uma linha tênue entre performance e processo terapêutico.
[10] “O leitor poderá agora perguntar como defino a feminilidade, ou onde traço a linha divisória entre a feminilidade genuína e a “máscara”. Minha sugestão é, entretanto, a de que não existe essa diferença: quer radical ou superficial, elas são a mesma coisa.” RIVIERE, Joan. (1929) “A feminilidade como mascarada”, Psyquê São Paulo: Ano IX, n° 16, jul./dez. 2005, pp. 13-24.
[11] CAILLOIS, Roger. (1960) Méduse et cie. Paris: Librairie Gallimard, p. 141, trad. Minha.
[12] Registrado a partir das conversas com clientes em plataformas de sexo pago.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | LEITE, Janaína Fontes (2021) Trajetória de uma máscara. Lacuna: uma revista de psicanálise. São Paulo, n. -11, p. 12. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/08/07/n-11-12/>.