Um breve histórico do bombardeio atômico à cidade de Hiroshima
Compreender o ataque à Pear Harbor, base norte-americana localizada no Havaí, e sua aparente consequência marcada pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial parece ser um bom começo para também compreender os bombardeios atômicos às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Para tanto, é imprescindível retornarmos à política expansionista japonesa no período posterior à Primeira Guerra Mundial, no qual o Japão estabeleceu-se como a maior potência naval e militar do Extremo Oriente. Um agressivo expansionismo que, Segundo Hobsbawm (2008) visava a consolidação do país como uma grande potência econômica e industrial e, nesse sentido, buscava, dentre outros, suprir suas dependências industriais em relação ao suprimento de recursos naturais, ampliar seus mercados para além dos Estados Unidos e diminuir as interferências das marinhas estrangeiras sobre suas exportações.
Neste contexto, com a vitória de Hitler na Europa em 1939 e o consequente enfraquecimento da França e da Inglaterra, o Sudeste Asiático ficou vulnerável, tornando-se alvo do então movimento expansionista japonês. Este movimento foi fortemente reprovado pelos Estados Unidos, que não observavam com bons olhos o avanço do Eixo sobre o Sudeste Asiático e o Pacífico e decidiram por interferir nas comunicações marítimas japonesas, impondo restrições econômicas ao país nipônico[1]. Como resposta ao embargo norte-americano, no dia 7 de dezembro de 1941 o Japão ataca a base norte-americana de Pearl Harbor localizada no Havaí, ataque esse que faria com que os Estados Unidos deixarem sua posição de aparente neutralidade desde 1939 e adentrassem à guerra ao lado dos Aliados — contra o Eixo — e com o apoio maciço de sua população que, recentemente atacada, alimentava um forte desejo de retaliação.
Curiosamente, no dia 06 de dezembro de 1941, um dia antes do ataque japonês a base de Pearl Harbor, o então presidente norte-americano, Franklin Delano Roosevelt, assinou a aprovação para a pesquisa que conduziria à criação e o desenvolvimento das primeiras bombas atômicas do mundo. Essa pesquisa havia sido pleiteada pelos renomados cientistas Albert Einstein e Leo Szilard, que se encontravam refugiados nos Estados Unidos devido ao domínio do nacional-socialismo na Europa. Einstein e Szilard afirmaram que a Alemanha — considerada até então a meca científica do início do século XX, incluindo no campo da física nuclear — muito provavelmente estaria fazendo investimentos na produção de uma arma que utilizaria o poder da fissão nuclear como meio de exterminação em massa.
Com base nesse pedido e na aprovação de Roosevelt, deu-se início ao Projeto Manhattan, responsável pelo desenvolvimento e construção das primeiras bombas atômicas do mundo. Porém, ao contrário do que supunham os cientistas que compuseram o Projeto, a Alemanha não havia alcançado condições financeiras e científicas de manter um projeto nuclear, o que ficou claro quando na vitória sobre a Europa em 08 de maio de 1945 e na consequente ocupação da Alemanha pelas forças Aliadas. Esse fato perturbou muitos dos cientistas, que passaram a solicitar ao Presidente Harry Truman[2] que não usasse a nova arma ou, caso houvesse a suposta necessidade do seu uso, que fosse realizada uma demonstração prévia do poder da bomba e/ou aviso anterior ao bombardeio, uma vez que estando isolado politicamente e já muito desgastado com a guerra, o Japão poderia ser vencido rapidamente com as armas convencionais.
Segundo Thomas e Witts[3], internamente o Japão se dividia entre aqueles que desejavam lutar até a morte, tomando a rendição e a derrota como feridas na honra, e aqueles que desejavam o fim da guerra, entre os quais se incluía o Imperador. Apesar do desejo pela paz, esses últimos encontravam-se resistentes à rendição incondicional, exigida pelos Estados Unidos após a vitória sobre a Europa, pois temiam as imposições que seriam feitas no pós-guerra em termos de política de governo e seus possíveis reflexos na cultura milenar do país. Por essa razão, segundo Nakagawa[4], o Japão começara a negociar informalmente os termos de paz com a Rússia, o que alarmou o governo norte-americano que claramente era contrário à uma expansão soviética no Leste Asiático. Nesse sentido, o bombardeio atômico garantiu a única e exclusiva ocupação do Japão pelos Estados Unidos.
Desta forma, em 25 de julho de 1945, Truman ordenou o prosseguimento para o primeiro bombardeio atômico da história e, no dia seguinte, dia 26 de julho, em comunicado internacional, realizou a Proclamação de Postdam ou a Proclamação dos termos para a rendição do Japão que, dentre outros: “Apelamos ao governo do Japão para que proclame agora a rendição incondicional de todas as forças armadas japonesas, e forneça garantias respeitáveis e adequadas de sua boa-fé nesta ação. A alternativa para o Japão é sua imediata e total destruição”[5].
Após o ataque à cidade de Hiroshima, o presidente Truman afirmou que a Proclamação havia deixado claro que o país nipônico sofreria sua “imediata e total destruição” frente à recusa de uma “rendição incondicional”. Contudo, muitos sobreviventes alegam que a mensagem fora insuficiente para o Japão compreender que estava em jogo uma nova tecnologia bélica que poderia destruir toda uma cidade em um único golpe. Porém, a rendição incondicional, naquele momento, não era de fato o que Truman buscava com seu comunicado. Como uma manobra política, sua intenção era fazer um discurso agressivo, sem espaços para negociações de paz e termos para a rendição, uma vez que, como já mencionado, era sabido que o pedido de uma “rendição incondicional” não seria aceito pelo Japão. Se a intenção fosse dar uma chance para o Japão se render, por que Truman teria dado a ordem para o bombardeio um dia antes de proferir a Proclamação de Postdam? E após gastar bilhões de dólares no desenvolvimento e construção das armas nucleares?[6]
No dia 29 de julho de 1945, em uma reunião no escritório do general LeMay, foi lido o documento redigido e emitido pelo presidente dos Estados Unidos no dia 25 daquele mesmo mês, consolidando o primeiro ataque nuclear. Ficou a encargo do piloto e coronel Paul Tibbets — que se encontrava na reunião — escolher as datas que apresentassem melhores chances de bom tempo e selecionar as tripulações dos seis bombardeiros que voariam nas duas missões atômicas[7].
Alguns dias depois da reunião no escritório do general LeMay foi decidida a data para a primeira missão: 6 de agosto de 1945. A tripulação deveria voar até o alvo primário, Hiroshima e, caso não houvesse boas condições para o bombardeio — céu claro e boa visibilidade do alvo — deveriam seguir para os alvos secundário e terciário, respectivamente as cidades de Kokura e Nagasaki.
Até aquele momento, de toda tripulação selecionada, apenas Paul Tibbets conhecia detalhes sobre as missões e, no dia 4 de agosto de 1945, ele reuniu todos que voariam para o Japão para lhes explicar o que deveriam esperar da bomba que lançariam: “A bomba que vocês jogarão é algo novo na história da guerra. É a arma mais destrutiva já produzida. Acreditamos que a bomba irá derrubar quase tudo em uma área de três milhas”[8].
Era a primeira vez que o esquadrão ouvia sobre a nova arma e, contudo, palavras como “fissão nuclear” ou “reação em cadeia” não foram mencionadas, pois ainda se fazia necessário esconder dos presentes a verdadeira natureza da bomba.
