por Ana Carolina B. Leão Martins
ROUDINESCO, Elisabeth. O Eu soberano: ensaios sobre as derivas identitárias. Trad. E. Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
O Eu soberano, mais recente livro da historiadora Elisabeth Roudinesco (2022), é uma artilharia de palavras voltadas em direção a um alvo muito específico, já inscrito na capa, no próprio subtítulo: ensaios sobre (ou seria contra?) as derivas identitárias. Com uma escrita afiada, e em estilo anedótico, a autora nos envolve na retórica de que os tais identitários não passam de uns comunitaristas, dobrados sobre si mesmos, os que sequer seriam capazes de acertar um horário em comum para sentar-se à refeição (ah, essas pessoas da sala de jantar…). Roudinesco não alivia para ninguém: nem Butler, nem Spivak ou Bhaba, a autora critica a galáxia terminológica dos estudos queer e interseccionais, compreende o enfrentamento ao capacitismo como mais um modismo identitário e acusa os estudos decoloniais e pós-coloniais de promover o racismo que tanto combatem… enfim, todos estão na mira. Todos, salvo um: Franz Fanon, o único a ser perdoado.
Surpreende a benevolência da autora à Fanon: seu nome aparece inúmeras vezes, posicionado ao fim da série que inclui Sartre, Derrida e Foucault, esses últimos tomados como exemplos do quanto a Europa sempre esteve engajada na luta anticolonial. E não para por aí: Fanon é apresentado como o único que soube ler Lacan, quem entendia dos conceitos psicanalíticos, e até caiu nas graças de Sartre, o qual prefaciou Os Condenados da Terra. O Fanon de Roudinesco é, portanto, a própria encarnação da máscara branca: o homem de pele preta que volta para a Martinica fantasiado de francês, muito civilizado, puxando os erres, e esquecido de suas origens periféricas. Um quase igual. Quase.
É certo que Fanon, por seu lado, não a teria perdoado: o autor de Peles Negras, Máscaras Brancas não cansou de engendrar a estranheza diante de qualquer pretensão de igualdade, de familiaridade, nas relações entre colonizados e colonizadores. Para tanto, concedeu grande privilégio ao tema das relações do sujeito com a linguagem, caro também a nós, psicanalistas.
A compreensão de Fanon (2008) sobre a linguagem escapa a qualquer universalismo ou pretensão de transparência/neutralidade do sujeito em relação à sua enunciação. Em um contexto de colonização, a linguagem é território cindido, duplo, dividido entre a língua-mãe e a língua do homem (branco). É diante dessa divisão que o homem negro sofre de um duplo assujeitamento: à língua materna, no caso, o criolo, colonização primeira e estruturante, da qual nenhum sujeito escapa; à língua do homem branco, o francês, que se sobrepõe à anterior, obliterando-a: “o recém-chegado da metrópole “só responde em francês e frequentemente não responde mais o criolo”, diz Fanon[1]. Ele assim indica a existência de uma alienação suplementar do homem negro à linguagem, para além da alienação fundamental, comum a todos. Se essa última é a marca da sujeição à língua materna, de onde um sujeito deverá advir, a alienação suplementar torna-se a marca da sujeição colonial, operando efeitos dessubjetivantes, aprisionando o homem negro em uma fantasia de igualdade, fruto da identificação com o colonizador. Processo que, vale lembrar, repete-se onde quer que existam relações coloniais: “minha fala nordestina, quero esquecer o francês”, lembra-nos o poeta cearense Belchior.
