Dialéticas dissonantes — ou como ler Lacan e Hegel após Franz Fanon

por Pedro Pennycook

Seja em sentido político, seja em sentido clínico, é lugar comum à interface entre psicanálise e marxismo a função categórica com a qual os imperativos socio-históricos, bem como a contradição imanente a estes, determinam a constituição dum sujeito. Pois se desde Hegel — este solo fértil do qual deste então, duma maneira ou doutra, se nos brotam todos os germes críticos da história do pensamento, e no qual os ramos desta tradição também se enraíza —, compreendemos uma consciência singular ou de si mesmo como trespassada pela historicidade que a excede — ou seja, posicionada pela teia social na qual se dá —, não nos seria estranho começar colocando em questão as formas normativas de individuação próprias à nossa época.

Posto doutra maneira, trata-se de percebermos como perguntarmo-nos pelos meios que nos tornamos sujeitos, pelas condições para tal produção e pelo preço a ser pago por sermos subjetivados enquanto indivíduos dessa determinada maneira, passa sempre por uma perscruta pela historicidade de nossas identificações, das vicissitudes que delas se ramificam e das sintomáticas, e por tantas violentas, contradições que as subjazem. Gostaria de apontar como, ancorados por este nexo interpretativo, podemos pensar a racialização como uma dentre as mais drásticas vicissitudes da historicidade da razão ou consciência próprias à época moderna, à nossa época.

De forma geral, esse ‘preço’ a ser pago ao adentrar no campo social, autores de influência lacaniana o formulam através da metáfora da ‘libra de carne[1]’. Dispêndio significante, a libra de carne apareceria para nós já desde o momento em que nascemos, desde quando para nos fazermos reconhecidos e termos nossa existência mantida, atendemos aos significantes dum Outro que nos ampara. Dizer que o preço para socialmente existirmos é pago com um pouco de nossa ‘carne’ é um modo tanto mais inspirado de afirmar que somos fundamentalmente espoliados duma completude corporal em prol do pertencimento na linguagem; do que se subjaz o pressuposto segundo o qual a linguagem vem ao preço da alienação perante certa apreensão total de si, que a imagem que tomo de mim é sempre interpelada pelas categorias de reconhecimento ofertadas a mim por um Outro.

Afora a unidade imaginária que alcançamos através de tal mediação extática, são também desde dos ideais incrustados no discurso deste Outro que nos circunscrevemos a uma gramática que estrutura nosso desejo e assumimos o locus singular de enunciação dele. O sujeito que somos é duplamente alienado, ao passo que constituído por uma tessitura significante através da qual o Outro lhe captura. Vemo-nos aqui diante da ambivalência do devir, pois: nesse nexo, a linguagem é, ao mesmo tempo, condição de existência e de alienação desta[2]. A consciência da ‘minhidade’ com a qual me apreendo, a propriedade que gozo de minha identidade e na qual me reconheço uma consciência singular, está sempre mediada pela teia social na qual me dou; o discurso me produz ao passo que me despossui desta propriedade, e das libras de carne com as quais o alimentamos, regurgita-nos identificações em troca das quais erigiremos nossas instâncias narcísicas.

Em sua Fenomenologia do Espírito, Hegel narra o caminho pelo qual passa a consciência em sua formação (Bildung), cujo ponto derradeiro será sua apreensão em si e para si enquanto Espírito[3]. Sempre histórica, tal formação decorre do acúmulo produtivo com a qual a verdade da consciência se desdobra nas suas próprias experiências, no qual o caminho precisa necessariamente de ser em primeira pessoa, já não sendo estranho ao mundo hegeliano o comentário quanto às posições ontogenéticas e filogenéticas de tal experiência. Não nos interessam as minúcias deste debate; tratar-se-á delas aqui nada mais como um convite a percebermos a consonância necessária entre as figuras da consciência na História e a corporificação singular com a qual cada sujeito as assume na dada época em que se encontram.

