O que se pode fazer com pesadelos
Nota: esta é uma resenha da nova tradução do ensaio Das Unheimliche, de Sigmund Freud (1919). A tradução, quem a fez, foi Paulo Sérgio de Souza Jr, e ela foi publicada em 2021 pela editora Blucher, de São Paulo. É a primeira obra da série “pequena biblioteca invulgar”, coordenada pelo tradutor desse volume.
RESENHA (s.f.) 1. Ação ou efeito de resenhar. 2. Descrição resumida e breve de um livro ou de um texto; recensão. 3. Análise crítica de um livro ou de um texto; recensão. 4. Verificação ou lista; enumeração feita por partes. 5. Descrição repleta de detalhes. No canal do YouTube, ela faz resenha de pincéis, indica como pôr cílios postiços e como fazer um make pro verão. 6. Conversar, trocar ideia. Que resenha gostosa ontem, hein ? 7. Ato de zuar ou azaração, fazer resenha. 8. Zuação, tiração de onda. Tu deixe de resenha comigo! 9. Festa.
Como Paulo e Sigmund, ofereço aqui um menu, uma espécie de cardápio de significados. Ver significado número 9. Como o primeiro menu no volume, na nota do tradutor, e no outro, na abertura do ensaio que dá título ao volume, este verbete — que é também uma lista — é um recurso para incomodar por ambivalência: os significados dados ampliam e limitam a leitura do que segue, ao mesmo tempo. Se as listas oferecem a quem lê a escolha: quero esse, esse e esse significado, também orientam quem vai ler: as possibilidades são essas aqui, não outras. No fim, o modo como a leitura será feita sequer cabe a quem lê. Mas parece bonito pensar nessa escolha de amuletos à porta de um livro assombrado.
Eu, por exemplo, destaquei com marca-textos Stabilo cor-de-rosa, na nota do tradutor: “os c. de uma casa”; “grande móvel de madeira, desenvolvido a partir da arca primitiva e guarnecido de gavetas, onde ordinariamente se guarda roupa branca”; “aquilo que importuna, que causa indisposição”; “fluxo menstrual”; “a separação de gêmeas siamesas”; “a mulher, para livrar-se do marido, incendiara o apartamento”; “companhia sinistra”; “as qualidades da depressão, da melancolia e da limitação mortificante”; “estorva”; “que provoca sensação de mal-estar” e “que não tem cômodos.” Em seguida, fiz uma anotação com a caneta de ponta fina também cor-de-rosa, no mesmo tom, puxando uma seta do último destaque: como a sala das caldeiras, aberta e fechada ao exterior, dentro e fora dos sonhos dos adolescentes de A Hora do Pesadelo e sua franquia.
Ter cômodos, não ter cômodos: casa cômoda e incômoda. Uma vez, minha madrasta, cansada da desordem no meu quarto, me escreveu uma carta-reprimenda também muito bonita, por causa e também apesar da função educativa, em que descrevia uma casa. Cada cômodo era um aspecto da personalidade. A escada foi a parte da casa que me encantou, porque tinha algo a ver com transcender ou comunicar planos de consciência. O resto, se eu quiser mentir, posso supor cômodo por cômodo o que eles representam. Exceto pelo meu quarto bagunçado: algo no texto dizia respeito a minha desordem emocional ou de personalidade mesmo, ou da minha vida íntima, tudo isso. E esse emaranhado metafórico do quarto escondia algo que a preocupava. Talvez fossem cuecas reviradas e pornografia gay na gaveta de meias, imagino.
“Fluxo menstrual”: marquei porque pensava em Carrie, o filme dirigido por Brian de Palma em 1976. Os cômodos da casa são incômodos: é particularmente difícil de entender a arquitetura do sótão, que tem um pequeno quarto, onde Carrie White dorme. A dispensa é um quarto de castigo, oração e meditação e tem um Jesus Cristo que se parece com a mãe de Carrie.
Houve:
1. a busca do ensaio por causa da noção de unheimlich e a necessidade de escrever sobre filmes de horror, monstruosidades e pessoas queer. 2. o encontro com a escolha do tradutor por incômodo: que remete a casas, a falta de casas e a busca de lar, onde e como o lar, das pessoas queer. 3. o encontro com a seleção de histórias fantásticas, de horror e de terror e as notas do tradutor sobre essa antologia — o duplo e a casa são fundamentais para A Hora do Pesadelo 2.
Houve também a constatação de que Freud cita ideias que Jentsch não formula, e a prova está dada pela sequência entre os ensaios citados. Foi um incômodo que me tirou da cadeira para me colocar de volta na cadeira e escrever um ensaio desconjuntado e esta resenha assim (ver acepções quatro, cinco e seis do verbete “resenha” no início desta resenha). Certamente me vejo como uma pessoa mais amável que a média, talvez, e que o Freud diante de Tausk no capítulo biográfico de Alt, ao final do livro (ver acepções seis e nove do mesmo verbete “resenha”).