Segundo Nakagawa[9], no dia 05 de agosto de 1945, na base de Tinan, às 15:30[10], a bomba de urânio batizada como Little Boy encontrava-se rumo ao compartimento de bombas do Enola Gay – B-29 batizado com o nome da mãe de seu piloto, Paul Tibbts. Às 00:00 do dia 6 de agosto, Tibbets se dirigiu pela última vez às três tripulações que voariam na primeira missão atômica. Quinze minutos depois, os 26 homens envolvidos na missão foram ao encontro do capelão da base, capitão Willliam Downey, que realizou uma oração:
Pai Todo Poderoso, que ouvirá a oração daqueles que O amam, nós oramos ao Senhor para que estejas com aqueles que enfrentarão as Alturas de Seu céu e que carregarão a batalha aos nossos inimigos. Vigie-os e proteja-os, nós oramos ao Senhor, enquanto voam a seus destinos. Que eles, assim como nós, conheçam Sua força e poder, e armados com Seu poder possam trazer um rápido fim a essa guerra. Nós oramos ao Senhor que o fim da guerra venha logo, e que mais uma vez nós possamos conhecer a paz na Terra. Que os homens que voarão esta noite fiquem em segurança sob Seus cuidados, e que possam retornar em segurança para nós. Nós seguiremos em frente confiando no Senhor, sabendo que estamos sob Seus cuidados agora e sempre. Em nome de Jesus Cristo. Amém.[11]
A oração escrita e lida por Downey passava claramente a mensagem de que a missão que estavam prestes a executar era feita em nome de Deus, na busca pelo reestabelecimento da paz perturbada pelo inimigo. Os membros do esquadrão de Tibbets pediam a bênção e a proteção de Deus para executarem sua missão com excelência, partindo com a arma mais destrutiva já criada pelo homem até aquele momento.
A aniquilação do inimigo, desde os tempos mais remotos da humanidade, busca na religião o apoio para as atrocidades cometidas contra outros seres humanos que, no caso das guerras, não possuem rosto ou nome, mas apenas duas classificações: aliado e inimigo, ou seja, matável e não-matável. E é nesse difícil contexto que surgem os sobreviventes e as testemunhas, cujas memórias possuem o poder político — se ouvidas — de quebrarem com essa lógica da impessoalidade, podendo servir, entre outros, à denúncia das atrocidades cometidas pelos humanos contra outros humanos por interesses imperialistas, à serviço da dominação.
A tripulação que estava prestes a atacar a cidade de Hiroshima, arriscando suas vidas em nome dos Estados Unidos, de Deus e da paz, compartilhavam uma crença semelhante àquela dos japoneses, que também morreram e mataram durante a mesma guerra em nome do seu Imperador — na época a personificação de seu Deus e de seu país. Todos eles, abençoados por suas respectivas divindades e cumprindo ordens de seus governantes, arriscaram suas vidas por motivos diferentes daqueles que comandavam seus destinos e que os usaram como “bucha de canhão”. No caso do bombardeio atômico, o grau de dominação atinge um tal patamar que os indivíduos pedem a bênção de seu Deus para aniquilar milhares de pessoas de forma terrível, sem precedentes na história. Muitos hibakushas se questionam: que Deus, independente da religião, abençoa um genocídio?
Nesse mesmo contexto, afirmam que, logo após a explosão, ao verem a cidade em chamas, corpos mutilados e carbonizados, sobreviventes desnorteados, com olhares que refletiam um assombroso desligamento psíquico, ao ouvirem gemidos de dor por todos os lados e gritos desesperados de socorro de pessoas presas embaixo dos escombros das construções destruídas e sendo engolidas pelo fogo, chegaram a pensar que haviam morrido e, pelos seus pecados, haviam sido castigados por Deus e encontravam-se naquilo que concebiam como o inferno, pois a imagem que testemunharam foi descrita por milhares de sobreviventes como “a imagem do inferno católico na Terra”. Esse pensamento perdurou até a visita do Papa João Paulo II ao Memorial da Paz de Hiroshima em fevereiro de 1981 que, ao ouvir que a catástrofe que se passara na cidade poderia ter sido um castigo divino proclamou publicamente que o acontecimento do dia 6 de agosto de 1945 não fora obra de Deus, mas exclusivamente uma obra da humanidade.
Retornando ao dia do bombardeio, às 00:25min o alarme de ataque aéreo soara na cidade de Hiroshima deixando a população de prontidão em seus abrigos. Sem nenhum sinal de ataque, às 2h10min o alarme foi desligado, permitindo que a população retornasse às suas casas para dormir[12]. Tratava-se de um avião de reconhecimento climático, que passara sobre a cidade para não apenas monitorar sua visibilidade, mas também para criar uma distração e aumentar as chances dos três bombardeiros envolvidos na missão atômica de chegarem ao alvo sem serem anunciados. Por essa razão, ao longo da noite até a hora da explosão quatro aviões norte-americanos deveriam atravessar o céu de Hiroshima e disparar o alarme de ataque aéreo sem ocasionar nenhuma intercorrência.
Às 2h20min, na ilha de Tinan, a tripulação do Enola Gay e dos outros dois bombardeiros que o acompanhariam começou a embarcar. Sem que ninguém soubesse, Tibbets certificou-se de que uma pequena caixa contendo cápsulas de cianeto em doses letais encontrava-se em um de seus bolsos internos. Caso tivessem problemas na missão e houvesse risco de acabarem como prisioneiros em solo japonês, distribuiria as cápsulas para os demais e lhes daria duas opções: a arma que levavam consigo ou a cápsula de cianeto. Às 2h27min os motores dos bombardeiros foram ligados e às 2h45min decolaram rumo ao Japão[13].
Em Hiroshima, como mencionado, a população estava em meio a uma noite muito conturbada, tendo — como planejado pelos norte-americanos — o alarme de ataque aéreo sido acionado e desligado três vezes durante a madrugada, fazendo a população correr para seus abrigos em todas as ocasiões. Dentro do Enola Gay, a bomba Little Boy começou a ser armada às 6:30min. Às 7:09min o quarto e último avião de reconhecimento climático passou pelas redondezas de Hiroshima, acionando pela última vez o alarme de ataque aéreo na cidade e levando novamente a população para seus abrigos. Às 7h24min Tibbets fora informado que Hiroshima apresentava perfeitas condições para o bombardeio, isto é, céu claro e sem nuvens. Às 7:31min o alarme de ataque aéreo foi desligado, porém, a população de Hiroshima já não mais voltaria a dormir, mas se preparariam para começar suas obrigações diárias[14].
Às 8:05min Yoshi Muraki se dirigia à escola Oshimo Middle School para mulheres, caminhando ao lado da ponte Aioi — ponte que por seu formato em “T” fora escolhida como alvo para o bombardeio — e observando os alunos do sétimo e oitavo ano já trabalhando nas áreas de demolição[15]. Às 8h12min, dentro do Enola Gay, a tripulação fora avisada que estavam sobre o alvo. Dois minutos depois, em Saigo, 19 milhas a leste de Hiroshima, um observador avistou os três bombardeiros se aproximando e correu para avisar o centro de comunicações baseado no castelo de Hiroshima, que na época era uma instalação militar. No mesmo minuto, Tibbets alertou todos os tripulantes para que se preparassem e, neste mesmo instante, Thomas Ferebee, responsável por liberar a bomba, acionou o botão que contaria 15 segundos para o seu lançamento. Precisamente às 8h15min17segs, as portas do compartimento de bomba do Enola Gay se abriram e em Tinan todos escutaram ansiosos e tensos a voz de Ferebee dizer: “bomba liberada” [16].
6 de agosto de 1945: explosão atômica e suas testemunhas
Como planejado pelo Projeto, os três bombardeiros envolvidos no lançamento da primeira bomba atômica entraram nos céus da cidade de Hiroshima sem serem anunciados pelos alarmes de ataques aéreos, que soaram várias vezes ao longo da noite, mas falharam em alertar a população para o verdadeiro ataque. Quando foi possível, em Saigo, avistar os B-29s, já era tarde, pois a bomba já havia deixado o Enola Gay.
Após liberada, a bomba caiu por 43 segundos e explodiu a 600 metros de altura do solo, a 300 metros a sudeste da ponte Aioi, alvo escolhido para o ataque. A explosão no ar e não no solo foi meticulosamente calculada pelos cientistas do Projeto como uma forma de potencializar a explosão e os danos dela decorrentes. Ao explodir, a bomba liberou gigantescas quantidades de energia que fizeram reluzir no céu um flash muito intenso, descrito por muitos sobreviventes como semelhante a um flash de magnésio utilizado pelas máquinas fotográficas, mas em proporções monstruosas. A luz emitida era tão forte que pode ser vista a quilômetros de distância do epicentro[17][18].