Para que essa consonância se efetive, a consciência-de-si precisa de se reconhecer noutra consciência-de-si; ou seja, há um impasse imanente à minha operação de autodeterminação, visto que a condição para que ela decorra não está mais em mim, mas num outro. Por seu lado, este outro também se encontra, supõe Hegel, na necessidade de afirmar sua singularidade através deste jogo interpelativo: dum empuxe que inicialmente buscava alavancar minha singularização, minha independência no mundo, agora encontramo-nos nós, os dois polos desta relação, em completa dependência ontológica.

Não nos preocupemos; o romance hegeliano de formação da consciência encontra resolução para tal impasse. Por pressupor que a outra consciência, a da qual dependo para me afirmar, por também necessitar de uma recíproca afirmação por minha parte, possui a mesma estrutura que eu, podemos negociar nossa liberdade sob o solo comum de nossa completa dependência e similitude; por haver identidade entre nós, a consonante dialética na qual nos reconhecemos eleva-se ao seu caráter formativo da experiência comum da consciência histórica. A história que Fanon nos relata em Peles negras[4], contudo, é doutra ordem.

Se por um lado há ali o itinerário formativo duma consciência, por outro não encontramos a belíssima solução da eticidade com a qual Hegel coroa sua Fenomenologia. Em Fanon, não encontramos a resolução consonante do reconhecimento, mas os sintomas duma dialética refreada (ibid., p. 176). Interditando a experiência que faz de si e a expectativa imagética com a qual o outro lhe toma, há a dissintonia entre os ideais deste e a carne negra por eles fissurada. Nela, a imagem do negro jamais alcançará reconhecimento pleno (Anerkennung), pois os ideais através do qual este se dá são sempre brancos; a gramática social de singularização versa uma língua que não é sua, e a qual só lhe é permitido enunciar enquanto perpétuo estrangeiro. E se é desta interpelação do outro que me afirmo enquanto sujeito, ao negro não é só renegada a pertença social, mas sobretudo a perpétua condenação de ser um estrangeiro para si mesmo. Em si mesmo, o negro porta hoje o chicote simbólico que outrora lhe arrancava as libras reais de carne.

Num esforço de síntese, poderíamos resumir a pergunta que Fanon e Souza nos colocam da seguinte maneira: se a condição do devir está posta numa lógica identitária, se todos as coordenadas gramaticais para que se nos façamos socialmente reconhecidos, e por conseguinte propriamente adentremos a esfera da vida humana, colocam-se a partir da sincronia dum dado sujeito para com ideais egológicos d’Outro, que sobra àquele que já, desde sua carne, está marcado pelo fracasso em tal operação? Quais restos de sociabilidade sobram-lhe para, de sua miscelânea identificatória, efetivar-se um ‘eu’ — ou a quais desvarios deve submeter-se para tanger essa função? Pois se desde início colocamos o acento na historicidade da consciência, que fazer de meu ‘eu’ quando o espelho da História me retorna ideais nos quais minha imagem não só não se encaixa, mas é contraponto necessário para a mensura de suas validações; que ‘eu’ é possível quando o rosto que a História me espelha é não só tecido com outra carne, mas sob o preço da dominação da minha, e por conseguinte de pouco, ou nada, lhe vale as libras ofertadas senão à perpetuação de uma imagem que me é alheia?

Mais ainda, percebamos como até agora não falamos em fracassos contingentes; não se trata aqui dum mau funcionamento das operações normativas de reconhecimento, como se se tratasse duma dialética ‘travada’ por erráticos motivos pessoais, que mais confirmariam a regra que a contestassem a validade. Trata-se antes do funcionamento padrão da experiência vivida do negro, até mesmo em seus mais “bem-sucedidos” casos. Nesse contexto, esses seriam aqueles nos quais encontramos negros como Fanon, Souza e os relatos que esta nos traz em seu Tornar-se negro; como uma das próprias entrevistadas coloca, negros estudados e que desde pequenos frequentaram ambientes onde circulavam música e literatura ‘boas’, onde aprendia-se piano e línguas estrangeiras, onde puderam cultivar-se desde muito jovens das seivas culturais da Europa[5].

