por Renato Tardivo
AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu.
O livro contém três seções. A primeira, e mais longa, divide-se em nove capítulos, cada um dedicado a uma temática da obra de Winnicott. Na segunda seção, intitulada “Sobre a bibliografia”, o autor realiza uma discussão sobre os textos que utilizou para a escrita dos capítulos anteriores, bem como apresenta outros estudos dedicados à obra do psicanalista inglês. Em “Cronologia”, Tales elenca eventos marcantes da biografia de Winnicott e, por fim, em “Winnicott: pequena antologia psicanalítico-filosófica”, o autor seleciona passagens lapidares de psicanalistas e filósofos atravessados pelo estilo e pensamento winnicottianos.
Um tempo existido
No início do ensaio, Tales dá a voz a Winnicott, citando um excerto do texto “A localização da experiência cultural”, publicado em O brincar e a realidade[2]. A partir da passagem, o ensaísta extrai desdobramentos fundamentais para a obra do psicanalista inglês, notadamente que Winnicott localiza “já muito precocemente no bebê a noção de loucura, uma loucura já presente no tempo mesmo das origens”[3]. Trata-se de sublinhar, assim, um “tempo que existiu”[4] e que diz do
quanto o bebê pode ou não suportar a ausência da mãe de quem depende para tudo — principalmente para vir a ser através de seu próprio tempo, sem ter sua continuidade integradora rompida e cair na “loucura”[5].
É nesse sentido que, atentando para a importância dos eventos mais primitivos de uma existência, Winnicott vai prescindir da noção freudiana de pulsão de morte e ver “ali onde a repetição se abre à repetição do que é sofrimento eterno […] uma história específica que pode ser evocada e que sempre envolve no mínimo dois, o bebê e sua mãe”[6].
Com efeito, a discussão proposta no primeiro capítulo refere-se tanto à “experiência”, quanto ao “paradoxo”, palavras que compõem o subtítulo do livro. Uma história específica, emblema de um tempo existido, diz inevitavelmente de uma experiência. Quanto ao paradoxo, a seguinte passagem fala por si:
Trata-se da experiência precoce de ter conhecido a loucura, ou de ter estado nela. E mais: a vivência de ter conhecido a loucura antes ainda de termos algo que se possa chamar de alguém — um eu — capaz de dar qualquer tipo de nome àquilo que se viveu. Uma experiência negativa impossível, que negativiza até o próprio nome, na ausência de um ser de linguagem, dissolvido nela antes mesmo de existir[7].
Assim, tomando a experiência e o paradoxo como norteadores, o ensaio explora diversos temas com densidade e, o que também chama a atenção, o faz em poucas páginas, aliando conteúdo, fluidez e poder de síntese.
A procura da psicanálise
O paradoxo que acompanhou a descoberta da psicanálise por Winnicott, lembra-nos Tales, é o fato de, mesmo antes de conhecer a obra de Freud, ao voltar da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o então jovem pediatra ter se dado conta, com preocupação, de que não lembrava dos seus sonhos:
paradoxalmente, ele percebeu em si um sintoma psicanalítico antes mesmo de saber que o sintoma tinha um nome no mundo […] Winnicott procurava a psicanálise, ou desejava a psicanálise, objeto que ele próprio não sabia existir, embora soubesse que devia existir[8].
Também paradoxal é a influência que Melanie Klein deixaria na obra de Winnicott. Como nos lembra Tales, por um lado, seu pensamento se origina daquela que foi “a pioneira da análise infantil”[9], mas, por outro, “será exatamente em relação a ela que Winnicott vai se diferenciar com mais nitidez”[10].
Winnicott promoveria, então, de forma bastante original uma articulação entre o modo singular de observação clínica e a construção de um pensamento clínico “O conhecimento psicanalítico foi descolocado, por assim dizer, para uma espécie de saber viver a psicanálise.”[11]
Emblemático, nessa direção, é o jogo da espátula, experiência relatada por Winnicott pela primeira vez em 1931. Como se sabe, a espátula é um instrumento utilizado por médicos, não raro de forma invasiva, para examinar o corpo dos pacientes. Em direção radicalmente oposta, Winnicott “oferecia ao bebê, de modo não invasivo, apenas a sinalização da existência do objeto, uma espátula de prata, para que ele fizesse com ela o que bem quisesse”[12]. Nessa medida, foi assumindo o ponto de vista do bebê que o pediatra e psicanalista inglês extraiu suas principais conjecturas e proposições acerca do desenvolvimento humano.
Mundos sem-fim
“As crianças brincam na praia dos mundos sem-fim.”[13] A passagem, do poeta indiano Rabindranath Tagore, sempre intrigou Winnicott[14]. Tales dedica um capítulo do livro para refletir as ressonâncias dessa citação. Trata-se de problematizar “a ideia do lugar do que chamamos de experiência cultural”[15]. Winnicott compreenderia que a brincadeira não diria respeito apenas à realidade interna (psíquica) ou à realidade externa (material). Daí decorre o conceito de transicionalidade, tão inventivo quanto fundamental para os rumos da psicanálise.