A bomba gerou uma gigantesca e monstruosa bola de fogo, semelhante a um pequeno sol com o diâmetro de 280 metros e atingiu uma temperatura de aproximadamente três mil e quinhentos graus Celsius. Essa bola de fogo causou uma gigantesca diferença de pressão e, consequentemente, foi seguida por uma violenta explosão em forma de onda de choque e calor. Em apenas segundos, a onda de choque atravessou 3,7 quilômetros de distância ao redor do epicentro, exercendo uma força de 19 toneladas por metro quadrado nos primeiros 500 metros de distância. O resultado dessa primeira onda foi a rápida queda de pressão no exato local da explosão que, como reflexo, “sugou” violentamente uma grande quantidade de ar, dando origem a uma onda reversa na direção das áreas ao redor do hipocentro e erguendo no ar uma imensa nuvem em formato de cogumelo. A onda de choque foi acompanhada por uma onda de calor que liberou grandes quantidades de radiação em todas as direções, destruindo e queimando tudo nos 1,5 quilômetros ao redor do epicentro e causando destruição e incêndios parciais entre 1,5 e 4,0 quilômetros[19].
Muraki estava dentro do prédio de sua escola quando ouviu o barulho dos B-29s e, em seguida, foi surpreendida por um clarão amarelo muito intenso e uma explosão ensurdecedora. O impacto da explosão a levantou no ar e, em seguida, a fez perder a consciência. No mesmo instante, o hibakusha Tsuda Furuta estava saindo de casa para se juntar ao seu grupo de trabalho quando viu o clarão no céu e ouviu um barulho estremecedor. Recorda que foi jogado no chão, onde ficou deitado protegendo seus olhos e ouvidos até ter coragem de se mexer. Quando acordou, Muraki demorou um pouco para assimilar onde estava. Percebeu que estava tudo escuro e que se encontrava debaixo de uma calha, mas curiosamente a calha não pertencia à escola onde estava quando a bomba explodiu. Sentiu uma grande confusão. Olhou para o lado e viu um estudante inconsciente com os olhos perfurados por estilhaços de vidro. Começou a se mexer e conseguiu se desvencilhar dos escombros. Ao ficar de pé viu que tudo ao seu redor estava destruído. Desnorteada, começou a caminhar e viu pessoas caminhando em filas, uma atrás da outra, com olhares sem vida e sem consciência, em um estranho silêncio, aparentemente sem saberem para onde estavam indo. Olhou com atenção e se espantou ao perceber que todos caminhavam nus.
A hibakusha Sueko Kamatsuka estava na capela esperando a missa da manhã quando a explosão a soterrou debaixo da construção do prédio. Assim que conseguiu se desvencilhar dos entulhos viu uma Hiroshima totalmente destruída. Reparou que não havia construções em pé e que não havia espaço para caminhar por conta dos detritos que se espalhavam por todos os lados. Avistou alguns colegas e decidiram caminhar juntos em direção ao refúgio que lhes fora designado em caso de bombardeio. Quando estavam partindo, Kamatsuka ouviu gemidos abafados de socorro:
Apesar de ninguém visível, eu podia dizer que, devido à quantidade de gemidos, havia muitas pessoas presas embaixo da parede derrubada. Nós tentamos levantar a parede, mas somente com a força de algumas garotas a parede não se movia. Nós chamávamos pelos nossos colegas de sala soterrados embaixo da parede para os encorajar; não havia mais nada que pudéssemos fazer. O tempo passou em frustração. Não sabíamos mais o que fazer. Foi quando nosso diretor da escola, Sr. Takuo Matsumoto, apareceu e nos mandou fugir. “É uma bênção vocês terem sobrevivido. O fogo está se aproximando, então eu quero que vocês escapem imediatamente para o Mt. Ushita. Certo?”, ele disse, quase gritando. Percebemos que havia chegado a hora de dizermos adeus para nossos amigos. Ficávamos olhando para trás, pedindo desculpas em nossos corações e juntando nossas mãos em oração. Eu ainda, até hoje, ouço meus amigos suplicando por ajuda.[20]
Nesse mesmo local, a sobrevivente Mitsuko Koshimizu acordou coberta com o sangue da amiga que, alguns instantes antes da explosão, estava conversando com ela. Desesperada, e sabendo que estava soterrada, desvencilhou-se dos escombros e conseguiu sair debaixo do prédio demolido. Começou a caminhar quando ouviu uma amiga pedindo socorro. Koshimizu conta que tentou de todas as formas remover os escombros que prendiam a amiga, mas sem sucesso. Conta que jamais se esquecerá do desespero da amiga frente à possibilidade de morrer no fogo:
“Por favor, me ajude! Corte minha perna para me salvar!” gritou minha amiga. Era um choro estridente de alguém que estava encarando a morte. O fogo que nos cercava estava se aproximando. Eu ainda posso ouvir a voz da minha amiga ressoando no meu ouvido. Tudo o que eu pude dizer foi, “Eu sinto muito, eu realmente sinto muito por não poder te salvar.” Ela ficou em silêncio com minhas palavras. Seu silêncio me agarrou de tal forma que eu não consegui fugir.[21]
Os raios de calor liberados pela explosão atômica fizeram com que Hiroshima atingisse temperaturas muito elevadas e, consequentemente, incêndios alastraram-se por toda a cidade queimando tudo o que havia restado da onda de choque. Furuta encontrou os incêndios quando se livrou dos escombros e caminhou até a linha do streetcar[22]. Percebeu que estava rodeado pelo fogo e começou a buscar uma saída para fugir das chamas e chegar ao seu local de refúgio. Recorda com pesar que num primeiro momento não conseguia entender o motivo pelo qual todas as pessoas que via estavam caminhando nuas, com os trapos de suas roupas penduradas pelo corpo. Somente depois de chegar ao refúgio, quando pôde olhar atentamente para os gravemente feridos, que notou com horror que não se tratava de trapos pendurados, mas de pele queimada que se desprendia do corpo. A compreensão daquela imagem o assombrou profundamente.
O mesmo assombro assolou Akiyama, que ao prestar ajuda aos refugiados que chegavam das regiões próximas ao hipocentro, observava com horror suas roupas e peles se desprendendo de seus corpos como trapos. Afirma que “Era como assistir o próprio inferno”[23]. Um cenário escuro, rodeado pelo fogo, com corpos de pessoas mortas por todos os lados, gemidos e súplicas angustiadas de pessoas moribundas suplicando por um pouco de água e a sensação de impotência daqueles que desejavam prestar algum tipo de socorro. Sequer água podia ser dada aos que morriam de sede pois, naquela época, circulavam panfletos que diziam que água agravaria as condições ou desencadearia as mortes precoces dos feridos com queimaduras.
Como mencionado, após a explosão uma grande nuvem em formato de cogumelo se ergueu no ar e podia ser observada a quilômetros de distância do hipocentro. Essa grande nuvem ficou suspensa aproximadamente por 20 a 30 minutos, e foi se desfazendo à medida que os ventos sopravam na direção noroeste da cidade, local onde ocasionou a chamada “chuva negra”. A cor da chuva foi determinada pela grande quantidade de poeira proveniente da explosão e dos incêndios. Suas gotas eram grandes, pesadas e geladas. A chuva negra também continha grande quantidade de radiação. Testemunhos indicam que aqueles que foram expostos a ela morreram poucos dias depois[24].