Os relatos dos negros trazidos por Souza podem ser então compreendidos como mais bem-acabados frutos fermentação da introjeção dos ditames egológicos das sociedades modernas (europeias ou euro-centradas e capitalistas), e ainda assim o produto primeiro que se nos precipita de suas narrativas de si é o sofrimento no qual se encontram enquanto sujeitos. Como se, mesmo ao atender tanto quanto possível ao que lhes é requisitado como moeda de reconhecimento do Outro branco, decantassem em suas vidas o veneno que as corrói.

Se essa dissonância é impossível de ser resolvida atendo-se à atual gramática social, se até quando mais se adequam a ela, aos negros ainda é reservado o lado opaco[6] do espelho da História, havemos pois de nos perguntar se seria interessante insistirmos na manutenção duma lógica identitária como superação do racismo. Após ouvir os relatos que nos traz Souza e acompanhar o itinerário errante da experiência vivida da consciência fanoniana, talvez seja o caso de nos perguntarmos se ainda é possível um Espírito cuja eticidade se sustente em predicados identitários ou narcísicos.

Quer dizer, qual seria o avesso dum Espírito que não se seduza e se assente no próprio e no idêntico; mas, visto que tal operação condenam outros ao malogro, albergue em si a alteridade que se encontra no outro lado do espelho, lado este que se lhe será sempre opaco? Ou, aceitando o desafio posto por Souza, se ‘tornar-se negro’ é sempre lançar-se a uma definição a posteriori, melhor seria, da força de tal lançamento, propulsionar a implosão de nossa gramática egológica de reconhecimento. Que Espírito passa então a ser possível, senão um que assuma sua dissonância como produtora dum mais elevado vínculo com o Outro?

Aqui apresento minha única possível ressalva quanto ambos os autores, cuja influência sartreana poderia nos deixar derrapar para certa essência a ser definida através da experiência da minha existência. Fato é que também ao branco a ‘minhidade’ identitária é fantasmática; e ainda que socialmente normativa, causa sofrimento àqueles tantos que não se adequem a ela. Ou seja, a pretensão de uma ‘essência’, um núcleo identitário forte e bem-delimitado, que paute minha subjetividade, até para aqueles que programaticamente se adequam a ele, e mesmo que a consideremos como produto derivado das experiências históricas em primeira pessoa, causa violência. Se a verdade que há na essência é em si cindida — contraditória em sua imanência, porquanto semovente —, e não estanque e unitária, a branquitude — enquanto amálgama de predicados de posse, heteronormatividade, autodeterminação tal como nos lega o cânone da razão instrumental europeia—, não deixa de ser um fantasma também para os brancos, ainda que sobre nós não recaia a monstruosa face da racialização.

Não há enunciação possível de justiça que advenha duma gramática injusta. Não há caminho transformador na aquiescência duma identidade mitologicamente[7] construída; na qual a própria existência mística baseia-se a reificação do negro na sociedade capitalista, e cujos pilares do “excesso de afetividade”, força e demais desvarios libidinais vendem-se ‘benéficos’ com o único intuito de tornar inócuo quaisquer mobilizações emancipatórias por parte daqueles. Não se trata de tentarmos diluir a especificidade do sofrimento negro, mas de percebermos como tanto mais forte é a imposição dos ideais brancos; ao ponto que nem àqueles que são concebidos enquanto indivíduos plenos, donos de um ‘eu’ socialmente reconhecido, são poucas suas investidas.