O ensaio confere destaque, também, à experiência de ilusão e ao modo como a obra de Winnicott se volta às questões em torno do conceito freudiano de narcisismo primário. A discussão é muito apropriada, porque uma vez mais problematiza a perspectiva dicotômica segundo a qual Winnicott teria descartado a psicanálise que o precedeu. A questão é mais complexa, paradoxal, como sublinha Tales.
A propósito, ocorre-nos a seguinte fala de André Green: “e isso faz com que eu lembre do seguinte paradoxo de Winnicott: com as estruturas não neuróticas é preciso parar de ser freudiano de uma maneira freudiana”[16]. Não se tratava, portanto, de substituir o modelo freudiano por outra coisa, mas de pensar e fundamentar as modalidades mais tenras da experiência, de modo a criar uma clínica psicanalítica que desse conta delas. Winnicott, assim, não apenas avançou a lugares a que a obra de Freud não chegou, como reconheceu que essas portas foram deixadas abertas justamente pelo criador da psicanálise.
A voz do texto
Tales dá voz ao pediatra e psicanalista inglês em diversos momentos, sem deixar de dialogar com outros autores. Desse modo, o livro situa o estatuto da cultura na obra de Winnicott, bem como salienta a proposta, tão winnicottiana, de construção pautada pela experiência compartilhada. Noções até então consideradas pela perspectiva freudiana na chave da sublimação ou dos objetos-fetiche, por exemplo, encontram na ênfase atribuída por Winnicott à criatividade toda uma nova gama de possibilidades, mundos sem-fim, o que implicará desdobramentos decisivos na forma de pensar o — e de cuidar do — humano.
Com efeito, ao deixar “o convite para que o leitor se aproprie por si mesmo desse trabalho radical com a psicanálise e com o humano, do qual este livro é a mínima introdução que pude conceber, e para que nos apresente, ao seu próprio tempo, seu próprio Winnicott”[17], Tales nos endereça uma leitura winnicottiana por excelência. Trata-se de um livro vivo, dotado de um texto pulsante, cuja sintaxe evoca, a todo momento, a voz do autor, Tales Ab’Sáber. Assim, se por um lado a voz própria de Tales é notadamente atravessada por seu vínculo transferencial com Winnicott, por outro, em mais um paradoxo tipicamente winnicottiano, Tales se volta ao universo do pediatra e psicanalisa inglês encampando também o lugar de analista, e o faz procurando assumir — desde e até onde pôde conceber — o ponto de vista da obra de Winnicott.
Referências
AB’SÁBER, Tales (2021). Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu.
GREEN, André; URRIBARRI, Fernando (2019). Do Pensamento Clínico ao Paradigma Contemporâneo: diálogos. Trad. Paulo César de Souza Jr. São Paulo: Blucher.
WINNICOTT, Donald Woods (1971). O brincar e a realidade. Trad. Breno Longhi. São Paulo: Ubu, 2019.
* Renato Tardivo é psicanalista e escritor. Foi professor colaborador do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo entre os anos de 2020 e 2022. É mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, instituição na qual atualmente cumpre estágio de pós-doutorado em Psicologia Clínica. Realizou estágio de pós-doutorado em Psicologia da Saúde (UMESP/Capes) entre os anos de 2017 e 2018. Publicou os seguintes livros de ficção: Do avesso (Com-arte/USP), Silente (7 Letras), Girassol voltado para a terra (Ateliê) e No instante do céu (Reformatório). É também autor dos ensaios Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp) e Cenas em jogo – literatura, cinema, psicanálise (Ateliê/Fapesp). E-mails: rctardivo@uol.com.br e renatotardivo@usp.br
[1] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu.
[2] WINNICOTT, Donald Woods (1971) O brincar e a realidade. Trad. Breno Longhi. São Paulo: Ubu, 2019.
[3] AB’SÁBER, Tales (2021)’ Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 11, grifos do autor.
[4] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 12.
[5] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 14, grifos do autor.
[6] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 17, grifos do autor.
[7] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 14, grifos do autor.
[8] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, pp. 26-27, grifos do autor.
[9] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 36.
[10] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 36.
[11] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, pp. 89-90, grifos do autor.
[12] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 55, grifos do autor.
[13] TAGORE, Rabindranath apud D. W. Winnicott (1971) O brincar e a realidade. Trad. Breno Longhi. São Paulo: Ubu, 2019, p. 155.
[14] WINNICOTT, Donald Woods (1971) O brincar e a realidade. Trad. Breno Longhi. São Paulo: Ubu, 2019.
[15] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 39, grifos do autor.
[16] GREEN, André; URRIBARRI, Fernando (2019) Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo: diálogos. Trad. Paulo Sérgio de Souza Jr. São Paulo: Blucher, p. 75.
[17] AB’SÁBER, Tales (2021) Winnicott: experiência e paradoxo. São Paulo: Ubu, p. 92.