Estima-se que aproximadamente 350.000 pessoas se encontravam em Hiroshima no momento da explosão da bomba atômica e a cidade de Hiroshima estima que até dezembro de 1945, 140.000 pessoas morreram[25]. Segundo Nakagawa[26], as estatísticas, contudo, não explicam a forma como essas milhares de vítimas morreram. A maior parte dos testemunhos de hibakushas que trazem a morte de outras pessoas aponta que as vítimas gravemente feridas viveram horas de uma morte solitária e agonizante. O sobrevivente Iida, em seu relato sobre o período compreendido entre os dias 6 e 9 de agosto, descreve a terrível morte de uma jovem de aproximadamente 18 anos que passou seus últimos momentos chamando pelo filho, um bebê que se perdeu na explosão. Uma morte que marcou sua memória pelos graves ferimentos que ela carregava em seu corpo, pela expressão de preocupação e angústia que ela carregava em seu rosto, pela voz fraca e melancólica chamando apenas o nome de seu bebê, pelos seios que derramavam o leite que jamais seria bebido.
Após a explosão, dentro do Enola Gay houve um silêncio absoluto da tripulação. Às 14h58min do dia 6 de agosto de 1945, o bombardeiro Enola Gay pousou na base de North Field após ter ficado 12 horas e 13 minutos no ar. Tibbets e sua tripulação desembarcaram ao som de aplausos. Enquanto a tripulação dos bombardeiros era aplaudida, o sobrinho de 6 anos de Tsuda morria nos braços da mãe em decorrência dos ferimentos causados pela queda da casa onde estavam no momento da explosão e pela radiação a que foram expostos. Já Muraki descobria que sua família estava viva, refugiada em um templo chamado Yuishinji, e corria para encontrá-los. Chegando lá viu os pais cobertos por bandagens e sua irmã com a parte superior do corpo carbonizada pelas queimaduras, mas viva.
A aproximação da noite fez com que os incêndios que engoliam Hiroshima ficassem mais intensos e vivos. Muitas testemunhas relatam ter passado horas olhando para as chamas ao anoitecer, ainda paralisadas pelo trauma, sem conseguirem sentir ou pensar. Mesmo longe dos incêndios, as pessoas que os contemplavam relatam o horror de sentirem a brisa quente carregada de um cheiro forte de carne humana sendo queimada.
Após a confirmação do “sucesso” do bombardeio, o presidente Harry Truman transmitiu um pronunciamento para o mundo inteiro:
Dezesseis horas atrás um avião americano jogou uma bomba em Hiroshima, uma importante base militar japonesa. A bomba era mais poderosa que 20.000 toneladas de T.N.T. Sua explosão foi mais de duas mil vezes superior ao Grand Slam britânico, que é a maior bomba já usada na história da guerra.
Os japoneses começaram a guerra pelo ar em Pearl Harbor. Eles pagaram por isso amplamente. E o fim ainda não chegou. Com essa bomba nós agora adicionamos um novo e revolucionário aumento em termos de destruição, para suplementar o poder crescente de nossas forças armadas. Na sua forma presente, estas bombas já estão em produção e formas ainda mais poderosas estão sendo desenvolvidas.
É uma bomba atômica. É o aproveitamento do poder básico do Universo. A força de onde o sol extrai seu poder foi solta contra aqueles que trouxeram a Guerra para o Extremo Oriente.[27]
Após o pronunciamento o Vaticano se manifestou dizendo, segundo Thomas e Witts, que a nova bomba era uma “conclusão catastrófica para as surpresas apocalípticas da guerra”[28]. Comparou ainda a nova arma com a invenção do submarino por Leonardo Da Vinci, salientando que o artista, diferentemente dos cientistas que criaram a bomba, destruiu sua criação em nome da preservação da humanidade.
Como previsto pelos Estados Unidos, o bombardeio atômico dividiu opiniões e foi alvo de discussões ao redor do mundo, no entanto, o que os preocupava era a perspectiva de que o ataque à cidade de Hiroshima tivesse ferido o orgulho japonês de tal forma que poderia ter afastado o Japão da rendição[29]. Justificando dessa forma, os líderes norte-americanos decidiram lançar a última bomba que o Projeto havia produzido: a bomba de plutônio batizada de Fat Boy em homenagem ao primeiro-ministro inglês, Winston Churchill. O segundo ataque nuclear foi concebido como uma forma de forçar os japoneses a se renderem, e com a intenção de mostrar ao mundo que a bomba de Hiroshima não era a única que eles haviam produzido, causando terror e medo em todos os países, aliados e inimigos, e estabelecendo de vez a supremacia militar norte-americana sobre o globo.
Desta forma, no dia 09 de agosto de 1945, o comandante Charles Sweeney, designado para a segunda missão atômica, voou em direção à Kokura, alvo primário para aquele segundo bombardeio. Porém, ao chegar na cidade deparou-se com pouca visibilidade do alvo e forças inimigas no solo prontas para contra-atacar. Sweeney, portanto, decidiu ir em direção ao alvo secundário, a cidade de Nagasaki, onde também não encontrou boa visibilidade do alvo. Entretanto, sua tripulação decidiu jogar a bomba de qualquer modo, mirando no alvo da melhor maneira possível e lançando a segunda bomba atômica. Apesar de mais poderosa, a bomba de plutônio usada em Nagasaki não causou a mesma devastação se comparada à bomba de urânio usada em Hiroshima. Além da pouca visibilidade no momento do lançamento — o que fez com que a bomba explodisse fora do seu alvo — a geografia de Nagasaki felizmente não favoreceu o potencial destrutivo da arma nuclear[30].
Os dois bombardeios tiveram o efeito esperado pelos norte-americanos: envolveram o mundo em um manto de medo e colocaram o Japão sob tamanha miséria e sofrimento que não havia outra saída além da rendição incondicional, sob quaisquer termos. Desta forma, no dia 15 de agosto de 1945, o Imperador Hirohito se dirigiu formalmente à nação japonesa através de uma transmissão de rádio, algo até então sem precedentes. Para muitos de seus súditos, essa era a primeira vez em que escutavam a voz do Imperador, o que emocionou a população em geral. Segundo uma carta que Tanimoto, um dos sobreviventes entrevistados por John Hersey, enviou a um colega americano:
No período Pós-Guerra, uma coisa maravilhosa na nossa história aconteceu. Nosso Imperador transmitiu sua própria voz através do rádio, diretamente para a gente, pessoas comuns do Japão. No dia 15 de agosto, nos disseram que algumas notícias de grande importância poderiam ser ouvidas e todos nós deveríamos ouvi-las. Então eu fui para a estação de trem de Hiroshima. Muitos civis, todos com bandagens, alguns sendo ajudados pelos ombros de suas filhas, alguns sustentando seus pés feridos com varetas, ouviram à transmissão, e quando perceberam que era o Imperador, choraram com pesadas lágrimas em seus olhos, ‘Que bênção maravilhosa o próprio Tenno ter se dirigido a nós e nos deixado ouvir sua própria voz. Nós estamos muito satisfeitos por tão grande sacrifício.’ Quando souberam que a guerra terminara – que o Japão havia sido derrotado, eles, claro, ficaram profundamente decepcionados, mas seguiram o comando de seu Imperador para manterem o espírito calmo, fazendo sacrifícios com todo o coração para a eterna paz do mundo […].[31]
Porém, diferentemente do relato do reverendo Tanimoto, grande parte da população de Hiroshima só soube da derrota do Japão e do final da guerra no dia seguinte ao pronunciamento do Imperador. Com a cidade completamente destruída, havia poucos rádios ou outros meios de comunicação disponíveis. Muitos hibakushas relatam que, mesmo quando souberam do fim da guerra, frente ao que acabara de acontecer na cidade, não conseguiram pensar na derrota. Kamatsuka afirma que estava tão ocupada cuidando dos feridos que não teve tempo para se lamentar ou se decepcionar por terem perdido a guerra. Pelo contrário, a sensação que ela teve foi a de alívio por não ter mais que ouvir os barulhos dos alarmes de ataques aéreos.