Roudinesco (2022) negligencia o debate fanoniano sobre a duplicidade da linguagem, privilegiando, em seu livro, o conceito derridiano de “monolinguismo do outro”. No tópico de abertura do capítulo sobre as pós-colonialidades, curiosamente intitulado por “Sartre ainda está vivo”, ela faz um uso estratégico de Derrida no intuito de desqualificar quaisquer apropriações marginais da língua francesa, como a criolização do francês. De fato, Derrida[2] toma a si mesmo enquanto exemplo, em sua condição de franco-magrebino, para reivindicar “o direto de se apropriar da língua francesa como sua única língua materna, justamente porque não era sua”[3]. Se a língua não é propriedade de um povo ou de uma nação, se ela é fundamentalmente a língua do outro, seria portanto um contrassenso afirmar qualquer designação identitária a ela ligada. Argumento que, no extremo de seu reducionismo, também desqualificaria o “pretuguês”, a apropriação negra da língua portuguesa, que Lélia Gonzalez[4] tão bem demarcou no atravessamento impertinente dos ‘erres’ em lugar dos ‘eles’: framengo, franela, etc. E, no entanto, foi justo o ‘monolinguismo do outro’ que consolidou definitivamente o lugar de Derrida entre os intelectuais franceses da luta anticolonial, ao lado de Sartre, por exemplo.
Por falar em Sartre, conta Nelson Rodrigues[5] que o filósofo fora recebido no Rio, na década de 1960, por um bando de trezentos cachorros velhos que o lambiam com os olhos. Sartre, por sua vez, dirigia-se a nossa intelectualidade branca, fingida de europeia, como quem mira um horizonte de cretinos. Onde estão os negros?, perguntou. E até hoje ninguém soube responde-lo.
Onde estamos nós no livro O Eu soberano?
Em tempos de debate sobre a democratização da psicanálise e a formação pública do psicanalista, a recepção acrítica das teses da historiadora francesa só reitera a velha negação do nosso Eu suburbano, periférico, inevitavelmente atravessado pelas questões de classe, de raça e de gênero. Que o nosso Eu Suburbano por vezes se fantasie de parlêtre, trata-se aí de um índice de que habitamos em um terreno de difícil tradução, lá onde os conceitos faltam, e a teoria da formação verdadeiramente se encontra ausente.
À semelhança dos antilhanos descritos por Fanon, não são poucos os psicanalistas brasileiros que acolhem quaisquer referências da metrópole psicanalítica francesa como se fossem suas próprias, às expensas da referência legítima por excelência: a do próprio inconsciente. Sobre esse ponto, há de se restabelecer a confiança no inconsciente, e abrir mão da segurança do já conhecido, das fórmulas repetitivas, do recurso abusivo aos fundamentos conceituais, em uma afirmação orgulhosa de nossa suburbaneidade/marginalidade no cerne de qualquer soberania teórica, hegemônica. Tal tarefa, de decolonização, longe de descartar as referências anteriores — freudo-lacanianas e outras mais — antes propicia o engendramento contínuo do estranho na ‘casa’ da nossa tradição teórico-conceitual, já consolidada: “só assim o estranho viria a se definir como afirmação alegre da diferença, verdadeiro antídoto contra toda forma de racismo”, como bem indicou Neusa Santos Souza[6].
Proposta muito diferente da apresentada por Roudinesco quanto ao enfrentamento das questões raciais. Longe de engendrar o estranho, a historiadora esforça-se por expurga-lo, ejetá-lo para longe do campo do inderivável, a saber, da “República indivisível, laica e social”[7], fruto da Revolução Francesa, e elevada pela autora ao status de grande começo da civilização moderna. A República não reconhece a categoria de raça, a qual fora, inclusive, excluída do texto da constituição: “como a raça não existe cientificamente, era lógico suprimir a palavra da constituição”[8]. Premissa que a autora sustenta e ratifica teoricamente a partir de dois textos de Lévi-Strauss[9] apresentados em conferências à Unesco. Neles, Levi-Strauss afirma a não existência da raça em sua dimensão biológica, privilegiado a concepção de cultura. Mais além, o antropólogo lança a ideia de que o racismo e a intolerância à diferença são questões “ecológicas”, relacionadas ao convívio entre muitos, mas em espaços restritos. Em suas palavras: “a tolerância reciproca supõe realizadas duas condições […]: por um lado, uma igualdade relativa e, por outro, uma distância física suficiente”[10] (Lévi-Strauss, 1983,). Que se mantenham, portanto, distantes aqueles que jamais foram próximos do ideal de cidadania francesa, e assim, quem sabe, seja possível tolerá-los.