Mais interessante seria percebermos como toda produção de reconhecimento narcísicas e predicativa gera sofrimento, e mais ainda em casos como nos de sujeitos racializados. Sobre isso, Vladimir Safatle comentara como, para além dos sofrimentos de um indivíduo, devemos perceber os sofrimentos em ter de ser um indivíduo[8]. Acredito que o racismo se encontre numa camada ainda mais subjacente, e portanto radical — umsofrimento em nem mesmo poder constituir-se e ser reconhecido enquanto indivíduo pleno, digno de individualidade por seus próprios termos. Se ao negro não é reservado o direito de aparecer nos espelhos brancos, antes de os multiplicarmos, mais valeria que os jogassem fora. Que joguem os espelhos fora, e sigamo-los também nós em tal feita, pois a estabilidade das imagens que neles encontramos é, na verdade, a paralisia de nossa liberdade; pois da estaticidade com que magnetizam predicados, só se nos ressoa sofrimento e violência.

Alguém um dia escrevera que a consciência só realiza a si mesma ao defrontar-se com sua morte enquanto indivíduo, ao se alçar a um vínculo maior de reconhecimento que aquele que poderia se dar entre determinidades pessoais[9]. Só da experiência-limite com a morte – em que se perde na negatividade com a qual acossa o presente – poderia se lhe brotar um desejo impossível, ainda que destrutivo, para criar uma sociabilidade que não se curve diante da diversidade apreendida como mera miscelânea entre oposições, pois que “só vê na diversidade a contradição”[10].

Como quem busca tal realização, talvez seja o caso de insistirmos em como, se não a podemos separar de figuras racistas como as que prestou a afigurar[11], a verdade de uma obra como a hegeliana seja morrer – pois só de seu enterro poderíamos dela nos armarmos para além da pessoalidade tosca de quem a escreveu.. Penso aqui na distinção que farão Lacan e Kojève acerca das possíveis “duas mortes” presentes na Fenomenologia, quais sejam, simbólica e real. Uma morte simbólica sempre suscita num reposicionamento subjetivo, numa destituição do dado e assunção do novo.

Assim como Hegel fará uma distinção entre “má” e “boa” infinitude, haveriam também boas mortes. Uma leitura atenta e produtiva será sempre aquela que a permite aos nossos autores, pois só ao morrerem poderão reaparecer na verdade que carregam. A permanência estática e o apego demasiado ao atual não é senão a pior forma de morte. É nesse espírito que entendo o exercício de jogarmos nossos espelhos fora. Por não ser esta a atualidade que está ainda à altura da liberdade efetiva, enquanto filosofias ainda se constranjam por detrás de pessoas, e sujeitos forem silenciados em nome da razão, a dialética ainda terá trabalho por fazer.

Colocar a questão do racismo nesses termos é também convocar a nós, brancos, enquanto sujeitos participativos na transformação de um mundo no qual nascer com a pele escura não seja motivo de injúria e sofrimento. Pois a nós poderia ser de toda forma cômodas, certas posições que privatizam os lugares de fala na luta antirracista — visto que nosso silêncio passaria a ser não mais entendido como desdém, mas como respeito. Cabe perceber como todo silêncio está na verdade dentre as mais violentas formas de grito, posto que uma das mais sutis maneiras de nos desresponsabilizar diante do sofrimento daquele que nos endereça sua fala. Se a racialização dos corpos deve-se ao movimento reificante da razão europeia diante de tudo aquilo que se lhe apresenta alteridade; se, durante séculos, nos silenciamos diante de todo o sofrimento advindo do racismo, suscitado por uma violência colonial por nós imposta aos negros, escutar a narrativa de seus sofrimentos não pode se confundir com um movimento de silêncio, porquanto respeitoso, mas de grito.

Escutar o sofrimento negro, enquanto sujeito branco, precisa de ser uma das mais virulentas formas de gritar em comum o que em nós é desidêntico; gritar em coro gritos dissonantes, de narrativas que me excedam, duma consciência que nos fora historicamente opaca, e transformem o lugar de fala desde o qual se enunciam através da recepção que encontram. Isso não pode ser confundido com escamotear o protagonismo do negro na narração de seu sofrimento. Ao contrário, trata-se sobretudo em, ao perceber a irredutibilidade da narrativa do sofrimento racial àquele que o experiencia em primeira pessoa, colocarmo-nos no lugar de escuta.