Outra sobrevivente, Kazuko Kay, diz que sabe o quanto o Japão havia sido agressivo antes e durante a guerra e, portanto, não ficou triste com a rendição. Afirma que os interesses das nações não levam em consideração as vítimas de suas guerras, ou seja, não se recordarão ou lamentarão a morte de seus familiares, amigos, de cada um de sua comunidade que morreu cruelmente não apenas no dia do bombardeio, mas ao longo de toda a guerra e no pós-guerra, relembrando que após a rendição milhares de pessoas morreram de fome no país. Segundo Kay, todas essas terríveis mortes que ela testemunhou ao longo de mais de 7 anos não passaram de “casualidades de guerra”.
Publicamente, o governo norte-americano declarou que o lançamento das bombas atômicas se fez necessário frente à recusa do Japão em se render. Defenderam que as novas armas, embora tenham causado inevitáveis mortes, também pouparam milhares de vidas ao reestabelecerem a paz. Seus soldados puderam voltar para casa e o orgulho norte-americano ferido em Pearl Harbor — ataque que supostamente colocou os Estados Unidos oficialmente na guerra — estava restaurado. Sobre isso, Hobsbawm (2008) afirma:
A longo prazo, os governos democráticos não resistiram à tentação de salvar as vidas de seus cidadãos, tratando as dos outros países inimigos como totalmente descartáveis. O lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945 não foi justificado como indispensável para a vitória, então absolutamente certa, mas como um meio de salvar vidas de soldados americanos. É possível, no entanto, que a ideia de que isso viesse a impedir a URSS, aliada dos EUA, de reivindicar uma participação preponderante na derrota do Japão tampouco estivesse ausente das cabeças do governo americano.[32]
Escutando memórias traumáticas
Como meticulosamente planejado pelos Estados Unidos, as bombas atômicas encerraram a guerra, impuseram a influência militar norte-americana sobre o mundo e inauguraram a era e a corrida atômica, inscrevendo ainda mais a barbárie como parte integrante da sociedade moderna. Seus efeitos recaem sobre a população que, para sobreviver às violências dos Estados autoritários, frente a violação generalizada dos direitos humanos, torna-se pouco solidária e fria. Essa frieza pode conduzir ao isolamento da pessoa, que passa a se encontrar impedida de ser tocada pela dor do outro e impossibilitada de se identificar com outro ser humano que sofre, respondendo às feridas sócio-históricas com indiferença. Essa alienante indiferença não permite a apropriação dos crimes cometidos pelos humanos contra outros humanos o que, como já é sabido, pode conduzir ao esquecimento de um passado criminoso e condenar o ser humano a repetir e a reviver as tragédias históricas não elaboradas.
As memórias das testemunhas das catástrofes do século XX aparecem nesse contexto como uma importante contraposição àquela indiferença, uma vez que suas narrativas, quando de fato ouvidas, possuem o poder de quebrar a impessoalidade imposta pela história oficial que, segundo Hobsbawm (2008), é aquela escrita e propagada pelos vencedores com a intenção, entre outros, de alienar através de deslocamentos e deformações dos fatos. Apesar de impactante e por vezes possivelmente traumática, essa quebra da indiferença ocorre de forma muito delicada e singular no espaço estabelecido pelas diversas formas de linguagem e comunicação entre testemunha e a pessoa que a ouve.
Transmite-se, nesse espaço, não apenas a literalidade daquele terrível cenário vivenciado pelos sobreviventes, mas também as lacunas e os vazios responsáveis por manter aquelas vivências no seu estado mais cru, uma vez que impedem a assimilação das cenas vistas, ouvidas ou sentidas em experiências que possam ser propriamente reivindicadas pelas próprias testemunhas.
Essa transmissão cria um endereçado, uma pessoa que testemunha o testemunhar do sobrevivente através de um processo que pede um acompanhamento cuidadoso das frases, atenção às pausas, observação paciente da incansável busca da testemunha por traduzir suas lembranças e pensamentos em palavras e sons, que muitas vezes solicitam reformulações de sentenças inteiras. É um acompanhar, nas palavras de Clarice Lispector, da coragem dos sobreviventes de se depararem com o abismo existente entre o que se viveu e o que pode ser contado: “Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso!”[33]
O testemunho é ainda composto por outros elementos, que não permitem enganos sobre a transmissão de uma vivência do horror. Esses dizem respeito a uma escuta muito delicada e sensível, que não fica restrita àquilo que os ouvidos podem captar, mas é também atenta as expressões faciais, aos movimentos corporais, aos gestos, as risadas, ao ritmo da respiração, ao movimento do fechar dos olhos, as lágrimas que marejam os olhos ou que escorrem pelo rosto, aos momentos de embargo da voz, de choro silencioso, de soluços.
Essa forma de dar testemunho envolve o endereçado em um enigma de tipo laplancheano e o lança dentro de um complexo demasiadamente inquietante, de onde ele presencia o nítido conflito vivido — em ato e em retrospectiva — pelo sobrevivente que busca narrar sobre sua vivência da forma mais fidedigna possível, mas que ao longo de sua fala, percebe que está o tempo todo tropeçando em lembranças ininteligíveis.
Contudo, apesar de ininteligíveis, ou justamente na busca por alguma compreensão de suas próprias lembranças, os hibakushas de Hiroshima parecem não se cansarem de falar sobre suas vivências, contrariando, de alguma forma, a hipótese de Primo Levi de que “quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo”[34], argumento esse também sustentado pela teoria da irrepresentabilidade traumática[35]. No entanto, é notável a quantidade de vezes que a frase “nunca falei sobre isso antes” — a respeito das lembranças e vivências do dia do bombardeio — foi proferida pelos hibakushas, que ao serem questionados sobre esse fato alegaram justamente a falta de um endereçado que realmente estivesse interessado em ouvi-los. Muitos afirmaram que ao longo da vida perceberam que suas lembranças entristeciam ou perturbavam os outros, e que por vezes chegaram a ser repreendidos pela suposta inadequação de suas falas. Outros sobreviventes ainda disseram que, por conta da discriminação ligada à radiação no período pós-guerra, o silêncio era uma forma de proteger a si mesmo e a sua família. Esses relatos parecem evidenciar não a impossibilidade de falar sobre as vivências traumáticas, mas a dificuldade de encontrar quem as escutasse, e essa ausência resultou em um silenciamento das testemunhas do bombardeio atômico de Hiroshima.
Nesse sentido, o sonho — ou melhor o pesadelo — a que Primo Levi se refere no começo de seu livro Os afogados e os sobreviventes (2004) parece bem preciso:
Quase todos os sobreviventes, oralmente ou em suas memórias escritas, recordam um sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento, variado nos particulares mas único na substância: o de terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se virava e ia embora silenciosamente.[36]
Para um aprofundamento dessa discussão acerca da dificuldade de encontrar um endereçado que os escutasse e o silenciamento a que foram condenados os hibakushas, torna-se importante uma breve consideração metodológica no que diz respeito às entrevistas realizadas com sobreviventes na cidade de Hiroshima. Ao chegar à cidade no início de 2018[37], a autora deste artigo foi convidada para proferir uma palestra e discutir o tema de seu trabalho com pesquisadores japoneses que também investigam e estudam os testemunhos de hibakushas.
Na ocasião, a autora foi alvo de duras críticas ao apresentar o método e a intenção de realizar entrevistas semi-abertas e com múltiplos e longos encontros que visava ao registro de lembranças dos sobreviventes, um registro que não estivesse restrito ao dia do bombardeio, mas que contemplasse a forma como o trauma daquele acontecimento se desdobrou ao longo da vida dos hibakushas, influenciando suas memórias como um todo. Foram também apresentadas as orientações de entrevistas em psicologia social tais como desenvolvidas e praticadas por Ecléa Bosi e José Moura Gonçalves Filho[38].
Em termos gerais, as críticas diziam respeito principalmente a uma questão cultural. Informaram que no Japão era um grande desrespeito entrevistar pessoas que passaram por vivências difíceis — ainda mais idosos — sem a apresentação prévia de um roteiro de perguntas. A apresentação prévia permitiria aos entrevistados prepararem suas respostas ou escolherem as perguntas que responderiam ou não, sendo muito malvistos aqueles que, com suas perguntas surpresas, pudessem constranger, incomodar ou mesmo entristece-los.