Sobre casas e cômodos assombrados, e logo após a leitura do ensaio, e com a lembrança da carta-reprimenda de minha adolescência, escrevi o poema que aparecerá em livro chamado Matinée a sair no ano que vem:
A Casa
tem doze incômodos
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- na sala de estar ela balança na cadeira e você a ama e mete os dedos nos cabelos brancos dela e eles viram cobras;
- na cozinha a frigideira arde e no fogo e na fumaça você se vê numa fila esperando para receber uma coisa que não querem te dar e de que você precisa tanto mas não faz ideia do que seja;
- na sala de jantar a ceia especial preparada por Peter Greenaway;
- na biblioteca aquele livro que se você abre numa certa página na hora certa ele te mata mas cada dia é um livro diferente que faz isso e não tem nenhuma classificação Dewey ou outra que preveja qual;
- na sala de música o piano quando percebe tristeza começa a tocar Jerry Lee Lewis então você pensa em seus entes queridos que partiram e gargalha with whole lot of shakin’ going on;
- na escadaria você pratica pilates como Linda Blair;
- na suíte o amor mata mais que a faca;
- no quarto das crianças Demian fixa o olhar nas lagartixas e elas gritam e se contorcem formam um bando em torno de Samantha e ela sorri e gargalha então as lagartixas explodem Demian e Samantha se abraçam e uma espiral luminosa azul cheias de rádio e efeitos especiais dos anos 80 os transporta para o micro-ondas na cozinha onde eles explodem e por isso você nunca vai ter aquilo que queria tanto e por que esperava na fila dentro da fumaça da panela;
- no quarto de hóspedes você se vê sobre a cama e quando olha para o espelho você é Kathy Bates segurando uma marreta;
- no corredor ele vai pegar você, continue andando, por favor, mas finja surpresa;
- no banheiro você se pergunta se esse ronco na barriga foi porque comeu milho demais;
- no porão a máquina de lavar velha se aproxima escandalosa com a faca na mão.
Não sei mais por que esse número de cômodos. Doze anos. Doze signos do zodíaco. Uma casa de bom tamanho para uma família de classe média pronta a ser tirada do tédio por um monstro que ela mesma criou — a maldita classe média. A enumeração, a casa como um verbete, mas não de significados do todo, senão das partes, uma por uma. A forma estruturou a planta do pensamento poético e ensaístico. Freud tinha sua relação obsessiva com números, e saber nesta tradução como era é libertador: eis minhas listas, planos e amalucamentos.
A casa na Rua Elm, número 1428, quando ocupada pela segunda família, a de Jesse Walsh, tinha um quarto bagunçado. O pai de Jesse queria governar o espaço. Escondido no armário, havia um diário da antiga moradora, que Freddy Krueger levou à loucura e depois aos estudos de psiquiatria e psicanálise, no terceiro filme da franquia. No diário, as fantasias sexuais de Nancy Thompson com seu vizinho, e a descrição de alguém que, nas primeiras palavras dessa segunda página lida, parece ser esse vizinho, mas é Krueger. Mas Krueger agora quer o corpo de Jesse: sai do armário como fantasia, e sai do porão, onde estava recalcado e vence a força do rapaz, que tenta bloquear a porta. Krueger sabe que ele e Jesse são um. Para matar, Krueger emerge e na tela a despossessão do corpo de Jesse é incômoda como “a separação de gêmeas siamesas.”
Amor e escuta libertam Jesse.
A virulência da reação de parte dos espectadores foi proporcional ao amor e à identificação da outra, que não via suas histórias contadas. Por mais que se diga que o filme é gay, ele também é ambivalente, e, portanto, incômodo. É fácil ver-se rasgado pelo desejo proibido ao se ver Jesse lacerado. Deve ser difícil para alguns, dadas suas criações, ver-se assim tão facilmente na figura de um beau que matou a golpes de toalha molhada na bunda e arranhões nas costas o professor de Educação Física dado ao sadismo com os alunos e ao S&M nos bares gays.
Já emergi na zona de sex clubs gays em uma cidade germânica… arrã… sem querer, como emergiram em certos bairros de meretrício alguns pais da psicanálise… digo, de família (favor ver acepções 7 e 8 do verbete “resenha”).
A leitura tradução, essa estruturação do livro, as notas e, imagino, também o que Sigmund Freud diz dentro dele organizaram e desorganizaram as mesmas gavetas da escrita. Os pesadelos se encarregam do material que servirá para os ensaios que ando escrevendo. E talvez esses ensaios cheios de pesadelo emocionem e façam outros fazerem suas listas, verbetes, bagunças de quartos.
É fino agradecer por conversas com amigos: obrigado, Paulo
Não me desculpem pelo incômodo e finalmente:
não adianta nada arrumar o quarto. ♦
* Hugo Lorenzetti Neto é poeta, ensaísta, tradutor, professor e diplomata (por causa das viagens e algumas coisas bacanas que têm a ver com ajudar gente). Estudou Letras na Unicamp e agora faz mestrado na UFRGS, também em Letras. Foi professor, volta a ser professor quando pode. Antes do atual emprego, sua experiência com o exterior era a fronteira tríplice entre Brasil, Argentina e Paraguai. Depois isso aumentou consideravelmente. Serviu na Nicarágua, na Bélgica, Índia e Indonésia e voltou para o Brasil, para trabalhar em Recife. Está partindo para Angola. Gosta de filmes de terror, e está terminando um livro de poemas chamado Matinée, inspirado nos filmes e na teoria em torno deles. Para acompanhar seu trabalho, siga, no Instagram @ocadernorosa e leia a coluna mensal sobre tradução na revista Ruído Manifesto: <ruidomanifesto.org/colunas/coluna-jeronima>
COMO CITAR ESTA RESENHA | LORENZETTI NETO, Hugo (2021) Resenha: O incômodo (Freud, [1919]2021). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -11, p. 11, 2021. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2021/08/15/n-11-13/>.