Escuta genuína; através da qual o acolhimento da narrativa que nos chega, transforma o sofrimento que esta comporta. Quer dizer, se ao espoliar a voz de sujeito aos negros, o homem branco soube muito bem falar, cabe agora também a nós, também através de nossa voz, por em movimento tais figuras refreadas de reconhecimento. Em vistas disso, não basta o comodismo do pretenso respeito ao lugar de fala alheio — é preciso perceber que, se a consciência só se põe em movimento e alça sua verdade através da contraditória experiência que faz de si no mundo, também a voz branca precisa de fazer coro à dissonância negra; para que vivamos uma sociedade emancipada, precisamos de desrracializá-la. Para tal, também nós precisamos de jogar os espelhos fora.

Referências

BERNASCONI, Robert. Will the real Kant please stand up: The challenge of Enlightenment racism to the study of the history of philosophy. Radical Philosophy, n. 117, jan./feb. 2003a.

BERNASCONI, Robert. Hegel’s racism. Radical Philosophy, n. 119, mai./jun. 2003b.

BUTLER, Judith. [2005] Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Trad. Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

FANON, Franz. [1952] Peau noire, masques blancs. Paris: Points/Seuil, 1971.

FANON, Franz. [1952] Peles negras, mascaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020.

HEGEL, Friedrich. [1807] Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014

LACAN, Jacques. [(1953-4) 1979] O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.

LACAN, Jacques [(1960)1966] Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 807-842.

LACAN, Jacques. [1968-9] Le séminaire, livre XVI, ed. Staferla. Disponível em <http://staferla.free.fr/S16/S16%20D’UN%20AUTRE…%20.pdf.&gt; Consultado em 11/06/2022.

NOBRE, Marcos. Como nasce o novo. São Paulo: Todavia, 2018.

SAFATLE, Vladimir. [2015] O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

SAFATLE, Vladimir. Patologias do indivíduo. Folha de São Paulo, São Paulo. 09 de nov. de 2010. Disponível em <www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0911201006.htm>. Consultado em 11/06/2022.

SOUZA, Nelsa. [1983] Tornar-se negro ou As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.


* Pedro Pennycook é estagiário em psicologia clínica de ênfase psicanalítica na Clínica de Interconsulta e Psicossomática Psicanalítica do Hospital Agamenon Magalhães, bolsista de iniciação científica pelo CNPQ, graduando em Psicologia pela FAFIRE e em Filosofia pela UFPE. E-mail: pedropennycook@gmail.com



[1] Vemos uma belíssima formalização da interpelação significante no grafo lacaniano do desejo, na qual o significante mestre ‘corta’ a libra do pedaço de carne, descentrando o bebê e tornando-o sujeito da linguagem. Lacan apresenta-o na décima-sexta edição de seu seminário e sintetiza em ‘Subversão do sujeito” [1960] nos Escritos, pp. 807-842. Recomendo a edição ‘staferla’ dos seminários, o [1968-9] XVI está disponível em http://staferla.free.fr/S16/S16%20D’UN%20AUTRE…%20.pdf.