Como resposta a esses comentários a autora informou que durante sua pesquisa de mestrado havia realizado parte de seus estudos no acervo do Memorial da Paz de Hiroshima, percebendo que os testemunhos ali registrados apresentavam muitas semelhanças entre si e pareciam ter, justamente, seguido um roteiro prévio e fechado de entrevistas que, de certa forma, acabaram por uniformizar os relatos. Na ocasião solicitou uma reunião com a equipe do memorial responsável pelas entrevistas e soube da existência de um roteiro de perguntas entregue previamente aos sobreviventes. Soube ainda que os últimos foram solicitados a se aterem de forma direta e sucinta estritamente as respostas das perguntas. Em posse destas informações a autora afirmou ter percebido a necessidade — para uma investigação mais profunda dessas lembranças em termos psicanalíticos e da psicologia social para os temas ligados ao trauma psíquico — de uma outra abordagem de entrevistas, motivo pelo qual se encontrava na cidade no contexto de sua pesquisa de doutorado.
A réplica foi feita através de uma discussão acerca da ética em pesquisa com sobreviventes tanto no Brasil quanto no Japão, a qual foi respondida com a aprovação dos comitês de ética para ambos as universidades brasileira e japonesa em que a pesquisa estava sendo desenvolvida. Frente a isso, o debate ganhou ainda mais consistência no que diz respeito a importantes questões culturais, as quais a autora concordou que deveriam ser levadas em consideração e seriam, portanto, adicionadas as informações prévias que os hibakushas receberiam antes de serem entrevistados.
Ao final do encontro, os pesquisadores japoneses estavam divididos em dois grupos: um que acreditava que era de grande valor humano a realização de novas entrevistas com um método diferente daquele utilizado pelos japoneses e, portanto, encorajaram a autora a entrevistar o máximo de hibakushas possíveis ao longo de sua estada no país; e outro que dizia que se a autora desejasse realizar uma pesquisa no Japão, deveria seguir à risca as regras culturais do país, afirmando que a pesquisa proposta estava condenada ao fracasso, pois certamente nenhum hibakusha se “submeteria” a um tal método de entrevistas.
As críticas levantadas pelo último grupo inquietaram a autora, que solicitou em caráter de urgência uma reunião com os três orientadores daquela pesquisa: José Moura Gonçalves Filho (IPUSP), Stephen Frosh (Birkbeck University of London) e Robert Alan Jacobs (Hiroshima City University). Após relatar o ocorrido no encontro com os pesquisadores japoneses, os três orientadores unanimemente encorajaram a autora e seguir com os planos originais de entrevistas.
No dia seguinte, a autora se reuniu ainda com alguns amigos pesquisadores na cidade, incluindo o voluntário da paz do Memorial da Paz de Hiroshima, Ken Harada, e relatou suas preocupações acerca de seu trabalho. Foi decidido que o memorial ajudaria a agendar os encontros, caso houvesse interessados e que, respeitando as regras culturais japonesas, ao invés da autora entrar em contato com os hibakushas, eles deveriam se voluntariar para participar da pesquisa, buscando eles próprios o memorial para solicitar e agendar os encontros.
Ken Harada ainda propôs chamar o jornal de ampla circulação da cidade, Chugoku Shimbun, para que realizassem uma entrevista com a autora sobre seu trabalho e descrevessem minuciosamente a proposta de entrevistas. Dessa forma, apenas entrariam em contato com o memorial os sobreviventes que não apenas concordassem com o método proposto, mas que realmente desejassem falar abertamente sobre suas vivências.
No mesmo dia da publicação da matéria alguns hibakushas entraram em contato com o memorial e as entrevistas começaram a ser agendadas. A proposta inicial da autora — sabendo que o número de sobreviventes de primeira geração diminui a cada ano — era de entrevistar extensivamente 3 pessoas. No entanto, mais de 3 sobreviventes buscaram o memorial e, portanto, ficou decidido que todos os hibakushas que desejassem ser entrevistados seriam ouvidos tanto quanto o tempo da autora no país permitisse. Ao final de seu estágio (50 dias) a autora constatou que trabalhou com os sobreviventes de domingo a domingo, das 8 às 21 horas, tendo entrevistado 13 hibakushas e, infelizmente, deixando uma lista de espera para uma próxima visita[39].
Contudo, tendo em vista toda a discussão metodológica e cultural no início do estágio, a autora ficou surpresa com o número de sobreviventes que a procuraram durante seu período no Japão. Por essa razão — e acreditando ser de grande valor metodológico — passou a perguntar e levantar hipóteses com os próprios sobreviventes sobre o motivo pelo qual eles haviam decidido participar das entrevistas.
Para fins da discussão proposta neste artigo, duas são as razões levantadas importantes de serem mencionadas: a primeira diz respeito a matéria publicada pelo jornal Chugoku Shimbun. Nela havia uma fotografia da autora que deixava evidente sua descendência nipônica, no entanto, também evidenciava tratar-se de uma pesquisadora estrangeira. Esses dados fizeram com que os sobreviventes imaginassem que a cultura japonesa não lhe era totalmente estranha, ou seja, não apenas a autora compreenderia detalhes de suas histórias, como também sentiram que poderiam falar abertamente sobre certos temas que, em circunstâncias normais, jamais abordariam com outros japoneses. Ficou claro que a mesma preocupação que os pesquisadores japoneses possuíam em relação aos sobreviventes — de incomodá-los ou perturbá-los com suas perguntas — era vivida pelos hibakushas, que também possuíam o receio de incomodar, perturbar ou ainda entristecer seus interlocutores.
A segunda diz respeito a afirmação dos sobreviventes de que há muito tempo desejavam falar abertamente sobre suas memórias mas que, porém, no Japão são apenas questionados pontualmente sobre o dia do bombardeio. Sentem que, por questões culturais, até mesmo seus familiares e amigos não possuem a liberdade de lhes endereçarem perguntas mais pessoais acerca do evento atômico, com o receio de constranger ou incomodá-los. Ao mesmo tempo, e partilhando da mesma cultura, o próprio hibakusha sente que não pode falar livremente sobre suas lembranças, pois ele também teme perturbar ou incomodar os outros com suas histórias e pensamentos.
Portanto, na cultura japonesa, fazer perguntas muito pessoais à pessoas desconhecidas é sinal de inconveniência, assim como propor entrevistas sem entregar com antecedência um roteiro de perguntas, não dando ao sobrevivente a possibilidade de previamente pensar e estruturar suas respostas, deixando-o à mercê de questões que possivelmente não saiba como responder, impondo-lhe, segundo a cultura nipônica, um certo constrangimento de precisar articular um pensamento que possa conduzir a uma lembrança muito pessoal, ou ainda, muito reveladora.
Entretanto, foi justamente através dessa inconveniência cultural que foi possível observar e viver com os hibakushas os momentos de silêncio propostos pela angústia traumática e romper a impessoalidade formal no ambiente da entrevista e, dessa forma, adentrar, como mencionado anteriormente, àquele complexo que implica na criação de um endereçado para as narrativas da testemunha.
A discussão entre os pesquisadores japoneses e seus argumentos contra a realização de entrevistas múltiplas, longas e semi-abertas, contrapõe-se ao desejo demonstrado por muitos sobreviventes que aceitaram e/ou solicitaram ser entrevistados. Nesse caso específico parece que a inadequação cultural protege mais os pesquisadores e ouvintes do que os próprios sobreviventes. Além disso, apesar de ser um processo muito delicado e difícil, nenhuma pergunta realizada foi deixada sem resposta. Pelo contrário, as perguntas pareciam convidar os hibakushas a incansavelmente descrever, pensar, lembrar e, nesse processo, a construir uma narrativa. Foram muitos os momentos em que o sofrimento narrado era palpável, como por exemplo, o esforço que faziam para tentar transmitir uma cena inquietante, um sentimento estranho, uma sensação difícil, um cheiro ligado ao dia da explosão ou nos momentos em que os depoentes eram tomados pela saudade daqueles que morreram no bombardeio.