O que desejamos excluir do campo conceitual da psicanálise quando aderimos cegamente a concepções teóricas como as apresentadas acima? Sobre esse ponto, não se trata de condenar os falasseres — e suas máscaras — nas negociações contínuas com a língua dos Eus soberanos, estratégia de que dispõem para melhor passar entre pares, fazendo-se reconhecer. Na contrapartida, seria suficiente indicar os pontos de derrisão, os falassérios em jogo nessas e noutras narrativas combativas, desmobilizadoras de outra (s) psicanálise (s). Que as novas gerações continuem a ler seriamente Freud, Lacan e — por que não? —– Roudinesco, beneficiando-se de suas contribuições. Mas sem perder de vista que também é possível criativamente equivocar o significante… em português.
Referências
DERRIDA, Jacques (1996) O monolinguismo do outro. Porto: Campo das Letras.
FANON, Franz (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA
GONZALEZ, Lélia (2020) “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 75-94.
LÉVI-STRAUSS, Claude (1983) “Raça e cultura” In: O olhar distanciado. São Paulo: Martins Fontes, pp. 21-49.
RODRIGUES, Nelson (1993) “Onde estão os negros?” In: O óbvio e o ululante: primeiras confissões. São Paulo: Cia das Letras, pp. 47-50.
ROUDINESCO, Elisabeth (2022) O Eu soberano: ensaios sobre as derivas identitárias. Trad. E. Aguiar. Rio de Janeiro: J. Zahar.
SOUZA, Neusa Santos (2021) “O estrangeiro, nossa condição”. In: Tornar-se Negro. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 121-131.
* Ana Carolina B Leão Martins (Carol Leão) é psicanalista, doutora em teoria psicanalítica – UFRJ. Professora da graduação em psicologia UFC – Sobral e do mestrado em psicologia e políticas públicas UFC – Sobral. Psicanalista do coletivo Margem – Psicanálise (CE).
[1] FANON, Franz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, p. 38.
[2] DERRIDA, Jacques (1996). O monolinguismo do outro. Porto: Campo das Letras.
[3] ROUDINESCO, Elisabeth (2022). O Eu soberano: ensaios sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: J. Zahar, p. 115.
[4] GONZALEZ, Lélia (2020). Racismo e sexismo na cultura brasileira In: Por um fgeminismo afro latino americano. Rio de JAneiro: Zahar, pp. 75-94.
[5] RODRIGUES, Nelson (1993) “Onde estão os negros?” In: O óbvio e o ululante: primeiras confissões. São Paulo: Cia das Letras, pp. 47-50.
[6] SOUZA, Neusa Santos (2021). O estrangeiro, nossa condição. In: Tornar-se Negro. Rio de Janeiro: Zahar, p. 129.
[7] ROUDINESCO, Elisabeth (2022) O Eu soberano: ensaios sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: J. Zahar, p. 11.
[8] ROUDINESCO, Elisabeth (2022) O Eu soberano: ensaios sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: J. Zahar, p. 204.
[9] LÉVI-STRAUSS, Claude (1983) “Raça e cultura” In: O olhar distanciado. São Paulo: Martins Fontes.
[10] LÉVI-STRAUSS, Claude (1983) “Raça e cultura” In: O olhar distanciado. São Paulo: Martins Fontes, p. 45.
COMO CITAR ESTA RESENHA | MARTINS, Ana Carolina B. Leão (2022) O Eu Suburbano (ou com o perdão de Fanon). Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -13, p. 11, 2022. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2022/08/06/n-13-11/>.