Resenha | “Sobre o tipo feminino” e outros textos (Andreas-Salomé, 2022)

por Ana Costa

ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Sobre o tipo feminino e outros textos. Trad. R. D. Mundt. São Paulo: Ed. Blucher, 2022 (“pequena biblioteca invulgar”). 

Lou Andreas-Salomé e a transmissão em psicanálise

No ano passado, a Ed. Blucher lançou uma coletânea de textos de Lou Andreas-Salomé, organizada por Paulo Sérgio de Souza Jr., inserida na coleção Pequena Biblioteca Invulgar. Isso dá-nos a chance de revisitar uma autora singular, lembrada entre nós mais por sua biografia que por seus escritos em psicanálise. Andreas-Salomé chegou à psicanálise mais tardiamente em sua vida, quando já tinha confiança e reconhecimento de autores hoje destacados, tais como Nietzsche e Rilke, bem como publicado romances e críticas literárias. Permaneceu junto a Freud depois das rupturas de Jung e Adler, mesmo sendo próxima deste último.

Em que interessa a obra de Andreas-Salomé hoje? Nina Leite, no posfácio do livro, destaca a singularidade de sua escrita, alinhando-a a proposições de Cixous, na intenção de “extrair de seus escritos um dizer não sobre a mulher, mas de mulher”, destacando ainda que sua força criativa do feminino “se revela e ilumina de forma instigante a diferença sexual, e não a oposição sexual”. Leite comenta a dificuldade na leitura dos textos da autora, com a impressão de uma escrita difícil de seguir, perdendo-se na leitura e tendo que retornar “ao ponto do fio interrompido”.

Reconheço a propriedade dessas colocações de Nina Leite e de sua escolha de ler Andreas-Salomé com Hélène Cixous. Mas ler um texto com outro não é o que sempre fazemos? Talvez enunciar dessa forma indique algo mais, algo que a escrita de Andreas-Salomé apresenta sem revelar. A questão do feminino indica isso, tal como Leite propõe. Nos textos de Andreas-Salomé são deduzidas duas lógicas que correm paralelas (homem/mulher), mas que na posição feminina são incorporadas, indicando uma espécie de totalidade. Dessa incorporação o masculino está alijado, no seu fascínio com a exterioridade – com a “realidade”, no dizer da autora. O princípio dessa diferença é construído de forma alegórica no texto Sobre o tipo feminino, numa imagem capturante, em que apresenta a constituição da diferença entre botões e moedas:

[…] minha lembrança mais remota está relacionada aos botões. Sentada sobre um tapete florido, à minha frente uma caixa marrom aberta cujo conteúdo – botões de vidro, de marfim, coloridos, de formatos fantásticos – eu podia remexer… As joias-botões permaneceram ainda durante muito tempo o epítome daquilo que, por ser extremamente precioso, é colecionado, e não descartado… Para mim, é como se essa ideia dos botões como peças mais preciosas já tivesse se assentado diretamente sobre uma outra ideia ainda mais primordial, segundo a qual eles representavam partes inalienáveis – de certa forma, pequenas partes de minha própria mãe… ou talvez de minha ama (dedicada a mim), em cujo peito, por trás da roupa aberta, eu praticamente conheci o primeiro rubi. (p. 134)

O que era inalienável nos botões – que alegoricamente remetem ao corpo, como partes do corpo da mãe – contrasta com aquilo que é intercambiável, alienável, como as moedas. Ela relata o momento em que reconhece essa diferença, quando estava junto ao pai e quis dar uma moeda a um mendigo, recebendo o ensinamento de que deveria dividir a moeda: metade para o outro e metade ficaria com ela. Em contraste com a moeda, que era divisível

[…] estava a ideia antiga dos tesouros inalienáveis (botões), os não cambiáveis, ocultos, cuja subtração significaria claramente que nós mesmos teríamos sido roubados, violados – como a nossa totalidade, que não conhece ou tampouco possui “metades”. (p. 136)    

Nesse relato, a poesia da narrativa e a beleza das imagens construídas transmitem relações complexas de forma indireta. Reconhecemos ao que se refere a alegoria. No entanto, também intuímos consequências bem mais abrangentes que a redução a uma diferença entre as partes do corpo da mãe, e as moedas paternas que circulam no discurso. Andreas-Salomé faz um uso singular de alegorias em sua escrita, de tal maneira que torna impossível capturar sua abordagem num saber fechado. No trecho antes destacado, o que seria “nossa totalidade… que não conhece metades”, mas que ao mesmo tempo constitui “partes do corpo da mãe”? Partes que constituem “nossa totalidade” é da ordem do paradoxo. É por essa via que reconhecemos a precisão da alegoria que transmite algo que não se fecha num saber. 