Entretanto, superados esses momentos de intenso sofrimento, parecia que algum tipo de alívio acontecia no espaço da entrevista. Era como se naquele momento o depoente tivesse se proposto a enfrentar a difícil tarefa de reviver os acontecimentos traumáticos, reivindicando-os, só que dessa vez não o fez sozinho, e sim, acompanhado por alguém que não se recusou a ouvi-lo, mas que ao contrário, propôs-se a acompanhá-lo, respeitando seu tempo e suportando com ele os difíceis momentos de angústia.
Tudo isso faz parte daquele complexo já mencionado, um local que a testemunha habita, um poço escuro e profundo no qual nada se vê a não ser com os olhos fechados, e aquilo que se ouve é da ordem do eco repetitivo, que em suas consecutivas reverberações, muitas vezes perde força e desaparece antes de encontrar um endereçado.
Esse complexo somente pode ser visitado e adentrado quando se está face a face com os sobreviventes, uma vez que é no espaço interpessoal, na relação implicitamente estabelecida no momento do contato, da troca de olhares, que a testemunha convoca seus fantasmas para carregar consigo aquele que a ouve. E esse movimento é aquele que possui o poder de romper as barreiras da frieza e da indiferença impostas pela alienação.
Por esse mesmo motivo, são elementos de difícil apreensão nos testemunhos escritos que, apesar de impactantes, assemelham-se aos testemunhos que chamo de “narrativas habituais”[40], mais literais e mais estruturadas, mais compostas por defesas e por palavras corrigidas e revisadas por outrem para viabilizar suas publicações, processos esses que retiram a espontaneidade, o intraduzível, o enigmático da transmissão traumática. E é justamente o excesso transmitido nas expressões de desespero e sofrimento do sobrevivente, aquele que não encontra refúgio na linguagem oral e escrita, que extravasa compondo uma nova forma de comunicação, a qual quando estabelecida, desencadeia comunidade do ouvinte para com a testemunha.
Essa comunidade se consolida, entre outros, por via do enigma traumático: a pessoa escuta uma vivência que lhe propõe um enigma de difícil decifração, que a inquieta e que, consequentemente tornar-se fonte de angústia. Algo estranho, vindo de fora, toca a pessoa que ouve sinestesicamente provocando, nesse gesto, um afeto também estranho e enigmático. Como diversas vezes colocado por Freud, a angústia é o mais indeterminado dos afetos, porque parte de vivências enigmáticas, que superam nossa capacidade de compreendê-las. Se assim tomada, a angústia pode não mais se ligar somente à biografia das pessoas, mas também pode se ligar a acontecimentos maiores e mais antigos que ela, e que ao atravessá-la, pedirá, portanto, recursos para além da biografia para serem, de alguma forma, assimilados.
Posto em outras palavras, o enigma vivido pelo sobrevivente é transmitido com toda a sua carga afetiva para o seu ouvinte. Essa carga impulsiona o último a realizar um trabalho de recuo histórico e sociopolítico na busca por alguma compreensão, nem que mínima, do acontecimento que se impôs e superou o sobrevivente, recuo esse realizado tanto por um grande número de hibakushas quanto nesse trabalho. Essa primeira compreensão solicita por conseguinte um recuo biográfico, numa investigação dos desdobramentos daquele acontecimento enigmático nos pensamentos, nas ações, nas teorias formuladas pelos sobreviventes ao longo de suas vidas.
Mediante a esse conjunto de informações, o ouvinte angustiado deverá tomar para si não apenas os enigmas impostos pela bomba atômica e pela experiência do sobreviver dos hibakushas, mas também deverá ousar completar as teorias e os pensamentos inaugurados pelos sobreviventes em uma tentativa de assimilação conjunta. Parece evidente que um trauma imposto socio-politicamente só poderá encontrar desdobramentos mais saudáveis se alcançar elaborações também comunitárias.
Além dessa elaboração conjunta, é importante ressaltar um outro elemento enigmático que adentra a equação: a angústia suscitada pela escuta de um acontecimento traumático e que diz respeito e faz associação com elementos da biografia e do contexto sócio-político e cultural do ouvinte. Essa angústia potencializa aquele complexo estabelecido entre testemunha e interlocutor adicionado à equação elementos identificatórios. A partir de então aquele que ouve empresta suas próprias dores e vivências enigmáticas para servir como meio não apenas de sustentação da escuta, mas também como uma tentativa de dar algum contorno para o afeto angustiante que o toma.
Thomas Trezise[41] sugere que todos aqueles que se dedicam a uma minuciosa investigação de acontecimentos traumáticos, que se dispõe a ler, ouvir, estudar, analisar memórias e narrativas de profundo sofrimento, devem estar impulsionados, guiados e acompanhados também por enigmas pessoais. Parece ser evidente a hipótese de que o sofrimento — afeto inevitável, porém de difícil manejo — quando pode ser compartilhado e enfrentando conjuntamente num laço muito delicado e sensível de histórias e biografias, possibilita a construção e o aprofundamento de laços entre humanos, pois possibilita a consolidação daquele complexo mencionado acima: uma vivência de dor externa evoca ou provoca uma experiência de dor interna.
Nesse ponto, entretanto, como toda jornada por dentre caminhos tortuosos e pouco iluminados abertos e percorridos pelo sofrimento, há um perigo que se faz eminente e que, portanto, pede atenção: aquele de utilizar esse importante complexo para colonizar a experiência do outro, impulso esse que acaba por servir mais ao estancamento da angústia que se apoderou do ouvinte, do que a sustentar uma escuta do e com a testemunha na tentativa conjunta de estabelecer limites àquela vivência traumática.
Aquela frase conhecida trivialmente como um mandamento da solidariedade, “se colocar no lugar do outro”, nesse sentido, pode vir a ser um ato de dominação e, dessa forma, pode ser uma repetição daquela mesma violência que traumatizou o sobrevivente em um primeiro momento. Por todos os argumentos apresentados até aqui, incluindo o contexto histórico, cultural e sócio-político de cada pessoa, assim como suas singularidades biográficas, pode-se afirmar que se colocar no lugar do outro é um ato meramente impossível e levaria o interlocutor — na tentativa de se livrar do afeto estranho que o visitou e o tomou — a falsamente assumir como sua e somente sua a tarefa de resolvê-lo, tomando para si uma vivência que não lhe pertence no todo. Isso não só relançaria a testemunha de volta à solidão traumática, mas condenaria agora o ouvinte ao mesmo destino.
Novamente, acessar as próprias marcas de sofrimento na intenção de estabelecer e consolidar aquele complexo entre testemunha e a pessoa que a ouve é, ao contrário, buscar alcançar uma vivência conjunta de um trauma que deverá ser pós-representado por diferentes vias e através de diferentes recursos por cada um dos envolvidos nesse delicado laço sinestésico. É um ser evocado pela dor do outro e consequentemente evocar a dor dentro de si na tentativa de ligar estímulos desorientados e despolarizados que buscam por algum tipo de assimilação e, quem sabe nesse percurso, experimentar sentimentos como solidariedade, generosidade e compaixão.
Finalmente, e em uma tentativa de sumarizar o que foi exposto até o momento, será de grande importância mencionar muito brevemente a entrevista do hibakusha Takashi Teramoto[42]. Ele tinha apenas 10 anos no dia da explosão atômica de Hiroshima. Em um momento de sua narrativa ele diz que guarda uma lembrança em segredo dentro do seu coração, e que até o momento nunca havia contado para ninguém. Sua memória diz respeito ao seu pai. Teramoto conta que nos dias seguintes ao bombardeio ele adoeceu severamente devido aos efeitos da “doença da bomba”. Preocupado, seu pai o colocou em suas costas e o levou ao médico na cidade vizinha. O médico não sabia como tratar aqueles estranhos sintomas, apenas alertou que poderia ser algo contagioso e letal, uma vez que muitas pessoas estavam apresentando sintomas semelhantes e morrendo em decorrência deles. Teramoto recorda que saiu da consulta médica sonolento, mas despertou completamente quando ouviu a voz do seu pai lhe pedindo perdão. Percebeu que estavam parados à beira de um abismo onde havia uma ponte desabada, e ouviu o pai dizendo que iria pular. Naquele momento, Teramoto fez o máximo para não se mexer e não mostrar que estava acordado e escutando, permanecendo imóvel e em silêncio aguardando a decisão de seu pai. Diz emocionado que não tinha certeza se o pai tinha a real intenção de pular, mas agradece o fato dele ter desistido da ideia.