[2] Trata-se da diferenciação e correlação entre eu-ideal (imaginário) e ideal-de-eu (simbólico), ou dos ‘dois narcisismos’, como nos coloca Lacan. Neste texto, quase sempre que me refiro a identificações como simbólicas, mas é importante percebermos como simbólico e imaginário (e real, por sua vez) estão necessariamente enodados — daí que eu faça a ressalva quanto a pensarmos não só nos ideais de eu, tal qual é o foco para Souza (1983), como se a função simbólica tivesse mais primazia em nossas vidas e sofrimentos porque desenvolvida mais tardiamente, mas nas implicações que o esta possui na conjuntura imaginária de nós. As noções de autossuficiência ou de emancipação individual, segundo as quais cabe ao indivíduo vencer sozinho as barreiras estruturais a ele impostas pela sociedade, das quais a autora faz tão boa menção crítica, por exemplo, ao que me parece, tem muito mais que ver com a onipotência advinda da unidade imagética que com os ideais-de-eu; ou ao menos é-nos preciso pensar a influência do eu-ideal na sustentação delas. Sobre a necessidade em pensarmos ideal-de-eu e eu-ideal como indissociáveis, e acredito que ela também se estenda à análise do racismo, ver LACAN, Jacques. [(1953-54) 1979] O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986, aula de 24 de março de 1954.

[3] Não entraremos em minúcias quanto a como interpretar os últimos capítulos da Fenomenologia, que se consagram sob o signo sugestivo da efetivação do ‘saber absoluto’. Aqui, basta-nos atermos ao caráter metodológico legado pela obra através da centralidade da experiência da consciência em seu contraditório decurso histórico. Nessa esteira, recomendo NOBRE, Marcos. Como nasce o novo. São Paulo: Todavia, 2018.

[4] Cotejei a edição Kindle brasileira (UBU, 2020) com a impressa francesa, mas por aquela não ter numeração de páginas, indicarei-as segundo esta: FANON, Franz. [1952] Peau noire, masques blancs. Paris: Points/Seuil, 1971.

[5] Ver o capítulo cinco (pp. 90-117) de Fanon (1971), assim como o quinto capítulo (pp. 45-61) e o sub-capítulo ‘Das estratégias de ascensão’ do sexto capítulo (pp. 65. 69) de Souza (1983).

[6] Sobre a metáfora dos espelhos opacos, ver ‘Questões pós-hegelianas’ (pp. 39-44) em BUTLER, Judith. [2005] Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Trad. Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

[7] Ver o capítulo terceiro (pp. 25-32) de SOUZA, Nelsa. [1983] Tornar-se negro ou As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

[8] Para uma análise detalhada, recomendo a última parte de SAFATLE, Vladimir. [2015] O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. Para a síntese quase direta desta referência, SAFATLE, Vladimir. Patologias do indivíduo. Folha de São Paulo, São Paulo. 09 de nov. de 2010. Disponível em<www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0911201006.htm> Consultado em 11/06/2022.

[9] HEGEL, Friedrich. [1807] Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, § 187.

[10] HEGEL, Friedrich. [1807] Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, §2

[11] Muito já se sabe acerca dos juízos eurocêntricos, e mesmo racistas, por parte de Hegel. Boa parte do mundo filosófico ligado à tradição dialética se volta cada vez mais a entender em que medida seriam estas posições pessoais, do homem empírico Hegel, ou em verdade alicerces teóricos imanentes a seu sistema. Ressaltam-se os trabalhos recentes de Bernasconi (2003a e 2003b), nos quais autores do idealismo alemão serão associados ao amparo conceitual suficiente a justificar a coloneidade. Importantes espaços de debate têm aparecido, como os seminários Hegel (anti)kolonial. Promovido por pesquisadores de língua alemã — Daniel James (Universidade de Düsseldorf) e Franz Knappik (Universidade de Bergen) — conjuntamente a convidados de todas as partes do mundo, o projeto visa circular a recepção crítica da obra hegeliana, encontrando nesta o arsenal teórico para superar as injustiças e violências promovidas potencialmente em nome dalguma superioridade europeia que aquela ajudara a forjar. Destaca-se também a recente chamada para dossiê sobre colonialismo e racismo numa das mais importantes revistas no mundo hegeliano, a saber, a Hegel Bulletin.




COMO CITAR ESTE ARTIGO |PENNYCOOK, Pedro (2023) Dialéticas Dissonantes, ou, como ler Lacan e Hegel após Franz Fanon. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -14, p. 5, 2023. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2023/04/02/n-14-05/&gt;