Outro texto incluído na coletânea – Anal e sexual – foi valorizado por Freud como uma referência, em duas passagens de sua obra, bem como por Lacan, que o cita no seminário sobre a angústia. Com propriedade ela vai dizer que a referência ao anal é do que menos queremos saber, na medida em que seu erotismo é o que sofre um duplo recalque, desdobrado em retenção e expulsão. Normalmente nos detemos na educação da retenção e expulsão das fezes como se fosse um mesmo e único movimento. Mas, como bem situa Andreas-Salomé, é uma construção mais complexa. Para o bebê o prazer anal ainda não diferencia o dentro e o fora, o que é excretado ainda faz parte de seu corpo. A especificidade desse erotismo só aparece quando a criança descobre o prazer de reter, a partir da intrusão do outro no seu funcionamento corporal. Nesse movimento se constitui a percepção de um domínio, construindo as bases de um erotismo na retenção. Esse tempo se confunde com uma estrutura mais geral das pulsões, na medida em que o outro já está ali no que é retido. Na expulsão das fezes constitui-se o fundamento da separação dentro/fora, e a base do erotismo se inverte, como algo que sai do corpo radicalmente outro, algo do estranho, o “sujo” que não é incorporado ao eu

Perante essa imagem clássica do “sujo”, dessa alegoria do objeto, a inocência subjetiva do ser humano vivo se torna assim tão profunda quanto diante da morte: ou seja, diante do evento que, igual e inevitavelmente para todos, não é “vivido” por ninguém, dissolvendo-se naquilo que “ele” não é – no alheio eterno, na não-vida, no anorgânico -, na matéria do anal. (p. 174)

Nesse trecho destaca-se novamente uma construção narrativa que diz mais do que um saber consegue alcançar. Perante a imagem clássica do “sujo” coloca-se “a inocência subjetiva do ser humano vivo”, tornada tão profunda como diante da morte. A matéria do anal dissolve-se no “alheio eterno”, na não-vida, ou mesmo no cadáver. A proposição dessa “alegoria do objeto” surpreende e expande as considerações que se possa fazer sobre o funcionamento anal. Nele encontramos esse resto não simbolizável, não sublimável, que escoa pelos esgotos e traz perturbações até mesmo na organização das cidades. 

Debruçar-me sobre a escrita de Andreas-Salomé atualizou-me uma indagação a propósito da transmissão da psicanálise. Com Freud, reconhecemos o estatuto de operadores clínicos expandido a abordagens da literatura, teatro e temas do laço social. No entanto, é sempre importante lembrar de onde ele partiu, seus textos fundadores da proposição do inconsciente, em que a leitura de seus próprios sonhos cumpre uma função fundamental. Depois temos Lacan, outro autor cujas proposições têm uma penetração abrangente em diferentes áreas. Se por um lado suas construções enigmáticas impedem o fechamento num saber, por outro criou-se uma espécie de citação sem sujeito, levando a repetições estéreis, em que já não se reconhece mais o próprio da psicanálise. Esta última posição permitiu a entrada na universidade, o que a guindou a um ensino facilitado e sem implicação daquele que fala, em alguns casos economizando até mesmo a trajetória numa análise pessoal. Penso que o interesse na leitura de Andreas-Salomé hoje diz respeito à construção de uma escrita prenhe de paradoxos e alegorias, em que o leitor, lembro aqui Lacan, precisa “colocar algo de si”. Peço licença a Nina Leite para usar a expressão “o ponto do fio interrompido”, que me inspirou para nomear outro contexto, tomando-a de uma forma mais abrangente no que diz respeito à transmissão da psicanálise. Talvez possa nomear de fio interrompido uma questão específica de nosso tempo, situando o ponto que esquecemos, ou recalcamos: a referência ao inconsciente com seus efeitos na própria produção da psicanálise.



* Ana Costa é psicanalista membro da APPOA, professora do PPG em Psicanálise da UERJ, pesquisadora do CNPq, autora dos livros Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência (Relume-Dumará, 2001), Tatuagem e marcas corporais (Casa do Psicólogo, 2003), Litorais da psicanálise (Escuta, 2015), entre outros.




COMO CITAR ESTA RESENHA | COSTA, Ana (2023) Lou Andreas-Salomé e a transmissão em psicanálise. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -14, p. 10, 2023. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2023/05/30/n-14-10/>.