Nos encontros seguintes, abordamos o tema da “doença da bomba” e da cena que ele narra na ponte desabada. Para me contextualizar essa lembrança Teramoto reconta o dia do bombardeio, o local onde estava, as regras que o governo impusera sobre locais de refúgio, como as doenças eram tratadas durante a guerra, as hipóteses que chegou mais tarde em sua vida sobre os efeitos da radiação e o motivo pelo qual estava nas costas de seu pai naquele dia. Faz uma retomada histórica e biográfica. Na sequência, traça hipóteses sobre o motivo pelo qual seu pai considerou pular da ponte com ele.
Afirma que, tendo sua própria família hoje, imagina que seu pai, naquele momento, estava desolado e não sentia que possuía condições para continuar vivendo: perdera a esposa, familiares, os amigos e absolutamente todos os bens materiais (casa, documentos, dinheiro, fotografias, roupas, entre outros) na explosão. Tudo fora destruído. Teramoto parece dizer que seu pai fora inundado pelos enigmas humanos: como ter forças para continuar vivendo após o horror de Hiroshima? Como, por que e para quem deveria sobrevier?
Talvez a violência, a frieza, a indiferença, dos homens tenha desolado, entristecido o pai de Teramoto, mas após um longo tempo parado literalmente na beira do abismo, ele recuou e caminhou para longe da ponte desabada. Nesse momento, pergunto ao Teramoto o motivo pelo qual ele acha que seu pai recuou, e ele responde que não faz ideia e acrescenta que nunca teve coragem de perguntar ou mesmo de contar a ele que estava acordado naquele momento. No entanto, se tivesse que tentar adivinhar, ainda assim, teria dificuldade de chegar a alguma conclusão. Tentou por décadas e nunca avançou para além de uma tristeza que terminava na tentativa de esquecer aquele dia.
Comento com Teramoto que talvez seu pai não tivesse pulado justamente porque a resposta para os enigmas que a bomba deixou era justamente o menino que ele carregava nas costas. A bomba não destruiu os laços, e enquanto tivesse Teramoto, talvez fosse possível reconstruir a vida. Teramoto fez um longo silêncio, se mostrou profundamente emocionado e pediu licença para sair da sala onde realizávamos a entrevista. Após aproximadamente 15 minutos ele retornou e disse que sim, que nunca havia pensado nisso antes, mas acha que foi isso mesmo o que pode ter acontecido. ♦
REFERÊNCIAS
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* Cristiane Izumi Nakagawa é psicóloga social e psicanalista. Psicóloga, Mestre e Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP.
[1] HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[2] Theodore Roosevelt havia morrido em 12 de abril de 1945, seu vice, Harry Truman assumiu o poder.
[3] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012.
[4] NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[5] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012, p. 265. Tradução nossa.
[6] Para mais detalhes sobre o Projeto Manhattan, ver NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[7] Para mais detalhes sobre a formação da tripulação e a escolha das cidades japonesas que serviriam de alvo para o bombardeio, ver NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[8] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012, p. 302. Tradução nossa.
[9] NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[10] Todos os horários mencionados serão referentes ao Japão.
[11] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012, p. 314. Tradução nossa.
[12] HIROSHIMA PEACE MEMORIAL MUSEUM. The spirit of Hiroshima. Hiroshima: The City of Hiroshima, 1999.
[13] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing.
[14] HIROSHIMA PEACE MEMORIAL MUSEUM. The spirit of Hiroshima. Hiroshima: The City of Hiroshima, 1999.
[15] Durante a guerra as aulas dos alunos entre 11-17 anos foram substituídas pelos chamados esforços de guerra, ou seja, trabalhos que mantinham o funcionamento da cidade: plantações, serviços básicos, fábricas de armamentos, áreas de demolição, entre outros. As áreas de demolição consistiam em largos vãos criados em vários pontos da cidade que deveriam evitar que os incêndios – ocasionados pelas bombas incendiárias – se alastrassem pela cidade.
[16] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012, p. 337. Tradução nossa.
[17] Epicentro: refere-se ao ponto no ar em que a bomba atômica explodiu, sendo seu referencial no solo denominado de hipocentro.
[18] HIROSHIMA PEACE MEMORIAL MUSEUM. The spirit of Hiroshima. Hiroshima: The City of Hiroshima, 1999.
[19] HIROSHIMA PEACE MEMORIAL MUSEUM. The spirit of Hiroshima. Hiroshima: The City of Hiroshima, 1999.
[20] HIROSHIMA JOGAKUIN ALUMNI ASSOCIATION. For those who pray for peace. Hiroshima: Matsui Printing, 2005, p. 72. Tradução nossa.
[21] HIROSHIMA JOGAKUIN ALUMNI ASSOCIATION. For those who pray for peace. Hiroshima: Matsui Printing, 2005, p. 109. Tradução nossa.
[22] Streetcar é uma espécie de bonde utilizado pela população para se locomover nas áreas centrais da cidade de Hiroshima.
[23] HIROSHIMA JOGAKUIN ALUMNI ASSOCIATION. For those who pray for peace. Hiroshima: Matsui Printing, 2005, 2005, p. 45. Tradução nossa.
[24] KOSAKAI, Yoshiteru. Hiroshima peace reader. Hiroshima: Hiroshima Peace Culture Foundation, 1980..
[25] HIROSHIMA PEACE MEMORIAL MUSEUM. The spirit of Hiroshima. Hiroshima: The City of Hiroshima, 1999.
[26] NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[27] KIERNAN, Denise, The Girls of Atomic City: The Untold Story of the Women Who Helped Win World War II. 2012, pp. 457-458. Tradução nossa
[28] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012, p. 353. Tradução nossa.
[29] THOMAS, Gordon.; WITTS, M. Max Enola Gay. [S. l.]: Premier Digital Publishing, 2012.
[30] Um dos motivos pelos quais Hiroshima foi designado como alvo primário para o bombardeio foi o fato da cidade ser um vale cercado por montanhas, geografia essa que potencializaria os efeitos das ondas de choque e calor. Com a intenção de aumentar ainda mais o poder destrutivo da bomba, somou-se a essa característica geográfica o cálculo realizado pelos cientistas do Projeto de explodi-la no ar e não no solo.
[31] HERSEY, John. Hiroshima. Nova Iorque: Vintage Books, 1989, pp. 64-65. Tradução nossa
[32] HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.34
[33] LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p.188.
[34] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.72.
[35] Para mais detalhes, ver NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[36] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.10
[37] Entrevistas realizadas na cidade de Hiroshima com apoio FAPESP.
[38] Orientador da pesquisa de doutorado em questão.
[39] Que está prevista para a pesquisa de pós-doutorado.
[40] Para mais detalhes, ver NAKAGAWA, I. Cristiane. Hiroshima: a catástrofe atômica e suas testemunhas, 2014.
[41] TREZISE, Thomas. Witnessing Witnessing. Nova Iorque: Fordham University Press, 2013.
[42] Para ler na íntegra a narrativa do hibakusha Takashi Teramoto, ver NAKAGAWA, I. Cristiane. Trauma e sentido, culpa e perdão, vergonha e honra nos hibakushas: um estudo de testemunhos e seus paradoxos, 2020.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | NAKAGAWA, Cristiane Izumi (2022) O bombardeio atômico de Hiroshima e a escuta de memórias traumáticas. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -13, p. 1, 2022. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2022/08/03/n-13-01/>.